Vi Sobre lembrar e esquecer no Centro Cultural Vila Flor, na última edição dos Festivais Gil Vicente. Sabia que me esperava um objecto colaborativo, plurilingue, nascido das práticas e vozes diversas de Paula Diogo, Sónia Baptista, Mariana Ricardo, Estelle Franco e Masako Hattori, e influenciado pela leitura de Les formes de l'oubli, de Marc Augé. Parti do princípio de que gostaria deste espectáculo, cuja génese seriam «as tarefas que inventamos para organizar as nossas lembranças». Esperava, portanto, que uma inequívoca ponte com o real e com a funcionalidade da memória fosse explicitada e estaria, julgo, bastante tranquila por ir ver um espectáculo ocupar-se de uma mecânica fundamental, reservada geralmente às neurociências ou a práticas silenciosas e intransmissíveis. A vertente tangível da memória, que desejava e em larga medida encontrei, sofreu todavia um sobressalto.

A assunção de um objecto artístico pode ocorrer no estabelecimento de relações de mutualismo. Projectam os seus criadores que haja fôlego justamente nessa concomitância entre o que pré-existe e o que se manifesta uma primeira vez. De forma mais ou menos reverente (reconstituição, paródia...), mais ou menos expressa, (citação lida, sugestão...), o objecto emergente nutre-se, mas também devolve. Sobre lembrar e esquecer não dispensou essas relações e foi pós-dramático quanto baste para apostar na parataxe, termo com que Hans-Thies Lehman designa a relação não-hierárquica entre signos e que parecia já anunciar-se: «é quase como uma jukebox de músicas, filmes ou outras zonas mais contemplativas, de reflexão.»[1] Foi ao ver convocado um material com que tenho afinidades[2] que me distraí e debati. Não por detectar um aproveitamento legitimador, não; antes porque neste caso o material coevo e vivencial rejeita o material artístico citado. Direi mesmo: quase o envergonha.

Num podcast conduzido por Alex Cassal a propósito de Sobre lembrar e esquecer,[3] Estelle Franco explica que «os filmes [integrados são] totalmente ligados com os textos escritos, para dar uma outra cor». E assim surge um fragmento do diálogo introdutório de Hiroshima, Meu Amor, filme de Resnais a partir do argumento de Duras. Se o formato do espectáculo, e o que conheço das anteriores criações das intérpretes portuguesas, consente, encoraja, a citação como procedimento, porque me criaria tanta resistência este material específico?

Um primeiro nível de reacção talvez se explique pela total ausência de elementos que o identifiquem ou medeiem, o que lhe confere o estatuto de referência geracional e «culta». É certo que outros materiais também aparecem sem contexto (julgo ser o caso da imitação da artista de rádio Tokyo Rose), mas há uma descodificação básica que lhes permite operar. O diálogo feroz e delicadamente nublado é assim descrito na sinopse de Duras: «Ela diz-lhe que viu tudo em HIROSHIMA. Vê-se o que ela viu. É horrível. Entretanto, a voz dele, negativa, acusará as imagens de mentirosas, repetindo, no seu tom impessoal e insuportável, que ela nada viu em HIROSHIMA.» Braço de ferro entre a francesa que reclama um testemunho impossível e o japonês que lho nega, o diálogo contém uma ideia do que possa ser a verdade, servindo ao mesmo tempo de cadência ao enlace entre os dois. Ela persevera no que parece ser uma enumeração objectiva, forense, das atrocidades de Hiroshima, dizendo sim, e ele investe sobre o corpo dela, implacável e brando, dizendo não. Para quem não reconheça este fragmento, o desperdício é total. Voltarei mais adiante à questão da honestidade, mas acrescento ainda que, num espectáculo vinculado ao conceito de casa[4] (e seu inevitável desaparecimento), assinado e co-interpretado em 2018 por uma japonesa, uma qualquer narrativa do país seu contemporâneo e em primeira mão teria sido preferível à inclusão de um facto histórico proficuamente exorcizado, ficcionado e ocidentalizado. Logo me ocorre a ferida supurante de que ninguém fala, o tsunami e acidente nuclear de Fukushima. Poderia Masako falar do pânico, dos evacuados, da limpeza na sombra que se estima durar mais 30 ou 40 anos? Poderia Masako, por exemplo, ajudar-nos a perceber se o perigo imediato foi a radiação efectivamente libertada ou uma enfática percepção do risco que levou ao êxodo generalizado?[5]

Um outro ponto crítico é que a relação destas autoras com a memória parece-me ter intenções muito distintas das que pressinto tanto em Hiroshima, Meu Amor, como na totalidade da obra de Duras. No podcast já referido, Paula Diogo não afirma em definitivo sobre o que é o espectáculo, mas sublinha o valor de cada contributo pessoal face a uma «História que conhecemos [e que] não é necessariamente representativa do mundo». Pode aceitar-se como até certo ponto inócua esta afirmação; já o que Duras propõe, dificilmente o seria e ela sabia-o (maiúsculas suas): «É como se a desgraça de uma mulher com a cabeça rapada em NEVERS e a desgraça de HIROSHIMA se correspondessem EXACTAMENTE.» Uma temerária equiparação de crimes de magnitude e consequências inconfundíveis dificilmente se coaduna com este espectáculo. Como, de resto, o proliferar de versões, informações, corroborações, vagas reminiscências que Duras manobra ao trabalhar eventos ou personagens: há nela uma perfídia (outros diriam: uma estética) que aqui não encontra par. E porquê? Porque tanto quanto é possível dizer, subjaz ao espectáculo uma relação honesta com o que se configura «tentativa de lembrar». Os dois materiais mais eloquentes — o caderno da avó de Paula Diogo e o retomar de uma antiga partitura coreográfica de Sónia Baptista — atestam-no; as suas fórmulas mnemónicas são primeiro úteis, musculares; só depois, cumulativa e aplicadamente, podem parecer belas.

E assim, de volta à génese do espectáculo e ao reforçado valor dramatúrgico de um documento, o caderno de uma mulher em progressiva perda de faculdades. O que chega ao público está próximo do registo diarístico, sem ser confessional ou compadecido. A escrita é atrozmente simples, desporto discretíssimo em que cada iteração pouco se desvia da anterior. E quanto mais tardia, mais desapossada, até quase só incidir nas parcelas de uma refeição. Não sei se o pudor ou a abundância guiaram a escolha final dos materiais patentes no espectáculo. Mas talvez Sobre lembrar e esquecer pudesse ter confiado numa única cor: a da experiência, não autoral e não deliberada, confiante de que o sentido de espécie do espectador saberia reconhecer-lhe a potência.

[1] A descrição é de Paula Diogo e consta de um artigo da TimeOut.

[2] Em 2014, criei e interpretei, com Teresa Coutinho, Indicação para se perder, integrado nas comemorações do centenário de nascimento de Duras. A sinopse desse espectáculo abre com uma citação que vem perfeitamente a propósito: «— O que se passou [...], não tenho meios para o saber. Nunca saberei. O que você conta, é outra coisa.»

[3] Pode ouvir-se na íntegra aqui.

[4] Confronte-se o artigo de Gonçalo Frota, publicado em Abril passado.

[5] Leia-se este passo de um artigo publicado em Junho pelo Guardian: «The government gave out no information about radiation levels and people had no idea if they were going to die. Even doctors were in the dark. “We had no information for 10 days,” says Koichi Hasegawa, a doctor at the FMU. Fearing for their lives, nurses deserted their patients. Doctors from outside would not offer help. Even the Red Cross withdrew its staff, abandoning hospitals and evacuation centres where thousands of victims of the tsunami and evacuees from the nuclear accident were gathering. Rescue supplies sent from Tokyo weren’t delivered because nobody would drive them into the radioactive “danger zone”. It only later emerged that the radiation received by the public had been trivial.» O artigo é uma súmula do livro Fallout: Disasters, Lies, and the legacy of the Nuclear Age, do jornalista Fred Pearce, livro que pode muito bem não estar isento de um viés. Pode ler-se o artigo na íntegra aqui.

a tábua, o gesto #3

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