É o biógrafo Ruy Castro quem assim recorda Nelson Rodrigues, aguardando no saguão do teatro Maison de France, interpelando os espectadores que saíssem a meio de O Beijo no Asfalto. Indício de um polemista puro ou de um autor desafectado? Não sei dizer. Foi em 1961, no Rio de Janeiro, ao longo de uma carreira que completou sete meses — o maior sucesso do dramaturgo em vida, e espectáculo decisivo para o recém-formado Teatro dos Sete, que integrava Fernanda Montenegro. Esse mesmo texto originou em 2018 uma nova e hábil adaptação ao cinema assinada por Murilo Benício, ator burilado, em estreia absoluta na realização. E foi no Queer Porto*, o irmão mais novo do Queer Lisboa*, que o filme foi exibido numa sessão extra-competição, em diálogo com O outro beijo no asfalto, performance de Tales Frey. À boleia desta sessão e da conversa que se lhe seguiu, registo algumas notas.
1. O beijo entre um moribundo e um transeunte compassivo transforma-se num coming out forjado entre a polícia e a imprensa. O caso não tem motivação pessoal, rege-se por circunstâncias prementes: o delegado tem de lavar a imagem, o repórter tem de vender, cria-se um caso. Resumido desta forma, o filme seria uma escolha óbvia para o festival. E, no entanto, a figura de Nelson Rodrigues gerou e gera fricções. A simpatia expressa pela ditadura militar brasileira foi, porventura, o primeiro entrave ao reconhecimento cabal da sua obra. Se O Beijo no Asfalto confirma a sua agudeza psicologista, o músculo do seu fraseado, lírico e permeado de quotidiano, expõe também o roteiro singular dos seus anos formativos.
2. A preto e branco, alternando o ensaio de mesa e a mise-en-scène, Murilo Benício constrói o filme dentro de um teatro. Somos recordados de Brecht e de Dogville, de Lars von Trier, na exposição do tabuleiro de jogo em que a rodagem assenta. A câmara demora-se sobre a leitura dirigida por Amir Haddad (actor, encenador e fundador do Teatro Oficina) e pontuada pelos comentários de Fernanda Montenegro, Selminha no espectáculo original, agora D. Judith, a vizinha novidadeira. O insight de ambos alimenta um edifício comum a todo o elenco e ajuda a recortar pelo menos duas entidades rodriguianas: a noiva e o repórter, Amado Ribeiro. Amado Ribeiro é, na verdade, uma figura-chave da peça e do jornalismo brasileiro. Porque existiu, gabava-se até de ser muito pior do que a personagem, e não jogava isolado. Foi, possivelmente, um dos mais destros numa estratégia concertada, que passo a expor:
Clareza, precisão, objetividade, concisão, simplicidade, ordem direta e imparcialidade são regras do jornalismo atual, que nas décadas de 20 e 30 ainda não faziam parte da profissão de jornalismo. (...) O tom folhetinesco e a linguagem muito próxima à linguagem literária eram características do jornalismo brasileiro dessa época. (...) As reportagens que retratavam casos cotidianos, acidentes, afogamentos, atropelamentos e brigas de rua, eram muitas vezes incrementadas por elementos folhetinescos, como mortes sangrentas resultantes de amores proibidos. (Quental: 2005, 11-12)
Era através da reportagem policial que a prática jornalística galgava fronteiras; o incremento, a dimensão especulativa, quando não a falsidade, operava na proporção inversa aos factos apurados:
A falta de criminosos e assaltos fazia com que o jornalismo policial de jornais como A Manhã e Crítica publicassem muitas vezes fofocas, e em casos mais extremos até mesmo mentiras. O repórter era estimulado a mentir para tornar mais interessantes os fait-divers ocorridos na cidade. (Quental: 2005, 13)
O que o filme tem de mais lancinante são as cenas em que Amado Ribeiro mente, tão convicto que as suas vítimas quase o acreditam. Otávio Müller é soberbo a terraplanar a fibra moral das personagens com quem contracena. Nas falas de Müller e de Augusto Madeira, o delegado, a retórica da mentira é límpida; replicável, em método e ritmo. Perante diálogos destes, é de temer que a difamação acabe revigorada.
3. Filho de um destacado jornalista, Nelson Rodrigues ocupa um lugar na redacção do jornal A Manhã aos 13 anos e meio, sob alçada do seu pai e patrão. Faz-se repórter policial, só depois cronista, depois dramaturgo. O Beijo no Asfalto integra convenientemente o ciclo de Tragédias Cariocas por herdar o contraste firmado em décadas anteriores: uma imprensa que encarna o tonitruante engodo da cultura de massas num meio pequeno-burguês seguro, pacato e crédulo. As «vizinhas gordas na janela, fiscalizando a vida dos vizinhos, solteironas ressentidas, viúvas tristes, com as pernas amarradas com gazes por causa das varizes, velórios feitos em casa, com viúvas chorando desesperadamente pelo defunto» (Watson: 2011, 33,) que Nelson Rodrigues conhecera em jovem, são vítimas e consumidoras deste jornalismo.
4. Em 2019, o texto emerge do filme como um exercício de presciência. Mas afinal já tudo aconteceu...! Pior, o que serve de aviso em O Beijo no Asfalto não escapa ao paradoxo. O carácter predatório da notícia e dos seus fautores é sublinhado, sim, pelo mesmo Nelson Rodrigues que repetidas vezes exprime nostalgia da velha imprensa. É o lamento de um ficcionista escolarizado na reportagem policial empática que transparece aqui:
Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. (...) E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver ainda quente. Uma bala arrancara seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto da manchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete. (Rodrigues: 1980 apud Watson: 2011, 42)
5. (O que fazer de Nelson Rodrigues? Choraria ele as catástrofes que a sua mão urdia, ele que sabia perfeitamente como um destaque se transformava em refrão? Não foi o primeiro beijo... nem foi a primeira vez!)
6. O que fazer de Nelson Rodrigues? Tales Frey persiste nessa pergunta. Desconfortam-no a misoginia e o reacionarismo. E, no entanto, recriou um beijo em praça pública vestido de noiva, sucumbiu a essa entidade. Teria a noção de ter convocado o Eusébiozinho, de «Delicado»? Tales e Tânia Diniz mantiveram à chuva um beijo ininterrupto, recebido sem a aspereza de há dez anos atrás. Da porta do teatro Rivoli, sobressaía um grupo de adolescentes, que foi ficando, que aplaudiu e cantou um velhíssimo chiste: «Olha os namorados!... Primos e casados!»
7. De volta ao biógrafo, procuro definir o lugar da sede:
Ninguém conseguirá penetrar no teatro de Nelson Rodrigues sem entender a tragédia provocada pela morte de Roberto. (Castro: 1992, 92)
«- Como é que um jornal, papai! E o senhor que defendia tanto o Samuel Wainer! Como é que um jornal publica tanta mentira!» Para que Nelson incluísse essa fala numa peça enquanto empregado de Samuel Wainer e do jornal, só poderia haver uma explicação: excesso de independência — ou de inocência. (Castro: 1992, 294)
Talvez pouco ofenda, nesta e noutras peças, se pudermos aceitar a simultaneidade do algoz e da carpideira.
*Integro a equipa de programação dos Festivais Queer Lisboa e Queer Porto, que em 2019 assinalaram respectivamente a 23ª e a 5ª edições.
Referências
Castro, Ruy (1992). O Anjo Pornográfico. São Paulo, Companhia das Letras.
Rodrigues, Nelson (2006). Teatro desagradável. Lisboa, Cotovia.
Quental, Irene Bosisio (2005). Flor de Obsessão: as reportagens policiais do jovem Nelson Rodrigues (dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Rio de Janeiro - PUC-Rio.
Watson, Alexander Francis (2011). A Letra como ela é...: o desafio de traduzir os contos de Nelson Rodrigues para o inglês (dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de Rio de Janeiro - PUC-Rio.