O texto que agora se reproduz esteve sete anos inédito. Trouxe-o à tona a apresentação do Ciclo Phia Menard no Teatro Municipal do Porto, momento de abertura da Temporada Cruzada Portugal-França 2022. Inicialmente, ocorreu-me fazer dialogar a recepção de dois espectáculos com declaradas afinidades, P.P.P., o mais antigo, e o recém-estreado Saison Sèche. Mas ou porque Saison Sèche seja, efectivamente, um objecto de menor mérito, ou porque sete anos roubaram alguma capacidade de assombro, o diálogo ficou comprometido. Publica-se portanto, com edição mínima, o registo de então, na língua de então, que concorre para situar Phia Menard e a sua Compagnie Non Nova no plano da criação actual mais inquieta, dando notícia de um exímio antecedente deste ciclo.

  

Quando em 2008 assinou o espectáculo P.P.P., Phillippe Menard vivia um momento decisivo. Demarcava-se da estabilidade do seu percurso anterior em teatro, dança e malabarismo para começar um novo ciclo de criações dedicado ao comportamento de matérias como o ar ou o gelo; anunciara também que mudaria de sexo. P.P.P., que se decompõe em Position Parallèle au Plancher (título inglês, Perrilous Paralell Position, sendo o mais próximo em português Posição Paralela ao Chão), vive na intersecção desses dois marcos, o do questionamento das especialidades e dos formatos no circo contemporâneo, que deu origem ao ciclo ICE — Injonglabilité Complémentaire des Elements — e o do advento de uma nova inteireza onde sentimento íntimo e corpo público são já um contínuo. Ficção, autobiografia, metacirco, declaração política, todos se encontram num espectáculo de rara invenção.

O dispositivo repete o elemento gelo na composição de um habitat inclemente: um firmamento de esferas, dois grandes blocos translúcidos, flocos, limalha. Há ainda os objectos que — pela escala primeiro, depois pela intervenção — assumem um papel tanto oracular como autoritário: três frigoríficos ao fundo do palco e, à boca de cena, um vestido endurecido, oco. Neste dispositivo, vemos mover-se uma criatura que não sabemos quem seja (o guardador, o zelador do gelo?). Vaga reminiscência de O aprendiz de feiticeiro, de Goethe, deixado a sós e tentado a manejar o que mal domina. 

A história condensa duas linhas de acção, actos instigados e acontecimentos aleatórios. Os frigoríficos, dotados de motores independentes, acendem, irrompem pelo espaço, indicam, convidam. Guardam esferas de gelo de tamanho variável e funcionam também como quarto de vestir. A manipulação das esferas ou a prova de um vestido são neste caso exercícios equiparados, ambos podem tentar-se repetidamente e ambos são imperfectíveis. A criatura instruída nunca se mostra um protótipo da destreza ou da fluidez, nem poderia; o gesto técnico, tanto como o lúdico, está sempre refém, carrega a volubilidade da matéria e o perigo da lesão. A paisagem sonora prolonga este desassossego. Ouvem-se apitos como os de monitores hospitalares, sinos, restos de conversas telefónicas, gargalhadas, prolongamentos vocálicos. O elemento de maior recorte é uma boneca a repetir-se com a aspereza das vozes sintetizadas, que declara: “My name is Lisa, Lisa.”

Phia faz uma demonstração cabal da dimensão performativa do género, treina, desgasta-se, só momentaneamente se distrai de uma ideia de feminino ambicionada. No entanto, e de um modo mais universal, é a condição aproximativa da identidade o que mais ecoa. À medida que a sala dissipa o frio original e o habitat se transforma (como é estranho pensar que a temperatura do público influi naquele berçário!), a criatura fica à mercê das esferas que caem e se estilhaçam, ao mesmo tempo que o vestido paradigmático perde forma e pode vir a ser usado. O palco a preto e branco do Monfort vai abrindo o caminho voraz, e nem por isso menos ridículo, que os inquietos percorrem até ao conforto de se reconhecerem. O que o espectáculo reitera de trágico radica em toda a tentativa ser dócil, mas não mais que tentativa.. Em P.P.P. há um horizonte — potencialmente adquirível, materialmente dificultado.

Em 2015, muito pouco em Phia nos faz suspeitar ter havido Philippe. Mas ver hoje em cena o homem-que-se-adestra-mulher está longe de ser apenas mnemónica. P.P.P. transporta outro nível de desejo e devir: de mais criação inteligente, transfronteiriça, em que o tecido pessoal irrompa pela técnica, em que até as especialidades estáveis e geralmente inócuas possam ser o lugar da ontologia.

 

*Paris, Le Monfort, 13 de Março de 2015, lotação esgotada.

A TÁBUA, O GESTO #9

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