And we realized that we had stumbled upon something so powerful, so awesome that we became afraid to speak of it.

Manford L. Eaton

 

The cell and room were air-conditioned and were very cold. Very loud, shouting type music was constantly playing. It kept repeating about every 15 minutes 24 hours a day. Sometimes the music stopped and was replaced by aloud hissing or crackling noise.

Abu Zubaydah

Atraída pela possibilidade de o corpo humano poder receber informação de forma não convencional, a ciência interessou-se pelo estudo de fenómenos extra-sensoriais. A vontade de regular e disciplinar o sujeito, a imaginação de um corpo cibernético e de uma sociedade conectados a sistemas alternativos de transmissão de informação alimentam pesquisas e visões de uma sociedade de informação, de transformação do corpo e da psique em dados, recolhidos e transmitidos instantaneamente, remodelados em softwares e aos quais se pode ter acesso. O aumento da interacção entre o homem e a máquina faz também parte da investigação que o aparato científico-militar, com a ajuda de outras indústrias, promove e dissemina numa esfera social cada vez maior. Por mais absurdas que muitas destas pesquisas sejam, elas disseminam-se na sociedade e moldam o imaginário contemporâneo. O uso sistemático da música como método de tortura mostra a que ponto essa disseminação capturou áreas aparentemente imunes a fenómenos de manipulação física e psicológica.

A integração de humanos e computadores num só sistema, numa forma invisível de comunicação e numa lógica de integração do humano nos circuitos informacionais em troca e continuidade incessantes, foi-se construindo em redes ao longo do século passado até ao presente. Estas redes fazem parte de interacções à distância ambicionadas pela economia digital e funcionam tanto melhor quanto o utilizador, espectador e ouvinte for manipulado física e psicologicamente. A década de 1950 mostrou-nos que a instrumentalização do corpo humano radicalizou o modo como o cérebro humano foi abordado, uma extensão da tecnologia. Vários sistemas de poder emergiram e foram estabelecidos de modo a regular um largo número de pessoas. Noções como a de brainwashing surgiram da ansiedade e pânico geradas na sociedade americana no contexto da Guerra Fria. Um esforço para controlar este pânico deu origem a infraestruturas e discursos incapazes de conter a propagação a outros contextos, culturais e publicitários, desencadeando um sentido de ameaça, pânico e paranóia que permanecem até hoje. Nos anos 1970 ganhou nova projecção pela revelação dos programas de mind control implementados pela CIA nas décadas de 50 e 60. Expressões como «guerra psicológica» ou «guerra cerebral» foram sendo difundidas e implementadas a partir de um combate que desviou as suas coordenadas do terreno e da conquista geográfica para formas menos convencionais, iniciando um conflito que se redireccionou para esferas de influência, persuasão da mente, captura ideológica e vigilância em massa. Brainwashing foi sobretudo um sistema de propaganda que se estendeu a grande parte do globo terrestre durante a guerra fria e que institucionalizou um permanente estado de emergência na sociedade norte-americana. Foi um enorme programa educacional com o objectivo de consensualizar a sociedade em torno de esforços de guerra, ao mesmo tempo que mobilizou recursos em larga escala, formando sinistras ligações entre as ciências sociais e do comportamento e o Estado. A partir da II Guerra Mundial, com a Guerra Fria, abriu-se um paradigma de investigação e militarização das ciências psicológicas e do comportamento que se estendeu e deixou marca em diversos campos culturais, entre eles a música, com programas desenhados para explorar aquilo que foi determinado como vulnerabilidades emocionais e físicas, transformando e redefinindo o que se entende por ser humano. Programas como o MK-ULTRA violentaram o corpo e o cérebro com experiências radicais de limpeza e controlo cerebral através de electrochoques, privação de sono ou uso de LSD, esbatendo princípios e barreiras éticas. Estes meios prolongaram-se no pós-guerra fria e continuaram a ser aplicados na chamada global war on terror.

Batalha de Jericó (1400 AC). Julius Schnorr von Carolsfeld, 1860.

Batalha de Jericó (1400 AC). Julius Schnorr von Carolsfeld, 1860.

Um caso particular desta guerra é a utilização da música como método de tortura. Suzanne Cusick, em «Music as Torture/Music as Weapon» (2006), estudou o uso da música em técnicas de tortura, mas também o impacto dessas técnicas na própria música e as ligações entre os princípios estéticos aplicados na tortura e as estéticas musicais difundidas desde os anos 1960. Recentemente, no Iraque e em Guantánamo, a música foi usada como técnica de tortura, embora haja informações de que os bombardeamentos acústicos fossem utilizados pelos Estados Unidos e seus aliados há décadas. O uso do som e da música como método de interrogatório é referido como no touch torture e o espaço reservado para exercer essa violência é apelidado The Disco.

When considering the physiological impact of sound, the two critical aspects are frequency and volume. The sound we feel in our bodies is usually a low frequency sound. Infrasound is of such low frequency it cannot be heard with human ears, yet it still causes an unconscious physiological anxiety. (Lawrence English)

Privação sensorial, maquete.

Privação sensorial, maquete.

A tortura pela música causa sofrimento sem haver necessariamente contacto entre a vítima e o torturador, muitas vezes em combinação com outros tipos mais convencionais de violência como o afogamento — ao som de Britney Spears ou Metallica — induz a regressão da personalidade à dissolução da resistência, deixando sequelas tão ou mais duradouras que os espancamentos, apesar dos manuais da CIA afirmarem que não deixam marcas físicas. Dispositivos como o Acoustic Blaster (1990) e o Long Range Acoustic Device (2000) são outro tipo de armas antipessoais que, aplicadas à distância e em espaços abertos, projectam um muro de som e uma energia que causam distúrbio espacial.

A violência da tortura musical pode ser um reflexo da violência que infligimos à própria música. Em 1968, Manford Eaton, num congresso internacional de música electrónica, apresentou o ensaio Bio-potentials as Control Data for Spontaneous Music, que, para além de detalhes práticos sobre a acústica, a electrónica e a gravação tecnológica, expôs o potencial biológico do corpo humano na exploração acústica. O ritmo cardíaco, a pele, o movimento dos olhos e as ondas cerebrais, conectados a microfones de contacto, foram bio-potentials usados como materiais musicais em que o corpo do performer reage em tempo real, em feedback sobre os sons produzidos:

to provide the composer with a direct and semi-automatic method of composition which is intimately related to his mental activity in both an objective and subjective sense while allowing him to retain some measure of ‘real-time’ control over the course of the composition. (Eaton, 26)

 
Manford L. Eaton. Bio-Music systems.

Manford L. Eaton. Bio-Music systems.

Manford L. Eaton. Hypothetical Bio-Music system.

Manford L. Eaton. Hypothetical Bio-Music system.

No ano seguinte, em 1969, o seu interesse foi-se progressivamente concentrando em questões de poder, mais interessado em induzir, através do aparato electrónico, as respostas do ouvinte do que em promover subjectividades interiores:

In the future, however, it is entirely possible for the listener to be transformed by the music whether he wishes to be or not. (...) And this can be used to change the subsequent sound output so as to induce the desired results. Thus, it is possible for music to be composed in much the same way as chemicals are combined to form medicines for various specific purposes (...) that music in the future will become an art of induced psychological, physiological states. (Eaton, 47) 

Em 1970 surgem as primeiras advertências ambíguas de Eaton relativamente aos perigos do feedback da bio-música para os humanos:

The concept of real-time biological feedback control is one of the most powerful tools ever conceived. It is possible to program psychic and physiological states of powerful, predictable and repeatable nature. (Eaton, 42) 

Ajustando o biofeedback, Eaton pode passar da escrita musical à concepção de programas de Estado que envolvem o controlo de todos os estímulos eléctricos e sensoriais. Este tipo de estímulo, de controlo e limpeza do sistema nervoso, afastou-se daquilo que inicialmente seria o intuito da bio-música:

Sensory bombardment. This is the inverse of sensory deprivation. If completely randomized fluctuations of amplitudes, durations, color, the position of lights and sounds (as well as tactile random stimulation of the palms of the hands) are applied simultaneously to a subject, the subordination of the conscious is accelerated and most individuals will begin to hallucinate within 30 minutes (...) in more sophisticated Bio-Music systems, we wish not merely to stimulate the individual with sensory data which will evoke general psychic states, we wish to present specific stimuli, monitor the effects of these stimuli in real time, and use this data to control the generation of subsequent stimulation. (Eaton, 42)

Os programas de mind control e métodos de interrogação da CIA — electrochoques, privação do sono, anestesia, desorientação, corte com o ambiente exterior, controlo total da experiência sensorial e perceptiva — são familiares aos sucessivos aperfeiçoamentos dos métodos de Eaton; indução e recepção de estímulos nos ouvintes, não com o objectivo de provocar diferentes subjectividades e sensações entre eles, mas o de suscitar respostas e estados idênticos, resultados invariáveis.

O imaginário da transmissão directa através de ondas alimentou uma série de histórias de ficção científica publicadas nas décadas de 1970 e 1980. Nelas as pessoas eram ligadas durante o sono a uma máquina e uma torrente de flashes era disparada, penetrando as ondas cerebrais. Subitamente, ao acordar, eram fluentes em vários assuntos. A onda transporta essa informação e possibilita uma mudança cognitiva, atravessa o corpo humano e o meio ambiente sem obstrução e sem causar fricção. Se a aquisição de conhecimento não passa pela consciência, passa a ser uma função subliminar do corpo. Essa misteriosa onda está intimamente ligada a atributos associados ao discurso digital:

The Internet of Things is bringing new ghosts into the world. Physical objects, which used to be mute, are now starting to talk. Automatic communication between them—which happens without human beings doing anything at all—will feed the ghosts. It is making the world more and more ghostly, as if guided by a spectral hand. (Byung Chul Han, 111)

Qian Xuesen, cientista espacial chinês, publicou em 1981 um ensaio[1] — focando-se no caso de uma criança que lê sem usar os órgãos visuais — onde promove o entendimento do corpo humano e da sociedade como sistemas de informação, alargando essa pesquisa ao interesse pelas capacidades extra-sensoriais e acreditando na existência de modos alternativos transferência de informação para além dos órgãos de percepção:

If we apply toward future educational practice any discoveries we make about child prodigies, everyone will be able to become “wise” in the twenty-first century. (Qian Xuesen, citado por Xiao)

Every human being is a sender of electromagnetic waves, and everyone a receiver too. (Xiang Jiang, citado por Xiao)

Descobrir o segredo deste modo invisível de transmissão equivale a construir um interface entre o humano e a máquina, num modo progressivamente expansionista que desde há décadas invade os mais ínfimos aspectos da existência humana:

Qian and his followers believed that once the mechanism of extrasensory powers could be reproduced, human beings could be directly fed with constant informational streams through ubiquitous waves that could be absorbed without any effort. (Xiao, 49)

Em 1966, músicos como Richard Teitelbaum e Alvin Lucier questionaram o uso do biopotencial da música. Para eles foi um meio de acesso a níveis de subjectividade mais profundos, à meditação e à auto-expressão, não como meio de controlo. Se algum tipo de violência é exercida será sobre eles próprios e não sobre outros:

I had an experience one night where I felt like I was communicating with a friend through telepathy... I wrote to Bob Moog and asked if I could use his equipment to perform with brainwaves, use them as con­trol voltages. He said yes and made me a brain­wave amplifier that I still have. (Haverford College News)

One night I had a dream, or hypnagogic vision, in which I saw three reclining figures spaced along the perimeter of a round, diaphanous tent, all bathed in a soft blue light and all wired together in a loop so that one person´s alpha brain waves controlled strobe lights and sounds perceptible to the next, he in turn passing his alpha signals similarly on to a third, and the third back to the first to close the loop. The image haunted me, and I decided to try and realize it electronically and musically. (Richard Teitelbaum)

 
John Cage durante uma sessão alpha feedback. 1970

John Cage durante uma sessão alpha feedback. 1970

 

Toda esta violência coloca uma questão central para o futuro da arte; como permanecer humano num mundo onde as formas de violência quebram os laços sociais e destroem rapidamente qualquer gesto de emancipação? Como viver num contexto de permanente corte da nossa intimidade com aquilo que nos envolve?

Há na invenção dos sons e imagens uma fragilidade constituinte, que obriga o sujeito a redefinir-se, a constituir-se incessantemente, procurando estados e experiências possíveis, processos de moldar a memória no presente. Essa fragilidade pressupõe a construção de uma visão interior e um grau de autonomia relativamente ao poder que, ao expor-se publicamente, assume os riscos da sua acção.

Goya. Ilustração 42 de 'Los Caprichos'. 1799.

Goya. Ilustração 42 de 'Los Caprichos'. 1799.

[1] Qian Xuesen, Yu Yuanjing, e Dai Ruwei, A new area of scientific studies: Open complex systems and the methodology, Zaran zazhi, nº 1, 1980: 3–10.

 

Referências:

Lucier, Alvin. «Music For Solo Performer». 1965.

Byung, C. H. In The Swarm, Digital Prospects. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2017.

Mindell, David A. Between Human and Machine: Feedback, Control, and Computing before Cybernetics. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2002

Dewar, Andrew Raffo. «Inner Landscapes: Alvin Lucier’s Music for Solo Performer». 2017.

Eaton, Manford L. «Bio-potentials as Control Data for Spontaneous Music», ORCUS Technical Bulletin 3001, Kansas City, MO: ORCUS, 1968. 

Xiao, L. «Magic Waves, Extrasensory Powers, and Nonstop Instantaneity: Imagining the Digital beyond Digits». Grey Room 63, Spring 2016, pp. 42–69.

 

O Olho Prevenido #8

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