The sense of an erotic self is a very powerful barrier against accepting the imposition of duty and authority; just preserving that little private corner can save a person from whatever monstrous situation they're in.

 

The perception of others, right from the beginning, you feel empathy as soon as you realize you are in the world. You see how others express their body movements, you feel in your own body —when you see them make a gesture or expression—you feel what it feels like in yourself. And so, right from the beginning, all of our understanding is empathetic. There is no awareness of the world which isn't also assimilating the empathetic view of others. You feel their need for justice the same way you feel it for yourself. And that's one of the things that has to be educated out of people, the tendency to feel, unity with everyone you know. Because you wouldn’t have the proper acquisitive behaviour, you wouldn’t fit into a society in which inequality is a virtue.

Raymond Peat, Generative Energy Livestream #27, #36

Quando, em finais de Abril, escrevi ao editor da Forma de Vida, estávamos em pleno estado de emergência. O teatro tornara-se inexequível e o reinício da actividade cultural não era de prever. Escrever sobre o que tinha visto a curta distância também já parecia perfeitamente nostálgico, que o movimento dominante era de trânsito. Uma euforia incansável tratou de instaurar a cada vez menor distinção entre actos comunicativos rotineiros e aqueles por que ainda tenho reverência. Impedidas de abrir portas, as salas mais obrigadas para com o público desdobraram-se em emissões de que preferi resguardar-me, com muitos espectáculos a reclamar os mesmíssimos canais por onde se fez o meu domingo de Páscoa adaptado. Nesse afã de produção e consumo, as consequências espirituais (é o melhor termo) da migração não parecem ter tido grande relevo. Estamos agora em meados de Outubro e o que posso registar não é um panorama do que se fez e como; será antes uma crónica de várias obstinações em que me vi neste período. E porque não me atenho a um domínio estrito — atrevo-me a ser mais pessoal do que seria ajuizado — fica o leitor prevenido de antemão.

 

Trabalho

Grande parte do que faço, seja em teatro, seja em cinema, só é possível em lugares propositadamente dedicados a acolher uma parecença de vida: salas escurecidas, plateias, bastidores, régies. Não é casual que tantas experiências decisivas, de ordem estética e amorosa, aconteçam ali. A presença não é negligenciável; sobretudo, a presença predisposta, voluntária, permeável. Se publicitários e ideólogos não o esquecem, devem esquecê-lo os programadores e gestores dos nossos espaços culturais? A um primeiro apagão, seguiu-se um discurso público quase exclusivamente dedicado às precárias condições em que vivem demasiados trabalhadores do tecido artístico português. E se há mérito em escancarar essas condições, e no inequívoco esforço de assistência que originou, houve uma oclusão incrível, dolorosa, a nível simbólico. Eu, que não sou diferente de tantos intermitentes, não aguentei estar em mais do que uma manifestação. Mesmo ao ar livre e perante os meus pares, senti que era uma insolência não estar de máscara. Mas como, pensava, se há um problema gritante de invisibilidade da classe...? No pouco que fui ouvindo, legítimos pedidos de resposta à emergência, sim, mas contei dois grandes ausentes: o reclamar do direito ao trabalho e a imaginação. Se há cerca de 20 anos a minha cidade se mobilizou para impedir a venda do coliseu a um culto suspeito, porque não nos acorrentámos agora? Porque não fomos desta vez bater à porta das salas que queremos abertas, pedindo que nos deixem entrar para construir essa potência de soma ou saque, ou fruir dela? Porque aceitaram, as equipas que dirigem estes espaços, formatos alternativos e sucedâneos, em vez de protegerem a sua vocação original? Ao articular estas questões, percebo que há muito de arcaico na minha resistência a uma cultura de produtos, de entregáveis, que abraça os ares do tempo com tanta diligência. Dei por mim a reler um texto escrito em Março de 2016, num momento falho de soluções em que procurei emprego fora do país. Então, como agora, algo do que queria fazer devia tornar-se leve, menos refém de ter encontrado casa, mais cioso da sua solidão:

Sonho com um teatro que não é anunciado, um teatro que prescinde das convenções e circunstâncias que imediatamente precipitam o seu reconhecimento enquanto espectáculo. Seria um teatro profundamente entranhado no quotidiano, autónomo porque não envolve aplausos nem bilhetes; um teatro que de bom grado correria o risco de passar despercebido e, no seu melhor, espantaria, surpreenderia, comoveria ou aterraria tanto quanto pode um encontro com um desconhecido. Ainda que eminentemente público, este teatro tem de abolir as instâncias oficiais da observação: pode, consequentemente, dar-se ao luxo da repetição. É um teatro de forma duracional e que acontece independentemente de um horário previsível: quaisquer horas do dia são potencial horário de trabalho e seria esperado dos actores que trabalhassem por períodos de quatro horas diárias. Escusado será dizer, qualquer local é um potencial local de trabalho, porque este teatro pode acontecer na padaria, no talho, na drogaria, na bomba de gasolina, em parques de estacionamento, em átrios de hotel, em autocarros. Não pretende ser sensacionalista nem faz comentário social sob forma de guerrilha, mas, como se atreve a ir para lá das regiões habitualmente demarcadas, pode ser confundido com isso. Mais uma vez, este é um teatro que não teme ser discreto: porque não duvida dos seus poderes inatos, prescinde das salas; assenta no ofício sagrado do actor e, como tal, atreve-se a pôr o actor no mundo desabrigado, desajudado, uma quase miniatura, trabalhando a sós. Seria um teatro de negligência social, esquecido de qualquer expectativa dos seus eventuais observadores. Usaria o drama como matéria primária, porém, ao invés de privilegiar a experiência do drama na íntegra, exploraria a experiência dos seus vestígios. Este é o tempo para um teatro de iniciativa mínima, íntima; o tempo para um teatro perante si.

 

Não será demais dizer que esta visão surgiu em resposta a um enunciado muito favorável:

Tell us about your artistic vision for your ideal theatre or theatre company. Imagine there are no budgetary or other restrictions. 

Correspondência

Falei menos ao telefone do que era expectável. Quem em alguns dias me aplacou a ira foi a Regina, sei-o bem, e duas longas conversas com a Alexandra devolveram-me chão comum. Mas, maioritariamente, a minha fala fendia, alienava. Ouvir-me propor um rácio custo-benefício tão diferente de tudo o que se dizia deve ter sido bizarro, reconheço. Do meu lado, não pude deixar-me agredir por discursos tingidos de um novo maniqueísmo. Fui calando. O desgaste dos olhos em seis meses tem como grande compensação um corpo de cartas, mensagens, fórmulas, mapas. Posso agora reconstituir-me em meia dúzia de golpes, posso perceber a expressão finalmente sem desvios. Teve um destinatário diferente, cada um destes passos:

 

Desobediente quanto baste para respirar.

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Tudo o que sou e não varia senti muito fundo nestes meses.

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Tudo o que é invariavelmente eu ressurge e baralha o que fui construindo:

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Neste terceiro andar (...), ouço a berraria das casas sobrelotadas, dos cães nervosos, da falta de dinheiro. O meu prédio não tem elevador e S. Roque, apesar de algumas casas realmente palacianas, não tem elevador social.

Aqui é muito claro que o trabalho que posso fazer, íntimo e profissional, é o da aristocracia do coração.

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Tudo o que lemos sobre a inviabilidade do amor está à vista no coarctar dos movimentos.

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A sensação de que prescindiria de qualquer segurança se um corpo conhecido viesse ter à minha porta, esta carência de saliva hoje, torna o encontro comigo o mais perigoso. Esta rebeldia táctil, és a primeira a quem confesso.

Nexo e Consolo

Dir-se-ia que quem escreve assim não atravessou uma pandemia. E talvez não, talvez não a mesma. A quem já quebrou a barreira lipídica da pele, a quem tenha de aprender a lavar-se menos, a vigilância higienista não é possível. A quem viva rente à cidade industrial extinta, com edifícios decrépitos e tuberculose activa, o medo toca de outra forma. A quem não ignore a pobreza e o bolor, fere mais a ordem de fechar os jardins. Quem ama a cidade, o que nela dói e enxuga, rejeita tantas vias proibidas, exige rigorosa separação entre prioridade e oportunismo. E por isso, entre as alegrias improváveis deste ano, uma face sobrevivente do meu trabalho, o Queer Lisboa e o Queer Porto terem decorrido de forma (quase) imaculada. Sem cedências naquilo que fundamentalmente move estes festivais, a reivindicação do espaço público para expressões e possibilidades de vida ainda hostilizadas. E aí, sim, bateram-nos à porta: «Há mais actividades? Há festas? Não têm catálogo? Porque é que não soube? Onde é que está a divulgação?», etc., etc. Este público cidadão que não abdica de lugares de encontro, lugares onde possa exercer empatia, tem qualquer coisa a recordar aos que dão a liberdade por adquirida. Tem qualquer coisa a recordar-me a mim, para que eu saiba que prescindir não resolve. É preciso estar, estrear uma camisa, por mim, pelo João, pelo Cristian, pelo Daniel, pelo Pedro. Pelo André, pela Fernanda, pela Catarina, pelo Francisco, pela Amanda. Pela Andreia, pelo Juão, pela Joana, pela Laetitia. Entre mim e eles, entre mim e os que não têm nome, entre mim e os lugares vazios, a ameaça fulgurante de um abraço.

A tábua, o gesto #7

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