Gostaria de começar por dizer que falar de corpo nu em artes performativas implica reconhecer que há um corpo nu jurídico e um corpo nu simbólico[1]. Esses outros corpos definem um campo lexical, semântico, associativo e interpretativo com que o corpo nu performativo está em permanente tensão. Veja-se como está enunciado o artigo 212º do Decreto-Lei nº 400/82 de 23-09-1982[2]:
Artigo 212.º - (Exibicionismo e ultraje público ao pudor)
Quem, publicamente e em circunstâncias de provocar escândalo, praticar acto que ofenda gravemente o sentimento geral de pudor ou de moralidade sexual, será punido com prisão até 1 ano e multa até 100 dias.[3]
E veja-se agora como a redacção do Decreto-Lei n.º 48/95 reidentifica e amplia o espectro da nudez pública[4];
Artigo 170.º
Importunação sexual
Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.[5]
Assumindo que o quadro legal das sociedades ocidentais seja relativamente concordante com a lei portuguesa, a condição «natural» dos seus corpos humanos é uma condição social e abarca um conjunto de modos de estar vestido. A condição das artes performativas é, então, a de anomalia, porquanto nelas se representa, imita, quando não realiza efectivamente, um conjunto de acções que o público reconhece em sociedade como delitos, e em que a exposição do corpo nu também se inclui. Sou inevitavelmente recordada da aspiração de um dramaturgo a que tantas vezes regresso, Howard Barker: «...for the theatre to become an illegal space».[6]
Estando na presença dos organizadores, que melhor do que eu poderão falar da génese do livro e da sua divisão interna em três zonas de incidência (com os subtítulos poéticos «a pele pensada», «a pele lida», «a pele vista»), prefiro apresentar algumas ideias que contornam esta divisão e o percorrem transversalmente. Não as apresento por ordem de importância, é possível que esta sequência seja de ordem afectiva e, portanto, injustificável.
1. Que corpo é um corpo nu? O que é a nudez cénica? Os problemas de definição e de mutabilidade da matéria em mãos originam definições pela negativa: «O corpo nu não é necessariamente erótico, nem frágil, nem necessariamente violento ou violentado. Contudo, somos levados a associá lo a estas dimensões por normas dominantes de comportamento e perceção social», dir-nos-á Rui Pina Coelho; a que acrescento a observação de Arnaud Rykner: «Porque a nudez não é um objeto mais ou menos definível cujos contornos possam ser ajustados pela própria reflexão. Nem há certeza de que ela exista propriamente.»
2. As artes performativas participam de um esforço continuado, e diverso nas suas estratégias, de conceptualização do «nu artístico»: legitimar o nu é um processo que decorre em contiguidade com as artes visuais – pelo que vários autores referem o historiador de arte Kenneth Clark e a distinção, que consideram feliz, nu/despido, nakedness/nudity; a legitimação do nu também decorre, pelo menos no início do século XX, na vizinhança de espectáculos que talvez possamos designar como de arte popular e entretenimento (vaudeville, music-hall, variedades, revista à portuguesa) em que a tolerância (do Estado e do tecido social) ao corpo nu é maior e acompanha certa expectativa «libidinal» do público.
3. Em distintos períodos, seja a nível textual seja a nível de resolução cénica, as artes performativas dão testemunho de que há uma diferença muito produtiva entre o corpo efectivamente nu (em vários autores, surge a expressão «nudez bruta» para designar tal efectividade) e «o corpo percebido como nu» ― a percepção do nu ligada a uma codificação que desde Aristófanes passa por elementos de figurino e adereços ― calções, malhas cosidas rente ao corpo, fatos acolchoados e falos postiços, mas também o maillot, peça sobre a qual recaem as maiores ambiguidades, na medida em que insinuava e apimentava o corpo que recobria. Este livro concorre para um estudo premente do que constituiu, e tomo emprestada outra expressão de Pierre Letessier, «um figurino da nudez», registando as diferenças e a progressiva rarefacção desse figurino ao longo do tempo.
4. O corpo nu em cena acontece ao espectador. Se Roland Huesca, a propósito da dança contemporânea francesa a partir dos anos 90, afirma «esta nudez perturba e comove. Interpelando a nossa própria nudez, modifica a forma como percebemos, sentimos, experimentamos e raciocinamos», Luís António Umbelino alude a «o intercâmbio de corpos na nudez», e faz este diagnóstico: «O plano mais subterrâneo da nossa corporeidade corresponde a uma vocação silenciosa de conivência ou de pertença dinâmicas ao que nos interpela no mundo que nos rodeia» (negritos meus). Creio que é também de interpelação, de reversibilidade e de comunidade que fala Fernando Matos Oliveira na sua análise de um espectáculo de Mónica Calle, e cito: «A nudez está em relação essencial e contígua com um processo de (auto)conhecimento, uma emanação profunda da partilha, que tem como condição a confiança, a sinceridade e a consideração plena (pelo corpo) do outro.»
5. A relação entre o corpo nu e formas de exercício da violência é quase uma inevitabilidade do ponto de vista da recepção, como apontará Rui Pina Coelho: veremos que em diversos ensaios o corpo do escravo na Antiguidade, o corpo do negro colonizado, o corpo de Cristo, se constituem como corpos prontamente despidos para a afirmação de uma relação de poder e para o infligir de maus tratos, «um corpo que caiu em desgraça», como dirá Cláudia Madeira; no caso dos corpos negros, o ensaio de Sylvie Chalaye vem complicar esta ideia de corpo desapossado (ou despossuído) juntando-lhe a conotação de selvajaria, primitivismo e exotismo erótico.
6. A relação entre um espectáculo e os registos visuais que em torno dele se produzem. A este respeito, há um certo número de problemas distribuídos por vários ensaios: um primeiro problema diz respeito ao marketing da nudez, não raras vezes assente em imagens falseadas, fruto de pose e de promessas inflacionadas e não cumpridas em cena; um outro problema prende-se com o facto de que a obra performativa é refractária a ser registada e que o registo dificilmente a reproduz: a propósito das performances de Elisabete Mileu, Claúdia Madeira constatará que o rasto fotográfico apenas permite criar uma «imagem imaginária» do que tenham sido. Ora, se não surpreende que a fotografia de espectáculo possa influir sobre a imaginação do potencial espectador ― e fazê-lo de forma deliberadamente manipuladora ― Paulo Ribeiro Batista fala-nos de um caso inverso, da actuação do fotógrafo Silva Nogueira como instigador dos processos imaginativos dos intérpretes; é com grata surpresa que se descobre que uma progressiva assunção do corpo nu, e uma crescente ousadia na atitude e criação coreográfica, pôde nascer no estúdio de fotografia e transferir-se para o palco.
Este é um volume marcadamente descritivo, mas também inclui advertências que, ainda que jocosas, têm a sua ferocidade. Dir-nos-á Arnaud Rykner: «é preciso não enganar com a nudez (que podemos completar com uma piada em forma de pastiche: a nudez é coisa demasiado séria para estar entregue apenas a strippers).» E quero acrescentar que a este volume também não falta uma dimensão de promessa, de desejo e exigência, na intersecção entre os planos estético e humano. Porque reiteradamente há uma amostra do mundo que é incómoda nas ruas tanto como nas galerias e salas de espectáculo, sobretudo enquanto agente do fenómeno performativo. Os corpos gordos, envelhecidos, os corpos discordantes, diferentes, aqueles em que há deficit e aqueles em que há superavit, ainda podem pouco face ao «arquétipo de um pesadíssimo corpo social». Uma rota, nas palavras de Alexandra Moreira da Silva: «Desfazer a nudez significará, antes de mais, desfazer os dispositivos reguladores, criados pelas ontologias normativas do corpo, que julgam, definem e delimitam os “corpos que contam”», que encontram as de Arnaud Rykner: «A nudez em si seria, então, o dispositivo, sempre em movimento, sempre por vir (ou por esperar), capaz de frustrar tanto as ciladas do nu como as do exibicionismo mundano.» Finalmente, é possível que o corpo nu em cena possa dar resposta à violência com uma ordem de não matar. Seria preciso, segundo a ambiciosa fórmula de Rykner, «reencontrar através da nudez o rosto[7] do nu, no sentido que Levinas conferiu à palavra, ou seja, a sua fragilidade tanto quanto a sua responsabilidade.»