I live in the shadow... I like shadow, that’s why I became a black
and white photographer. The quality of the shadow says something. And the quality of
the shadow is something that I can control... the tonality of darkness to light
                  - Hiroshi Sugimoto

No visible images reaches us unmediated.
                                                             - Hans Belting

 

A ZKM (Zentrum fur Kunst und Medientechnologie ou Center for Art and Media) iniciou as suas actividades em 1989 como centro de investigação e produção de novos media e é hoje o líder europeu na produção e exibição de artes electrónicas. Ocupa um vasto complexo em Karlsruhe, na Alemanha, que alberga museus de arte contemporânea, espaços de exposições, laboratórios, bibliotecas, institutos de música; acolhe artistas, designers, programadores e cientistas para o desenvolvimento de projectos de arte interactivos. Tem produzido uma vasta e complexa obra crítica e artística entre os mais recentes desenvolvimentos na arte digital do vídeo e da realidade virtual, combinando a criação artística com a exibição interactiva, com o objectivo de redefinir as noções de memória, do espaço, do corpo, do tacto ou do som. Os visitantes são chamados a reconceptualizar as relações entre o humano e a tecnologia através de uma expansão do universo digital que promove passagens constantes entre uma subjectividade cibernética e a subjectividade humana. A aposta na estratégia rizomática de expansão da ZKM é uma das principais políticas que pretende chegar a múltiplos pontos do globo, promovendo a interactividade entre espaços virtuais e reais, pessoas e culturas; um museu sem fronteiras.

 

Iconoclash: Beyond the Image Wars in Science, Religion, and Art

A visibilidade de uma imagem é a consequência de um trabalho invisível. Iconoclash foi a primeira de duas exposições organizadas por Bruno Latour e Peter Weibel no ZKM em 2002, nela exibindo e tentando clarificar essa opacidade. Discussões metodológicas entre estudos visuais, história da arte, estética e teoria da imagem envolveram profundamente os participantes e organizadores. A exposição teve a colaboração de teóricos e artistas que se dividiram em secções organizadas por curadores — Dario Gamboni, Hans Belting, Peter Gallison, Hans Obrist, entre outros — que interrogaram a política das imagens no modo como nos são transmitidas e a ligação que existe entre as imagens, físicas e mentais, que formam o imaginário colectivo.

O tema maior de Iconoclash é a problemática da invisibilidade que se esconde em todos os modos de produção, seja no domínio da ciência, da arte ou da religião.[1] A perturbação intrínseca aos trabalhos expostos, em consonância com a vasta documentação dos muitos teóricos e ensaístas que nela participaram e que trouxeram ao catálogo um conjunto de problemáticas que normalmente se encontram desconectadas, teve como objectivo maior transportar o espectador para uma zona indecidível entre a crença e a descrença, para uma zona de intensidade e contemplação na incerteza do que vê, de modo a suscitar uma interrogação sobre os meios de produção de uma imagem, a mediação das imagens, os suportes onde se encontram e os suportes através dos quais transmitem, que sempre foram tratados com inferioridade na história. Tornar pensável a mediação é tornar pensável a relação entre imagem-medium-corpo. É necessária uma abordagem diferente nas práticas de fabricação da realidade e colocar à luz de todos a importância da mediação, ou seja, mostrar que o acesso à realidade se faz por instrumentos e que somos seres de próteses. Entre arte e ciência pode haver um campo comum do qual surja uma energia transformativa que só pode ter sucesso se as naturezas conceptuais dos dois campos confluírem num terceiro domínio em que possam associar razão e visão: beautiful science and learned art.

A exposição coloca lado a lado diferentes crenças e tradições da imagem ao longo dos tempos: o reportório religioso das imagens, que vem em grande parte da religião Cristã nas suas raízes Judaicas; imagens do património Europeu da ciência; por último, o património mais móvel que vai da escultura, teatro, cinema ao vídeo, dança, fotografia e que promoveu constantemente novos modos de conceber e pensar a imagem. Através do património da Ciência-Religião-Arte somos iniciados numa viagem em três fases: a primeira, que nos convida a tomar parte de um debate entre iconoclastas e iconólatras,[2] debate de uma violência milenar; a segunda, que nos introduz nos modos de construção e de produção das imagens; na terceira, entramos num domínio para além do debate e da produção da imagem, uma experienciação de diferentes modos de resistência, distância e fusão com a imagem.

Hiroshi Sugimoto, Accelerated Buddha, 1997.

Hiroshi Sugimoto, Accelerated Buddha, 1997.

 

 Accelerated Budha, Uma Zona Iconoclash      

Dentro da secção organizada por Hans Belting, Hiroshi Sugimoto apresenta-nos Accelerated Buddha, um vídeo de 1997, feito a partir das 48 fotografias da série Sea of Buddhas, que tem a qualidade de reunir em si as três vertentes da exposição — Ciência, Religião, Arte — e que desse modo lhe serve de paradigma. O templo Sanjusangendo, construído em 1164, alberga 1000 esculturas de Budas colocadas lado a lado, de modo a criar uma ausência no centro desse mesmo espaço, através de um virtual contínuo que torna os limites do próprio espaço indefinidos. Todas as fotografias foram tiradas entre as 6 e 7h30 da manhã, altura em que a luz é mais suave e difusa, e a sequência fotográfica dá conta de um tempo cíclico de aparição e desaparição onde as imagens, praticamente idênticas, compõem uma série aberta em que o espectador é levado a comparar o que nelas há de diferente, ao mesmo tempo que se dá conta do comum que as une: «There was a very conceptual theme behind this because while they are all very similar looking, every single Buddha is slightly different.»[3] Através da fotografia, Sugimoto captura a dimensão física da luz, materializa-a e condensa-a no objecto construído. O enquadramento, a luz, as sombras negras e brancas, transportam o espectador a uma zona indecidível e incerta, a zona iconoclash:

Although Iconoclash assembles lots of religious material, it is not a theological pilgrimage; although it offers many scientific inscriptions, it is not a science museum for pedagogical wonders; although it assembles numerous works of art, it is not an art show. It is only because each of us, visitors, curators and readers, harbors such a different pattern of belief, rage, enthusiasm, admiration, diffidence, fascination, suspicion, and spite for each of the three types of images that we bring them to bear on one another. What interests us, is the even more complex pattern created by their interference. (Bruno Latour, 20)
Hiroshi Sugimoto, Sea of Buddhas, pormenor, 1995.

Hiroshi Sugimoto, Sea of Buddhas, pormenor, 1995.

Sea of Buddha, é uma extensão da série Seascapes e do seu conceito: repetição com diferenças mínimas. O conceito parte também da consideração de que uma imagem é uma janela temporal, que cada imagem, arrancada ao tempo, encerra em si um tempo próprio, implicando-nos numa relação entre o nosso lugar, o agora, e um outro lugar, o outrora: «Memory and replica. Photography is a system of saving memories. It’s a time machine, in a way, to preserve the memory, to preserve time.»[4] Em Accelerated Buddha o tempo toma uma forma acelerada; partindo de passagens lentas entre as 48 fotografias até uma rápida sucessão no final do vídeo, cria uma zona onde o olhar é transportado a outras eras e, nesse transporte, propõe-me olhar para a sua indefinição. Desse confronto nasce um aspecto intemporal das imagens. Numa imagem há sempre um gesto, um movimento de inscrição da mão humana, que cria uma imagem dinâmica capaz de nos transportar na história. Na fotografia de Sugimoto pretende-se fazer o caminho inverso, ir da imagem ao gesto, libertá-lo do congelamento da imobilidade que preserva a dinâmica intacta do gesto que a construiu. Há um poder medusante da imagem, mágico e complexo, que nos coloca num estado hipnótico, mas esse poder deve ser exorcizado de modo a restituir a liberdade do gesto que o criou. Uma constelação de relações é o que compõe uma imagem e não um arquétipo imóvel. Aproximemo-nos então do gesto de Sugimoto.            

Hiroshi Sugimoto The Hall of Thirty-Three Bays (Sanjusangendo), 1995. Conjunto de 48 fotografias.

Hiroshi Sugimoto The Hall of Thirty-Three Bays (Sanjusangendo), 1995. Conjunto de 48 fotografias.

Na divisão simétrica de Sea of Budhas, o olhar é puxado e magnetizado a um tempo anterior ao do ser humano e cai numa profunda meditação temporal. Esta capacidade evocativa de um passado muito remoto é-nos dada pela enquadramento da câmara fotográfica, pela simetria e repetição da mesma figura por mil vezes. O olhar  atraído à meditação de uma imagem arrancada ao tempo, surgida do choque entre o agora e o outrora, veda-nos a orientação espacial; a impossibilidade de orientação espacial desafia o pensamento, priva-o de palavras. A imensidade luminosa e a anulação cromática de Sea of Buddhas suspendem a aparência.                 

É importante referir o modo artesanal e meticuloso com que Sugimoto planeia os seus projectos. A idealização e concepção resulta do empenho artesanal e do controlo na determinação de todo o detalhe do processo artístico. Esse ritual está também implícito na libertação de sentido, do tempo, com que cada fotografia individual impregna o contínuo movimento de toda a série. Entre as diferentes fotografias da mesma série existe uma passagem de longínquos, feita de matéria subtil e abrindo passagem à fluidez, e onde a repetição dos mesmos motivos com ínfimas variações a pouco e pouco liberta o sentido. A espacialidade desenvolve uma estreita sinergia com as figuras e as mudanças lumínicas e perspéticas entre as fotografias desenvolvem-se dentro de um ciclo temporal repetitivo na floresta de figuras.

Uma exposição de Sugimoto mostra ao espectador duas competências primordiais. Ele não só desenha cuidadosamente todo o espaço, luz e cor que rodeiam as fotografias, como mostra uma atenção especial pelo modo como a visibilidade da sua mensagem reúne a imagem mental ao artefacto físico:

for every museum show, I try to design the space. It’s very important. It’s not just a photography show; it’s more like I’m designing the space. I just want to point out where exactly my piece has to be hanged, or against what color, what height, what kind of wall conditions. It’s just like a space sculpture. It costs a lot of money to do it, but I put it as a condition to do a show. I have to be there to fill the space. The height of the ceiling, and then the height of the wall—how much space is between the ceiling and the top of the wall—and then just wide enough for the wheelchair people to go through . . . many factors.[5] (Sugimoto)

A fotografia, tida como imagem objectiva, transforma o mundo em não-objectividade. O silêncio, a imobilidade e a redução fenomenológica de Sea of Buddhas contribuem para o duplo jogo da não objectividade do mundo em cumplicidade com o dispositivo técnico. A fotografia dá-nos essa dimensão espectral ao objecto, pois a sua superfície é a de um ser sem profundidade. Em todos os objectos existe uma potência que pode ser captada, uma impregnação que a fotografia retém. A escolha do medium, com a sua escala de cinzentos, dramatiza claramente o resultado das fotografias. Para isto contribui definitivamente a mestria de Sugimoto, que transforma o objecto numa matéria quase imaterial, num brilho longínquo, feérico, um eco visual do mundo transformado em imagem e o seu ser quase impalpável mistura-se perfeitamente às nossas impressões de espírito.

 

[1]  «En dehors de l’intérêt qu’il y a pour lui à réhabiliter la magie, à faire de la technique le pendant du religieux, et, plus tard, à extraire l’éthique de la tecnhique, la science du religieux, et, enfin la philosophie de l´eshtétique c´est la notion même d’une pluralité de modes d’existence dont chacun doit être respecté pour lui-même, qui fait toute l’originalité de cette étrange aventure intellectuelle.» Bruno Latour, Aramis, ou L’amour des techniques, Paris, La Découverte, 1992.

[2] «Iconoclash is neither an art show nor a phlosophical argument, but a cabinet of curiosities assembled by friends of interpretable objects’ to fathom the source of fanaticism, hatred, and nihilism generated by the image issue in Western tradition», Bruno Latour, What is Iconoclash ? or Is there a world beyond the image wars?

[3] https://ocula.com/magazine/conversations/hiroshi-sugimoto/ocula-enquiry//

[4] Hiroshi Sugimoto, http://www.art21.org/texts/hiroshi-sugimoto/interview-hiroshi-sugimoto-marcel-duchamp%E2%80%99s-influence.

[5] Hiroshi Sugimoto, https://art21.org/read/hiroshi-sugimoto-marcel-duchamps-influence/

 

BIBLIOGRAFIA

Belting, Hans. Por uma antropologia da imagem.

Benjamin, Walter. «Petite histoire de la photographie». 1ªed. 1931. Études photographiques, 1, Novembro de 1996: 7-38.

Latour Bruno. Aramis ou l’amour des techniques. Paris: Éditions La Découverte, 1992.

______. «A Textbook Case Revisited. Knowledge as Mode of Existence». In E. Hackett, O. Amsterdamska, M. Lynch e J. Wacjman (Eds.), The Handbook of Science and Technology Studies. Cambridge: MIT Press, 2007: 83-112.

______. «What is Iconoclash? or Is there a world beyond the image wars?». In Peter Weibel e Bruno Latour (Eds.), Iconoclash, Beyond the Image-Wars in Science, Religion and Art. Chicago e Cambridge: ZKM e MIT Press, 2002: 14-37.

______. «Mediating Political “Things,” and the Forked Tongue of Modern Culture: A Conversation with Bruno Latour», Art Journal 65(1), Abril de 2006: 94-115.

Kellein, Thomas. Hiroshi Sugimoto: Time Exposed. Londres: Thames and Hudson, 1995.

Sugimoto, Hiroshi. Hiroshi Sugimoto: Nature of Light. Ram Distribution, 2011.

 

FILMOGRAFIA

Krief, Jean-Pierre. Contacs, Hiroshi Sugimoto. KS Visions – Arte France, 2000.

O Olho Prevenido #4

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