Em Janeiro, instalou-se no claustro do Mosteiro de S. Bento da Vitória, no Porto, a criação mais recente de Josef Nadj, com cobertura jornalística alargada e rendição a priori. Mnémosyne, não se cansaram os leitores de ver dizer, prometia ser «obra de arte total»,[1] tendo dupla face, de exposição de fotografia e espectáculo. O percurso de Nadj, artista de ascendência servo-húngara radicado em França, tem sido fortemente celebrado como renovador e promotor do encontro entre universos e práticas comummente separados. Director do Centro Nacional de Coreografia de Orleães entre 1995 e 2016, presença regular dos festivais onde se fazem os grandes nomes programáveis, o currículo de Nadj impressiona. Neste caso, parece mesmo não autorizar a imprensa a tomar o pulso ao objecto. A divulgação de Mnémosyne é um desses momentos de comprovada eficácia institucional em que um comunicado substituiu o que pudesse ser, se não um discurso especializado, pelo menos a singularidade de órgãos de comunicação social diferentemente filiados, sob qualquer ponto de vista. Mais funda ainda é a percepção de que esta indistinta massa paratextual não é o que melhor serve o espectáculo. Mnémosyne luziria melhor às escuras, porque está mais próximo do gabinete de curiosidades do que de átrios apolíneos. A sua modéstia, a sua ternura, ficam comprometidas na máquina de consagração que se ergueu em seu redor. O seu humor e, mais uma vez, a sua ternura, ficam comprometidos com o propalado desígnio de uma «memória do mundo».
Começo por referir que a exposição e o espectáculo são independentes, visitados em horários distintos e com tempos de recepção distintos também. O dispositivo global de Mnémosyne é um quadrado, delimitado por uma estrutura de pinho e tela onde as fotografias estão suspensas e muito iluminadas. No centro, há uma caixa preta onde ciclicamente vinte espectadores assistirão ao espectáculo. O signo decisivo da exposição é a rã, explicada ao pormenor por Ottó Tolnai.[2] O poeta e dramaturgo húngaro decifra o objecto comum a todas as fotografias, a rã repetidamente atropelada, preservada em seco, que as crianças da geração de Nadj encontravam na estrada e usavam como moeda de troca ou cura para pequenas maleitas. Essa rã é trazida à imagem como figura animada, exploratória, palpando e contemplando as matérias comparativamente inertes que encontra — alicate, osso, tapeçaria. É uma rã tratada com amorosidade em imagens inclementes (que não deixam de lembrar-me de Paulo Nozolino): escuras, granulares, a preto e branco, infimamente texturais e compostas. A exposição, que convida a uma investigação lenta, actua como síntese de uma vida ficcionada; e apesar de uma iluminação porventura disruptiva do mistério que contêm, estas imagens não deixam perfazer o álbum de vida que a rã nunca tinha tido.
O espectáculo é breve, cerca de vinte minutos de solo que darão a descobrir o construtor das imagens. A caixa concebida para o efeito tem limitações, e portanto sensorialmente o que oferece é rudimentar, fazendo recair redobrada atenção no corpo do intérprete. A banda sonora consiste num único tema ouvido em loop, algo semelhante a uma linha de percussão e baixo que acompanha a partitura circular de entradas e saídas de cena. Em termos de caracterização e linguagem, Nadj parece-me mais próximo do teatro físico e da mímica corporal do que da dança contemporânea. A supressão do rosto com ligaduras, por exemplo; o gesto sincopado, pesado, o excessivo tónus que o anima ou a teatralidade que o suspende; a relação com os objectos, a fala frustre, a consequência narrativa, o trazer à cena o seu duplo; tudo isto sinaliza que não que estamos ao nível da abstracção de Les Courbeaux, onde um corpo longínquo se entrega a um processo ou material que deflagra o movimento[3]; aqui, todo o solo é quase tangível, por vezes tosco, e orientado para uma culminação de sentido. Vemos de Nadj muito pouca pele, só as mãos, que são lugar de um paradoxo. Grandes, vascularizadas, mas sempre rígidas, abonecadas.
Há uma simplicidade neste espectáculo de que teria sido bom falar-se. Sim, Nadj ressignifica uma memória de infância, reanima o animal estagnado através da fotografia; mas isso não configura a ambição arquivística que tanta imprensa fez supor. O espectáculo ocupa-se de reposicionar a figura humana, ao mesmo tempo que reposiciona a ideia do intérprete e coreógrafo reputado. Seria, quanto a mim, mais justo pensar em Mnémosyne como pequena indulgência, entretém; aceitar a medida do seu exercício. Precisamente porque Nadj pode permitir-se a simplicidade — e o regresso a um código comunicativo mais tradicional — na construção de um cenário onde um fantasma terno se revele.
[1] Foi de uma entrevista de Maryléne Malbert, editada e reproduzida no programa do espectáculo, que saíram as catchprases que refiro neste texto. As versões originais são as seguintes: «Tributo pessoal e transversal a Atlas — projecto inacabado do historiador de arte alemão Aby Warburg —, Mnémosyne é uma autêntica obra de arte total: ao mesmo tempo instalação, performance e exposição.»; «Mnémosyne para dizer a memória de um mundo: o mundo do coreógrafo e artista plástico Josef Nadj.» O programa pode ser lido na íntegra aqui.
[2] «O teatro de rãs de Josef Nadj», reproduzido no programa acima indicado.
[3] Este espectáculo integrou em 2011 a mostra ODISSEIA: Teatro do Mundo, uma iniciativa que juntou TNSJ, Centro Cultural Vila Flor, Theatro Circo e Teatro de Vila Real. O dossier respectivo pode ser consultado aqui.