A edição de 2019 d'os Dias da Dança trouxe ao Porto a companhia de Clara Andermatt. A cidade recebera, em Outubro de 2018, a reposição de Fica no Singelo, esse encontro vigoroso entre a dança de expressão popular e as estratégias de composição e espacialização contemporâneas, que não dá provas de ter envelhecido. Agora, Andermatt apresentou uma co-criação com João Lucas, pianista e compositor com quem trabalha há mais de vinte anos. O que chamar a este novo trabalho permanece uma incógnita: este é um espectáculo para intérpretes de corpo inteiro — de ânimo inteiro — em que os campos, coreográfico e musical, de algum modo se diluem; o gesto técnico deixa de ter pertença clara, é uma virtualidade repartida e significante. A génese do espectáculo ajuda a perceber porque convoca zonas de expressão nem sempre visitadas.
Parece que o mundo parte do último romance de Italo Calvino, Palomar, a que o próprio autor alude por meio de um aforismo: Un uomo si mette in marcia per raggiungere passo a passo la saggezza. Non è ancora arrivato. Logo aqui se intui que a categoria romance talvez não sirva com exactidão a obra... nem auspicie as suas singularidades. Neste caso, «Não se trata de transpor o livro», dirá João Lucas em entrevista,[1] antes de aceitar a «possibilidade de uma interrogação comum»: «Como é que se coloca em cena um espectáculo que olha para o mundo, que o interroga, que trabalha sobre a relação de nós enquanto indivíduos e a multiplicidade das coisas, como é que se constrói a subjectividade, a alteridade, enfim...». A resposta é possível, como João Lucas também dirá, por uma afinidade reconhecida no que toca ao compromisso entre «abstração e produção de sentido».
Ainda assim, Parece que o mundo segue a estrutura de breves confrontos com o real. Um núcleo de quatro bailarinos e três músicos (instrumentos de cordas com arco) é chamado à configuração desse real num exercício em que a construção, a experiência e o testemunho da experiência co-ocorrem. Quero frisar a noção de real porque é fácil perdê-lo de vista, transmutado como nos aparece: o gorila albino, que Palomar recorda ter visto no jardim zoológico abraçado a um pneu, transforma-se num solo de voz e violoncelo, transferindo para o diafragma e para o instrumento o hábito pungente de um animal que se apazigua; os amores das tartarugas, que Palomar espreita no jardim, convertem-se num misto de serenata e perseguição entre violinista e bailarina, com a cumplicidade rítmica e melódica das restantes cordas até ao culminar do gag, uma balada de Elvis Presley; o olhos e os planetas, um dos capítulos de maior deslumbramento cósmico, justapõe dois movimentos: os músicos, deitados no chão, sobem alternadamente numa escala cromática, e as bailarinas giram sobre eles, segurando nos dedos pesadas bolas de bowling. Esta vertigem das esferas é um dos momentos em que o fôlego se altera, mas mais, é um exemplo eloquente do tipo de operação que o espectáculo encerra: um mesmo objecto pode ser trabalhado de modo vibrante na sua realidade material (peso), simbólica (planeta) e estrangeira (bowling). Não resisto a citar o próprio Calvino:
Que exista a girar no céu um objecto tão diferente de todos os outros, uma forma que atinge o máximo de estranheza com o máximo de simplicidade e da regularidade e da harmonia, é um facto que alegra a vida e o pensamento. (Calvino: 2001, 46)
E, no entanto, o fulgor do mundo decorre à margem do sujeito. O espectáculo fica porventura aquém ao atribuir a um dos intérpretes a personagem Palomar sem cuidar a sua relação com o real reconfigurado. O fio que percorre o romance (indagação, agitação, concepção, cisma...?) é a sua espessura, confere à personagem ambição e ridículo. Além disso, uma das questões que assalta o leitor de Palomar é a distinção escorregadia entre personagem e narrador, narrador e autor. O Palomar ironicamente apontado no índice (Palomar na praia, Palomar vai às compras, Palomar no jardim zoológico) está longe de ser apenas o protagonista dessas vivências de foro infantil.[2] O narrador omnisciente permanece alheio à experiência (parece heterodiegético), mas acede a Palomar, cita-o, revela-o. E quando, mediante a observação da cópula das tartarugas, o concreto dá lugar a uma meditação (terceiro grau de experiência, explicado em nota por Calvino), é inequívoco que o autor se insinua[3]:
Quais possam ser as sensações de duas tartarugas que acasalam é coisa que o senhor Palomar não consegue imaginar. (...) O que será o eros quando no lugar da pele existem placas de osso e escamas córneas? Mas mesmo aquilo a que nós chamamos eros não será talvez um programa das nossas máquinas corpóreas, mais complicado, apenas porque a memória recolhe as mensagens de cada célula cutânea, de cada molécula dos nossos tecidos, e as multiplica, combinando-as com os impulsos transmitidos pela vista e com os que são suscitados pela imaginação? (...) O eros é um programa que se desenrola nos meandros electrónicos da mente, mas a mente é também pele: pele tocada, vista, recordada. E as tartarugas, fechadas no seu estojo insensível? (...) Talvez o eros das tartarugas siga leis espirituais absolutas, enquanto nós estamos prisioneiros de uma maquinismo que não sabemos como funciona, sujeito a entupir-se, a encravar-se, a desencadear automatismos sem controlo... Compreender-se-ão melhor a si mesmas as tartarugas? (Calvino: 2001, 28)
O Sr. Palomar do livro, que conhece o eros, a caminho da sabedoria vai roubando a si mesmo a fruição simples de cada momento; no espectáculo, resulta uma presença fantasmática, desirmanada, porque suprimido o pensamento que irrompe em fala, no que contém de interrogação comum ao narrador e ao autor. Este é um eixo fundamental, a exposição do pensamento como forma de lirismo e sabotagem. A vulnerabilidade dos olhos que olham, ligando as experiências entre si, teria mitigado a sensação de fenómeno avulso que acaba por se instalar.
Relevando tudo isto, Parece que o mundo talvez seja um Palomar alternativo. A exuberância das paisagens sensoriais que constrói acende o desejo de estar lá dentro. Por contraste, as braçadas tépidas de Palomar ao cair do dia — não de quem imagina o sol como seu, mas de quem prematuramente aprendeu a estar morto — não contrariam o aforismo de Calvino. Há algo de fabuloso e desejavelmente tangível, comestível, em Parece que o mundo, algo como um convite à deslocação. Terão Clara Andermatt e João Lucas lido os parágrafos finais de Seis propostas para o próximo milénio? Ou estarão eles de outra forma codificados em Palomar?[4]
(...) oxalá fosse possível uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada de um eu individual, não só para entrar noutros eus semelhantes ao nosso, mas também para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na Primavera e a árvore no Outono, a pedra, o cimento, o plástico... (Calvino: 1992, 145)
Uma mulher e um homem puseram-se em marcha. Por intuição ou leitura, creio que foi aqui que chegaram.
[1] Entrevista de Pedro Mendes para o Coffeepaste, publicada a 11 de Novembro de 2018.
[2] Dayse Silva corrobora esta ideia quando afirma que «Palomar pode ser considerado, sob determinados aspectos, como um paródia de forma». (Silva, 18)
[3] Bruna Fontes Ferraz observa, a respeito destas relações: «A literatura se instaura na passagem do eu ao ele, um ele que hospeda o(s) seu(s) eu(s): A nosso ver, Palomar, além de ser uma autobiografia em terceira pessoa, é uma narrativa que se dá num tempo presente sem qualquer tom de rememoração, como se fosse uma autobiografia da vida em movimento.» (Ferraz, 105)
[4] Destas duas obras como «faces de um mesmo Calvino» se ocupa aprofundadamente Dayse Silva, na dissertação já citada.
Referências
Calvino, Italo (1992). Seis propostas para o próximo milénio (Lições americanas). Lisboa, Teorema.
___________ (2001). Palomar. Lisboa, Editorial Planeta DeAgostini.
Ferraz, B. F. (2010). «Os exercícios de Palomar para uma autobiografia total». Literatura em Debate, v. 4, Dossiê Especial, p. 103-111.
Hellman, R. M. (2010). «O olhar pós-moderno: uma leitura de Palomar». Anuário de Literatura, ISSNe: 2175-7917, vol. 15, n. 1, p. 50-62.
Silva, D. M. R (2008). Uma leitura de Palomar, de Italo Calvino (dissertação de Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Brasil.