Belmira Maduro foi uma entrevistada relutante. Nas duas ocasiões em que estivemos juntas, foram vários os momentos em que tentou convencer-me de que qualquer outra sua colega de conservação e restauro teria histórias mais interessantes para contar. Ela, como repetiu várias vezes, «não tinha nada para dizer». Contudo, percebi não só que tinha muito sobre que falar, como acima de tudo para mostrar, e o que mais me impressionou foi o entusiasmo que continua a ter pelo trabalho que faz há 37 anos.

O Laboratório José de Figueiredo

Deixou desde logo claro que era importante que eu visse o Laboratório José de Figueiredo, edifício construído especificamente para a conservação e restauro. Uma das provas da sua função é estar situado na Rua das Janelas Verdes, mesmo junto ao Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Quando entramos, reparamos em primeiro lugar no pé-direito altíssimo; mas Belmira chama-me a atenção para as portadas estreitas que acompanham esse pé-direito, e que me passariam despercebidas. Ficam à direita das portas e servem para fazer passar os quadros para as salas do Laboratório, as pinturas de grandes dimensões que estamos mais habituados a ver penduradas e sobre as quais raramente nos interrogamos no que a logística diz respeito. Ao centro da entrada, há um elevador antigo, em madeira e com portas de lagarta, mais alto que largo, adequado tanto ao transporte destes quadros como de esculturas e móveis.

Uma das ideias que Belmira quer desmistificar é que a conservação e restauro diz respeito apenas a pintura. É, de facto, a área mais visível: quando Belmira entrou para o Laboratório em 1981 — na altura designado Instituto José de Figueiredo —, dos 102 funcionários que lá trabalhavam (actualmente são apenas 28), as secções de pintura e de têxteis eram as que concentravam mais técnicos. Nessa altura, Belmira foi seleccionada para a escultura, área por onde também começámos a visita ao Laboratório.

O trabalho de conservação e restauro de escultura tem lugar em duas salas, uma delas iluminada por duas grandes janelas, o que atesta as condições excelentes do Laboratório para a execução das funções para o qual foi projectado. Sou surpreendida quando me mostram dois painéis de Almada Negreiros: «Jazz» e «O Beijo». Estavam na fachada exterior do Cine San Carlos, em Madrid. São gessos em baixo-relevo, originalmente a cores, e que depois foram cobertos com uma só cor quando a fachada do cinema foi pintada. Isto coloca problemas morosos de resolver: remover esta camada de tinta para chegar à original é um trabalho complexo, uma vez que o ligante dos níveis de pintura é igual, ou seja, o tipo de tinta usado nos dois momentos não apresenta diferenças significativas, porque não é muito distante no tempo. Se se tratasse de uma camada de tinta colocada por cima de uma pintura medieval, as diferenças seriam maiores e, logo, mais fáceis de identificar e remover. Além destas questões, acrescem ainda outras, como os problemas que vão surgindo nos painéis devido ao envelhecimento intrínseco dos materiais.

É com as colegas de escultura que Belmira relembra as Brigadas, as deslocações feitas por todo o país para observação e tratamento de obras de arte in situ. E desmistifica outro lugar-comum: o trabalho de conservação e restauro implica uma equipa, muito pouco se faz sozinho, quer porque uma peça é muitas vezes constituída por vários materiais que implicam a intervenção de várias áreas, quer porque a intervenção nessas mesmas peças implica um estudo fotográfico, físico, químico ou histórico. O contacto com os colegas é crucial para que uma obra de arte seja bem restaurada. Nas deslocações feitas ao longo dos anos 80 e 90 pelo país, sobretudo pelo Norte, Centro e Alentejo, Belmira e os colegas intervinham em igrejas. O objectivo da intervenção era o tratamento da talha dourada e policromada. Havia que limpá-la e fixá-la, sendo uma das preocupações principais a remoção das intervenções anteriores realizadas nos elementos escultóricos. O trabalho geralmente não excedia o horário das nove às seis, visto que era realizado em andaimes e, por isso, fisicamente exigente. Os destinos variaram: Forninhos, em Aguiar da Beira; Santa Valha, em Valpaços; Aveiro e Alcobaça. As viagens eram longas, feitas normalmente no Verão nas icónicas carrinhas «pão de forma». Como estavam deslocados de casa, pelo menos durante uma semana mas nunca excedendo as duas, o tempo de lazer era passado sempre em companhia, criando-se laços enquanto se jogava às cartas depois do jantar. Muitas vezes ficavam em casa de habitantes dos locais para onde iam, ou em pousadas do INATEL com as quais o Laboratório tinha acordo.

Na área de pintura, para onde Belmira me leva de seguida, há colegas a trabalhar em retábulos do século XVI vindos do MNAA. Há que corrigir intervenções antigas, mal feitas, de modo a preparar os quadros para uma exposição a inaugurar em breve. Noto que só um especialista poderia identificar estas intervenções incorrectas, nunca um leigo. As correcções a estas intervenções são realizadas, muitas vezes, apenas com algodão e solvente, de modo a retirar as camadas de tinta de repintes ou vernizes alterados. Dizem-me que «cada mão é uma mão» — mesmo usando as mesmas técnicas, cada conservador-restaurador deixará a sua marca no trabalho intervencionado e isso será visível no resultado final.

Descemos no elevador, passamos pela marcenaria, e dirigimo-nos à enorme sala multiusos onde está a armadura japonesa de um guerreiro e os arreios de montada para o seu cavalo. Estas peças terão de estar prontas para uma exposição em Outubro e implicarão uma intervenção conjunta da área de mobiliário, têxteis e de metais. É aqui que fica clara a vantagem de reunir num só local equipas das várias áreas de conservação e restauro. Belmira reforça a importância de um conservador-restaurador ter de possuir conhecimento de várias áreas, não só para respeitar as indicações dos colegas relativamente à especialidade deles, mas também porque cada um terá de intervir em materiais diferentes numa mesma peça. Nesta armadura, os pormenores em têxtil são contíguos aos de metal, o que significa que Belmira não poderá intervir no metal sem ter em conta o têxtil.

A área de têxtil está situada num edifício separado mas adjacente ao Laboratório. Inicialmente, o local era exclusivo aos têxteis, com áreas de lavagem, secagem e armazenamento dos materiais, sendo hoje dividido com a área de conservação e restauro de papel. A sala de intervenção em têxtil tem, à semelhança da entrada do Laboratório, um pé-direito muito alto, com suportes nas paredes e no tecto para suspensão de peças de grande dimensão, como tapeçarias ou colchas. Estas condições são únicas no país e raras a nível europeu, permitindo uma análise detalhada da peça em questão antes e após a intervenção. No momento da minha visita, estavam a ser tratados os estofos de uma cadeira da sala Patiño, no MNAA — uma sala que, de acordo com os requisitos da doação do diplomata boliviano Antenor Patiño, tem de ser mantida exactamente como estava em sua casa. Uma colcha de princípios do século XVII, em filé bordado, com quadrados de linho, será fotografada para o projecto Google Arts & Culture como uma das melhores peças do Museu Nacional do Traje. A peça estava na fase de secagem, estendida numa mesa, presa por alfinetes de modo a manter a forma. Ao contrário do que se pensa, não é na lavagem mas na secagem que os têxteis correm o risco de encolherem e deformarem. A colocação dos alfinetes é um processo delicado, que implica perceber até onde o tecido pode ser esticado. Tratando-se de uma peça com fios, texturas e tecelagens diferentes, e tendo em conta a sua idade, a preservação da forma e do tamanho está dependente do conhecimento do conservador-restaurador da peça que tem diante de si. Também aqui encontramos colegas com o entusiasmo de Belmira por aquilo que fazem. Paula Monteiro, especialista nesta área, está a participar num estudo internacional do vocabulário de técnica têxtil. Interessa-lhe saber a denominação de tudo o que diz respeito à tecelagem, e contactou uma tecedeira a quem pediu ajuda para pôr em funcionamento um tear existente no Laboratório, em que está agora a experimentar várias técnicas de tecelagem.

Para a maior parte dos trabalhos nas várias áreas é imprescindível o recurso ao laboratório fotográfico e radiográfico, e ao laboratório analítico. Nestes, a partir de uma amostra quase invisível a olho nu colhida da obra a restaurar, são realizados vários tipos de análise que permitem responder às dúvidas dos conservadores-restauradores. Por exemplo, no caso dos metais, a questões relativas à identificação dos materiais, às ligas constituintes de cada peça e a quais os produtos de corrosão em acção. No caso de uma pintura a óleo, é nestes laboratórios que se identifica a técnica utilizada, se se trata de um só óleo ou de uma mistura, e qual. No caso de uma escultura em pedra, é possível ter acesso às suas «diferentes vidas» — às intervenções a que foi sujeita ao longo do tempo, podendo até ser calculada a data em que foram realizadas. Estas informações são cruciais para que o trabalho de conservação e restauro possa ser devidamente levado a cabo.

Chegamos, finalmente, à secção de Belmira, de metais e ourivesaria. As suas peças favoritas são, sobretudo, da Idade Média, que Belmira prefere pela convergência de beleza e complexidade, dizendo que «nenhuma peça medieval é naïf». Mostra-me a capa de um evangeliário dos séculos XII / XIII, com técnica de esmalte champlevé, nos únicos tons usados naquela época: azul, amarelo, branco e verde. Tem detalhes em ouro, que sofreram com intervenções anteriores, acabando quase por desaparecer. Belmira explica que, por vezes, «vale mais deixar a camada de corrosão na obra quando se encontra estável porque, deste modo, o douramento mantém-se. Ao tentar retirar a corrosão, retira-se o douramento». O que Belmira está agora a fazer é a retirar a corrosão «à binocular» — um processo em que se usa uma lupa binocular que aumenta o objecto de modo a serem removidas as camadas de corrosão com um bisturi. Mostra-me também um Cristo do século XVI em esmalte pintado, que faz parte do conjunto da Pequena Paixão baseada nas gravuras de Dürer. Belmira consolidou a peça, fez a limpeza, colocou as massas, e uma colega sua de pintura fez a integração cromática de zonas em falta, demasiado visíveis e que prejudicavam a apreciação da obra enquanto todo. Falamos ainda sobre algumas particularidades dos apóstolos da Custódia de Belém: todos têm fisionomias, vestes e até os pés em posições diferentes.

Na sala da ourivesaria encontra-se a colecção de joalharia do MNAA, cuja intervenção se encontra quase totalizada. São principalmente brincos e trémulos, estes últimos usados em cabelos e toucados, a que foi preciso retirar a sujidade do pó e a camada gordurosa que os revestia. A maior parte está adornada com pedras preciosas. No entanto, também era costume usar vidro colorido para esse propósito, não com o intuito de enganar, somente de embelezar — antes da descoberta do Brasil, havia poucas pedras preciosas em Portugal. Por último, e num modo mais descontraído mas com a seriedade de quem quer dar a conhecer o engenho de uma peça, mostra-me um relógio de bolso com um mecanismo que dá acesso a um esconderijo secreto no seu reverso: ao exercer pressão em determinados pontos, abre-se um compartimento onde uma silhueta masculina e uma silhueta feminina minúsculas simulam o acto sexual.

Escolhemos as fotos para ilustrar este testemunho e Belmira diz-me que um dos privilégios do trabalho no Laboratório é o contacto com peças muito importantes e excepcionais, algumas classificadas como património nacional. Adiciono que muito deste carácter excepcional advém da explicação que delas nos é dada por profissionais como Belmira.

 

Entrevista

 

 

Como começou nesta profissão?

Muito por acaso. Fui primeiro para Agronomia, no Instituto Superior de Agronomia. Fiz as cadeiras do 1.º ano e ainda três do 2.º, mas depois chumbei a Matemática e decidi que ia mudar de vida. Queria empregar-me. Saiu um anúncio no jornal, com aviso de candidatura para o Curso Técnico de Conservação e Restauro, único no país. Estávamos em 1981. Inscrevi-me e vim com o meu pai a Lisboa para fazer os testes psicotécnicos.

 

Estava onde?

Morava e ainda tenho casa em Sobral de Monte Agraço. À hora de almoço ainda não estava despachada dos testes e o meu pai disse-me: «Vem-te embora, deixa lá isso!» Respondi-lhe que, já que tinha começado, ia continuar. Foi mais de um dia, porque passei às outras fases. Quando cheguei ao fim, percebi o que era a conservação e restauro. Se não tivesse entrado tinha tido pena. Mas entrei. Entrámos mais de 30 pessoas e foi um período muito interessante na história do Instituto José de Figueiredo. Aqueles que cá estavam não tinham formação académica; a formação era prática, ao longo dos anos, junto daqueles que sabiam, mas já não podia ser feita dessa maneira. Nessa altura, as pessoas estavam a reformar-se e havia necessidade de renovar os quadros do Instituto. Fomos distribuídos conforme as apetências de cada um: têxteis, pintura, pintura mural, escultura, documentos gráficos, e uns colegas foram para arqueologia em Conimbriga. Vim para escultura porque era aquilo para que tinha mais inclinação.

 

Disse que teria tido pena se não tivesse entrado. O que a atraiu no trabalho?

Muitas coisas, porque foi uma boa fase do Instituto. Tivemos professores muito bons, alguns que vinha do estrangeiro: italianos, franceses, belgas, de institutos congéneres com quem o Instituto tinha alguma relação. Fizemos muitas brigadas, o que, em termos de conhecimento, foi excelente.

 

Pode explicar o que eram as brigadas?

Íamos para as terras. Estivemos em Santa Valha, ao pé de Valpaços, onde restaurámos uma igreja, a talha e as esculturas. Pernoitámos em casa das pessoas da aldeia. Ao longo dos anos, fizemos brigadas em muitos sítios, e tratávamos especialmente igrejas. Estivemos muito tempo em Alcobaça, na capela relicário do Mosteiro. Além de trabalho prático, fazíamos brigadas de inspecção. Uma vez por ano, corríamos Portugal de norte a sul, geralmente mais para o Norte. Fomos o primeiro curso de conservação e restauro que existiu em Portugal. Não havia muita gente formada em conservação. As igrejas que precisavam de restauro de peças ou talha faziam um pedido ao Instituto e nós avaliávamos o estado de conservação. Isto permitiu-nos ver muita coisa boa na altura.

 

Iam muitas pessoas nessas brigadas?

Uma que ia era a chefe de divisão, na altura a Ana Paula Abrantes, que foi bastante boa — foi com ela que aprendi. Também ia sempre uma das pessoas antigas da divisão de escultura, e depois mais um ou dois.

 

Mas passou da escultura para a área de metais.

Sim, em 1991, quando Portugal foi convidado como país-tema para participar na exposição Europália em Bruxelas. Entraram muitas peças importantes no Instituto, que requeriam uma investigação grande ao nível da conservação. A escultura abarca muitos materiais: madeira, talha, mobiliário, pedra, metal, e fomo-nos separando. Fui destacada para o metal porque havia necessidade de uma pessoa nessa área. Houve pessoas que saíram a seguir ao curso, que era de três anos, seguido de estágio. Eu estou aqui há 37 anos.

 

Foi por ter sido destacada para os metais que surge o trabalho com a Custódia de Belém?

Sim. É uma peça muito importante, intervencionada em 2008/2009. E é muito importante tratar uma peça daquelas. Mas, se me perguntar se foi a que gostei mais, há outras que são mais da minha eleição.

 

Quais?

Gosto muito dos medievais. Gostei muito de tratar o Tríptico de Portugal, uma peça do século XIV. Não estava sozinha: quando são peças assim tão grandes temos colaboradores. Há mesmo projectos em que colaboram muitas pessoas externas ao Laboratório, como no caso do túmulo em Braga, também do século XIV. Coordenei, através do Laboratório, a intervenção na capela de São João Baptista, da igreja de São Roque. Mesmo sendo a única na área dos metais, e mesmo nas peças que trato sozinha, tenho sempre a colaboração de outras pessoas: o apoio do laboratório fotográfico para fazer a documentação fotográfica; apoio do laboratório para informações relativas ao estudo dos materiais ou à degradação existente; o apoio dos colegas se existirem outros materiais associados, como têxteis ou pintura — tenho sempre a vantagem de ter esta salvaguarda, este apoio.

 

Para restaurar uma peça tem de se fazer um estudo e aprender coisas novas?

Tem de se aprender sempre. Há coisas que faço por rotina, porque já as sei e não tenho de perguntar. Mas há determinadas peças — como foi o caso da Custódia de Belém — em que não mexo sem ter o apoio dos laboratórios, sem ter análises dos produtos de corrosão, de alteração do vidro, etc. Depois, vou lendo. Temos todos de ser um bocadinho curiosos. Tem de se fazer uma pesquisa sobre as peças, sobre peças parecidas, do que são feitas… Temos uma biblioteca específica de conservação, que nos últimos anos não tem sido devidamente actualizada. Apesar de termos a vida facilitada com a internet, nem sempre temos acesso livre a publicações de referência.

 

O tipo de trabalho que está a descrever parece implicar conhecimentos de química e física.

Sim, e tivemos aulas dessas disciplinas no curso. Como venho de ciências, tive a vida facilitada, mas há coisas de que já não me lembro, e que tenho de ir ver. Foi agora feito um pedido ao Laboratório sobre um torrão de açúcar, e nós nunca tratámos nenhum. São pães de açúcar feitos na Madeira, no século XVII. Trata-se de uma estrutura de barro onde o açúcar era colocado, e quando a água escorria formava um torrão grande, que era depois exportado. Agora há um que se está a desfazer e foi feito um pedido ao Laboratório para ver das possibilidades de apoiar na conservação. Neste caso, quem fizer o trabalho vai ter de pesquisar, se calhar até junto de fábricas de açúcar. Nem sempre o trabalho é linear. Aqui a minha colega [Paula Monteiro, presente durante esta conversa] também tem feito trabalhos interessantes, como tratar as vestes arqueológicas que envolvem ainda os esqueletos que estão dentro de túmulos.

 

Porque a atracção especial pela Idade Média?

Não tem a ver com a especificidade das peças, porque uma peça de prata é sempre feita da mesma maneira, as técnicas são as mesmas. Tem a ver com a parte estética: são sempre peças com linhas simples, bonitas, e motivos decorativos que têm a ver comigo. O que a Custódia de Belém tem de interessante para mim é que, se em termos de técnica de ourivesaria não é a mais importante, é-o no que diz respeito ao esmalte. Supostamente é feita com o primeiro ouro que veio de Quíloa, no Norte de África, um pagamento a D. Manuel I.

 

Foi-me dito que a Belmira também é especialista em esmalte.

Não sou especialista em nada. Tenho alguma apetência por peças de esmalte, gosto muito da técnica, mas não sou especialista.

 

Em que é que essa técnica difere das outras?

O esmalte é vidro, logo tem um processo diferente de execução. É aplicado sobre o metal, que pode ser ouro, prata, geralmente cobre, na maior parte das peças de que dispomos. No caso da Custódia, é aplicado sobre ouro. O esmalte é sempre composto por uma matriz vítrea, formada por sílica, areia, por um fundente, que tem como função baixar o ponto de fusão, e um óxido metálico, que dá aquelas cores maravilhosas que o esmalte tem depois de ser cozido no forno. Há várias técnicas para fazer o esmalte, mas as mais comuns são três: o esmalte pintado, que parece uma pintura; o champlevé, em que o metal é escavado e o esmalte é depositado dentro dessa cavidade; e depois o ronde basse, em que o esmalte é colocado em peças tridimensionais, a toda a volta de escultura. O esmalte é aplicado a frio, com uma consistência pastosa, pintado, e depois vai a cozer. A Custódia tem quase todas as tipologias de esmalte.

 

Já conhecia estas técnicas de esmalte antes de trabalhar a Custódia? Foi por isso que foi escolhida para esse trabalho?

Já as conhecia, sim, mas fui escolhida porque não havia mais ninguém! [Risos] Tenho sido sempre a única técnica de metal do Laboratório, que é o único órgão de conservação e restauro do Estado, pertencendo agora à Direcção Geral do Património Cultural. O Instituto José de Figueiredo, agora Laboratório José de Figueiredo, era o único sítio que procedia à intervenção de conservação e restauro das peças classificadas dos museus e das peças importantes da Igreja. Agora já há outras pessoas a trabalhar nessas áreas a nível privado, e estamos a regredir muito em termos de conservação e restauro. Apesar de haver legislação, peças importantes e classificadas são dadas a conservar a pessoas que não tem conhecimentos nem idoneidade para o fazer.

 

Sente que a formação agora não é tão boa?

Há formação boa, mas há muita gente a fazer conservação e restauro que não tem formação para tal. Isto não é uma questão de «jeitinho de mãos», que é o que muita gente pensa.

Paula Monteiro: Não é desse jeitinho que se trata, é de juntar várias áreas para tentar perceber aquilo que temos de pedir quando temos de falar com os laboratórios, com os fotógrafos, etc. Temos de saber dialogar com as várias áreas. Além de dominar a parte da intervenção. São muitas vertentes que entram em jogo, até o olhar de um historiador.

Belmira: O importante é a colaboração, a troca de conhecimentos. Olhamos todos de maneira diferente. Eu vejo coisas que eles não vêem, e eles sabem coisas que eu não sei. Neste momento, tenho uma boa colaboração com a conservadora de ourivesaria do Museu Nacional de Arte Antiga, e tem sido uma partilha muito boa, entre aquilo que eu vejo e que ela não vê, e aquilo que ela sabe e eu não.

Paula Monteiro: Há também o sentido de posse das peças, por se passar tantas horas com elas. Há muita coisa que a Belmira possui — pode dizer-se que as peças são dela. A Belmira é das poucas com quem isso ainda acontece, porque ela entrega-se, dedica-se. Passamos várias horas a ver com a lupa coisas que os historiadores não conseguem ver. Nós vemos por dentro, vemos técnicas. A Belmira faz isso muito bem e partilha. Por vezes telefona-me só para partilhar um pormenor comigo.

Belmira: Há sempre coisas interessantes, não há nenhuma peça igual.

Paula Monteiro: Como o caso do centro de mesa.

Belmira: O centro de mesa do Museu Nacional de Arte Antiga, feito pelo Thomas Germain e pelo filho, no século XVIII. A peça foi tratada no Laboratório por mim e por uma colaboradora que estava cá na altura com uma bolsa de investigação da FCT, de cinco anos. Tive pena que se fosse embora quando a bolsa terminou — sinto que não passamos o testemunho de maneira efectiva a ninguém. Foi interessante tratar o centro de mesa, porque o desmontámos todo. Foi tudo documentado fotograficamente e marcado. As pessoas às vezes perguntam se não há o medo de não conseguir montar tudo de novo, mas há sempre um registo documental e fotográfico. Além disso, as peças antigas têm marcas de posicionamento, quer na base, quer na peça, o que ajuda na remontagem.

 

Quanto tempo passou com essa peça?

Duas pessoas, cerca de três meses.

 

Quando trata uma peça, dedica-se exclusivamente a esse trabalho?

A pessoa que trabalha comigo, sim. Eu, não. Como sou a funcionária da casa, tenho de responder a pedidos, fazer brigadas, ver de algo que seja preciso fazer, dar pareceres.

 

Ainda faz brigadas?

Ainda chamo brigadas, mas é uma deslocação, dentro da área de Lisboa, para ir ver algo que tem de ser tratado. Houve a excepção do túmulo de D. Afonso, na Sé de Braga, mas já foi há mais de dez anos. As peças foram desmontadas, trazidas para o Laboratório, tratadas, e depois levadas de volta para a montagem. Foi feito por mim e por mais dois colaboradores. Faltavam já algumas peças, como os cães aos pés e os anjos à cabeceira. O túmulo do infante D. Afonso é semelhante aos túmulos que costumamos ver em pedra. Neste caso, a arca é em madeira forrada com placas de cobre dourado. A escultura do infante, chamado jacente, é constituída por madeira, um tronco toscamente esculpido onde estão fixos por pregos a cabeça, as vestes e as pernas. A esta madeira que se encontra no interior chamamos a alma. Aqui, além da função de reforçar o interior, tem também uma função estrutural, pois é a esta alma que estão pregados os elementos de metal. Nunca nos demos conta do que se via quando estivesse tudo montado de novo na Sé. O túmulo teve muito tempo junto a uma parede, e quando o tratámos e recolocámos ficou de frente para a porta. O que se via quando se olhava era o interior da túnica de D. Afonso e o tronco de madeira. Tivémos de lhe fazer umas cuecas! [Risos] Patinámos uma placa de cobre, recortámo-la e colocámo-la lá.

 

Está a falar de uma adição.

Esta peça não está num museu, mas num espaço de culto. Algumas vezes temos de ter em consideração a parte estética. Neste caso, depois de estarmos tanto tempo a conservar a peça, foi muito desolador vermos que o que chamava a atenção quando se olhava era o interior da túnica, a alma de madeira com a fixação das pernas. Tivemos mesmo de arranjar uma solução. Se é uma peça que está num museu, o tratamento pode por vezes ser diferente, podemos não intervir tanto. Quando são peças que estão em locais de culto, a intervenção é diferente, porque a falta de uma parte estruturante mexe com as pessoas. Não me refiro à falta de um dedo, mas a algo que passa a chamar mais a atenção do que o resto da peça. Tem de se ter cuidado em relação a isso. Por vezes, temos de fazer uma intervenção mais profunda. Mesmo que o contexto seja museológico, se a falta chamar mais a atenção do que a peça em si, tem de se tomar uma atitude e fazer uma intervenção a esse nível.

 

Continua uma entusiasta do seu trabalho, apesar de já o fazer há tantos anos.

Porque gosto do que faço, tal como a maior parte das pessoas que trabalha no Laboratório. Um elemento muito importante para isto foi a chefe que tivémos. Tinha muitos defeitos, mas era uma pessoa com muitos conhecimentos e que gostava de verdade daquilo que fazia. Foi uma boa transmissão. Éramos onze na divisão de escultura, e foi importante para todos, teve muita influência no respeito, no modo como olhamos e intervimos nas peças. Ela fazia-nos pensar e relacionar as peças. Foi uma escola — ela foi um mestre.

 

Sente que já ensinou alguém?

Passamos sempre alguma coisa, mas ensinar, não. Infelizmente, só tenho cá pessoas de passagem. As pessoas podem ter muitos doutoramentos e pós-doutoramentos, mas há uma sensibilidade que não se aprende nos livros: é o ver, o mexer, o estar com as peças que nos dá esse saber-fazer. É uma mais-valia.

 

Fotografias © Acervo de Belmira Maduro

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