Antes de ser filósofo, era músico de jazz. Havia em tudo o que fazia um toque de improvisação e divertimento. A Pauline Kael estava a dar aulas em Harvard e vi-o parado no meio do Cambridge Common pouco antes de serem horas da aula, completamente atarantado. «Está perdido?», perguntei, no gozo. «Esta é a Avenida Massachusetts e aquela ali é a Rua Garden.» «Sei bem em que rua estou», disse ele, como se tivesse saído de uma das comédia screwball de que tanto gostava, «mas que cidade é esta?»
Não preparava um programa. Não mandava vir livros para os seus seminários. Era informal com os ensaios dos alunos. À luz dos terríveis métodos de avaliação dos terríveis dias de hoje, seria provavelmente considerado um péssimo professor e, contudo, a presença dele na sala de aula era a mais forte que já testemunhei. O alcance extraordinário dos seus interesses — por jazz e por Shakespeare (no célebre ensaio sobre Lear, por exemplo), por comédias americanas (em Pursuits of Happiness, talvez o seu melhor livro), pela filosofia da «linguagem comum», pela inesperada riqueza filosófica de Thoreau (The Senses of Walden) e Emerson — vinha à tona em tudo o que tinha para dizer.
Dava a impressão de criar o seminário à medida que ia dando as aulas. Não tinha um plano delineado, mas, tal qual um saxofonista apetrechado de um «fake book[1]», sabia a melodia. No primeiro dia do seminário de estética em Harvard, na Primavera de 1978, começou a garatujar títulos no quadro: Of Grammatology, The Anxiety of Influence, A Map of Misreading, Blindness and Insight. Claro que podíamos antes ler umas páginas da Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant, disse ele; porém, se era nos departamentos de inglês e de literatura comparada que estava na altura a ser feito o trabalho mais estimulante sobre estética, por que não dar uma vista de olhos?
Martha Nussbaum, uma professora auxiliar que se dividia entre o departamento de Clássicos e o departamento de Filosofia, era uma das pessoas espremidas à volta da mesa do seminário. Outra era o filósofo Norton Batkin, o futuro genro de Cavell. Havia gente do cinema vinda do Carpenter Center e estudantes de literatura comparada como eu e a minha camarada Liliane Weissberg. Estava lá o produtor musical Billy Ruane, uma figura indescritível, irrequieta, e boémia. Estava lá o Arnold Davidson, futuro editor da Critical Inquiry. Clientes da livraria da rua em frente decidiam aparecer, à l’improviste, como se diz em francês.
Nunca, ou muito raramente, algum de nós falava. Basicamente ouvíamos enquanto Cavell pensava em voz alta, se esforçava com um excerto, disparava perguntas retóricas sem esperar resposta, amuava, delirava. De vez em quando, exprimia apreciação moderada. Por exemplo: admirava o modo como Derrida, com o seu horror ao sentimentalismo, havia eviscerado Lévi-Strauss na questão da primazia da linguagem oral sobre a linguagem escrita. Mas também tinha o dom de se impacientar até se exasperar. Como foi possível Derrida pensar que os argumentos de Peirce eram auto-evidentes e sair impune, se durante mais de cem anos os filósofos americanos os classificaram de impenetráveis?
Era particularmente adestrado em Harold Bloom. Exactamente de que forma o método de identificação de fontes de Bloom diferia de um livro como The Road to Xanadu, de John Livingstone Lowes, no seu rastreio incansável das fontes literárias do suposto sonho opiáceo de Coleridge? A sério que acreditámos no argumento de Bloom de que a «Ode to the West Wind» de Shelley, por falar em folhas mortas, paira de algum modo sobre Leaves of Grass? Como é que isso se prova? E porque é que Bloom evitava a leitura atenta? Seria por ser péssimo a fazê-la?
Estávamos em 1978, no auge da importação da teoria pelos departamentos de humanidades na América — o que alguns chamariam antes invasão. Os níveis de angústia eram particularmente elevados em Harvard. Yale capitulara sem abrir fogo, mas Harvard oferecia resistência. Lembro-me de Derek Bo, na altura presidente da Universidade, ter anunciado a um grupo de professores: «Jacques Derrida nunca dará aulas em Harvard!» Todos aplaudiram. Mas Cavell percebeu que havia algo a passar-se, uma fermentação intelectual que valia a pena avaliar e enfrentar. Enfrentou então Derrida a propósito de J. L. Austin e dos actos de fala «parasitas», entrou numa guerra com de Man por causa de um verso de Yeats.
Exactamente como a maioria dos críticos que o precederam, de Man enganou-se a citar o verso final de «Among School Children»: «How can we tell the dancer from the dance?» [Como se distingue o dançarino da dança?] Para de Man, era óbvio que se tratava de uma pergunta retórica, uma fusão perfeita entre forma e conteúdo. Não conseguimos distinguir o dançarino da dança. Cavell chamou a atenção para as palavras correctas do verso: «How can we know the dancer from the dance?» [Como se conhece o dançarino a partir da dança?] Para mais, não era assim tão óbvio que a pergunta fosse retórica. Na verdade, Yeats parecia estar a perguntar, tal como Wittgenstein e outros filósofos que investigavam o chamado Problema das Outras Mentes, como é que fazemos sentido das outras pessoas por meio dos seus corpos, gestos, expressões, palavras. Há maneiras de conhecer o dançarino a partir — e por causa — da dança.
Presenciar tais desempenhos era emocionante. De súbito, a leitura atenta tornava-se electrizante, um jogo de alto risco. Durante anos, segui Cavell nas minhas posições intelectuais. No meu primeiro livro, descobri em Emily Dickinson alguns dos temas — cepticismo, proximidade, o problema dos outros — que ele havia descoberto em Thoreau e em Emerson. Convidei-o a vir a Mount Holyoke dar aulas sobre Wallace Stevens, principalmente porque sabia que ele o adorava e ainda não tinha escrito quase nada sobre ele. Queria ouvir aquele brilhantismo improvisado apontado a Stevens. Do vasto repertório do poeta, Cavell elegeu para a luta o conceito de «primordialidade», a nossa sede por uma relação com o mundo que preceda preconceitos, suposições, convenções. Era a uma primordialidade semelhante, a uma reacção virgem, que o próprio Cavell aspirava naquilo que escrevia e pensava.
Encontro uma folha com apontamentos meus de uma das aulas de Cavell, enfiada no meu exemplar das Investigações Filosóficas. É o registo do pensamento de Cavell em acção, nós a beber cada palavra:
A cabeça de Austin está cheia de Wittgenstein, mas ele tenta esquecê-lo. Wittgenstein diz que os usos da linguagem são infinitos. Austin diz que são cerca de 10 000. As metáforas não podem ser enumeradas num dicionário; os idiomas podem. As metáforas não são falsas, são barbaramente falsas, loucamente, enlouquecedoramente falsas. I. A. Richards e de Man estão a tentar meter à força a palavra metáfora nas metáforas mortas. Para que servem as metáforas, afinal? É possível que haja alguém que não tenha aprendido a usar uma metáfora?
Nota do Editor: Esta homenagem a Stanley Cavell desencadeou uma série de correspondência por parte de antigos alunos e colegas de profissão. Todos concordam que Cavell era um professor singularmente carismático e impressionante, mas alguns quiseram que ficasse registado que Cavell também mostrava grande empenho na preparação das suas aulas.
[1] Manteve-se a designação inglesa por ser a mais commumente utilizada em português. Literalmente, significa «livro falso», e consiste num conjunto de partituras destinado à aprendizagem rápida de novas músicas. As partituras contêm apenas a informação básica de cada canção, daí que se associe estes «fake books» a músicos de jazz dados à improvisação.
* Traduzido por Helena Carneiro; texto original publicado em NYR Daily, na The New York Review of Books.