Roma, 12 a 17 de Dezembro de 2017, terceira edição do Premio Europa em que estou presente, primeira sobre a qual escrevo. A partir de uma condição dupla: a de espectadora afastada, capaz de entender o objecto como fruível, mas perscrutável; e a de espectadora irmanada, porque interior a tantos processos criativos (seja como tradutora para a cena, dramaturgista, intérprete ou encenadora), em quem pode produzir-se um desejo operativo, de acrescento, seja pela diferença, seja pela contiguidade. Nem sempre é claro até que ponto esta condição produz acordo e como estas espectadoras se permeiam. As questões que coloco em sequência, concretizando as impressões com que regressei, talvez ajudem a esclarecer. Agradeço a Juan Antonio Hormigón o convite para que escrevesse, sem o qual não teria dado ao atrito uma forma mais universal. *
Começo por reflectir sobre o que me parece ser um dos pilares do Premio Europa, a percepção de um espaço identitário comum. À primeira vista, há motivos para festejar a paridade e os respectivos reflexos numa concepção de cultura partilhada, com políticas e instrumentos similares, nivelamento dos recursos e fluxos de produção, contacto entre agentes. Mas paradoxalmente, numa edição com tantos galardoados, o showcase não me ajudou a reter a individualidade dos criadores, sobretudo ao nível das Novas Realidades Teatrais. Sublinho dois factos: Kirill Serebrennikov e Dimitris Papaioannou não estavam representados no programa, e Ubu the King de Jernej Lorenci foi infelizmente cancelado após a morte de um dos actores. Dos restantes espectáculos, recebi grande parte do que vi como uma espécie de paradigma de boas práticas numa dada modalidade nem sempre bem definida. UNTITLED_ I will be there when you die, de Alessandro Sciarroni, por exemplo, a que chamarei com alguma bonomia um espectáculo de malabarismo pós-dramático, está longe de ser demonstrativo de uma corrente pessoalíssima de teatro-dança, argumento de força no texto que apoia o seu galardão... Também no que respeita aos regressos se avolumou a minha sensação de que o conforto e a competência concorrem para uma certa indiferenciação. A remontagem de Hamletmachine de Bob Wilson foi porventura a ocasião mais agridoce: é que mesmo reconhecendo a rara experiência pedagógica e o trabalho destes intérpretes, finalistas da Academia Silvio d’Amico, levanta-se o problema do rigor descarnado com um elenco juvenil tão uniforme, da sobre-exposição da partitura iterativa, quando o próprio conceito de partitura já não é refrescante. Que às mãos do seu criador um trabalho com rasgo se transforme no seu sucedâneo deve fazer-nos pensar, creio. Mais do que dar visibilidade a uma Wilsonmachine, um regresso poderia, talvez, ser esse momento expansivo, longe das expectativas do circuito comercial, em que um consagrado volta a ser pícaro, temerário.
A minha segunda linha de consideração, que pensei inicialmente apresentar-se a quem conhece a cronologia e as hierarquias de montagem de um espectáculo, na verdade encerra uma questão lata de recepção. Em que casos terá sido o teatro uma experiência totalizante?, e por quanto tempo? O desejo expressamente formulado de arte total, tão prospectivo quanto nostálgico, não garante que ela se tenha produzido ou possa produzir. Como espécie, apreendemos hoje o espectáculo como um todo (quando?) ou como um objecto decomposto em signos e linguagens? As alterações à acuidade visual e auditiva, a menor propensão ao verbal em sociedades já definidas pela literacia e pelo excesso de fala, a diluição da atenção, que consequências podem ter?, que revisão semiótica podem sugerir? Não desejo que o real tome de assalto a criação (e voltarei a dizê-lo), mas julgo que pede resposta. Nesta mostra, NO43 FILTH, dos Theatre NO99, parecia querer dar-lha, sim, mas rapidamente esvaiu o seu principal recurso. E o cansaço que produz é resultado de uma vacilação identitária, de um querer ser iniciático, pantomineiro, telúrico, ligeiro, ritualista, panfletário, sem maturidade dramatúrgica. Uma resposta de fundo à reconfiguração sensorial e cognitiva dos últimos vinte ou dez anos não poderá confundir-se, julgo, com a fetichização de elementos cénicos ou com um deslumbramento tecnológico. O vídeo, a lama, não chegam a constituir-se como gesto. E por isso sobra-me a pergunta: quais os procedimentos artísticos que sensorialmente chegam hoje ao destinatário?
Por último, é oportuno referir o que mais me moveu por estes dias: as simplicíssimas leituras que Huppert e Irons fizeram da correspondência de Albert Camus e Maria Casarés e de Ashes to Ashes, de Harold Pinter; e o espectáculo de Susanne Kennedy a partir de Jeffrey Eugenides, The Virgin Suicides. Tão absolutamente diferentes propostas encontram-se num ponto crítico para mim, que é o do teatro como criador de sobressalto, de uma terra de ninguém onde fico a sós e que tem por base, recorro às palavras de Howard Barker, «the non-cerebral event of a play».[1]
Quando ocorre uma reivindicação do teatro como representação de uma cultura particular — por exemplo, no sentido a que Michael Billington alude com a expressão state of the nation —, está em causa o fomento de um reconhecimento colectivo, e o reforço do vínculo entre o objecto artístico e a sociedade de onde dimana. Pode parecer reaccionário diminuir estes propósitos num continente que mal sabe o que fazer do rosto mutável das suas cidadanias. Ainda assim, sinto o reconhecimento muito próximo da redundância; melhor dizendo, acaso não estivessem a derrapar os mecanismos políticos, sociais, religiosos, terapêuticos, talvez o teatro pudesse ser mais convictamente o lugar do estranhamento. Em The Virgin Suicides, é-o. Em plano frontal, um dispositivo que lembra uma montra e um altar, saturado de plásticos, vitrines, flores artificiais, grandes quadrados de cor, numa estética saudosista dos salões de jogos de finais de oitenta. A isto virão juntar-se um guia virtual, que convida a uma viagem meditativa, um narrador em off, projecções de youtubers e orquídeas, um tapete sonoro marcado pela melancolia, pelos sintetizadores. E resguardado neste excesso, o trabalho misterioso de quatro actores de diversas idades, eles que são as superprotegidas meninas Lisbon, actualizando não apenas a ideia de género como convenção histórica de palco, mas também o uso da máscara (desconcertantes, estas, com grandes olhos fixos de desenho animado e bocas móveis, de onde saíam vozes distorcidas e fluidos). O tempo dilatado dos actores, o seu trânsito lento, as muitas rotações sobre si, as reverências, os meneios de cabeça como os das bonecas articuladas, falam de asfixia e ritualizam o suicídio, legitimam a perplexa adoração dos rapazes narradores muitos anos depois.
A noite em que vi o espectáculo de Susanne Kennedy foi a mesma em que assumi que não veria Roma Armee, de Yael Ronen. A nível pragmático, quis reclamar tempo para que o efeito do primeiro não fosse atropelado pela euforia anunciada do segundo; mas, de facto, sublinhei como prevalecente o espectáculo blindado, estava seduzida pelo seu desafio. Na noite de encerramento desta semana de espectáculos, debates, ponderações, Irons e Huppert estiveram desfasados e isso tornou as leituras surpreendentemente cristalinas. Por razões mais próximas da vida do que da arte, em Pinter a inquirição não tardou a tornar-se patética, e o esquecimento, aparentemente leviano, reclamou toda a sua pungência. O que trouxe de mais precioso deste Premio Europa foi também isto, a exacta noção de uma alienação fulgurante.