Todas as pessoas com uma educação robusta gostam de histórias de detectives, e existem até vários pontos em que estas são claramente superiores à maioria dos livros modernos. Uma história de detectives geralmente descreve seis homens vivos a discutir como é possível um homem estar morto. Uma história filosófica moderna geralmente descreve seis homens mortos a discutir como qualquer homem pode estar vivo. Mas aqueles que apreciam o roman policier terão reparado numa coisa, que quando o assassino é apanhado, raramente é enforcado. «Essa», diz Sherlock Holmes, «é a vantagem de se ser um detective privado»; depois de apanhar, pode libertar. A Igreja Cristã pode ser melhor descrita como um enorme detective privado, corrigindo aquele detective oficial — o Estado. Esta é, de facto, uma das injustiças de que a Cristandade histórica foi alvo; injustiças que resultam de olhar para excepções complexas e não para o grande e simples facto. Estão constantemente a dizer-nos que os teólogos usaram cavaletes e anjinhos, e eles assim o fizeram.[1] Os teólogos usavam cavaletes e anjinhos do mesmo modo que usavam dedais e bancos de três pernas, porque toda a gente os usava.[2] A Cristandade é tão responsável pelas torturas medievais como pela invenção das torturas chinesas; herdou-as de um qualquer império tão pagão quanto o chinês.
A Igreja, num mau momento, consentiu imitar os hábitos comunitários e usar a crueldade. Mas se abrirmos os olhos e assimilarmos o panorama geral, se olharmos para a forma geral e cor da coisa, a verdadeira diferença entre a Igreja e o Estado é enorme e simples. O Estado, em todos os lugares e épocas, criou uma maquinaria de castigo, mais sangrenta e brutal em alguns locais do que noutros, mas sangrenta e brutal em todos. A Igreja é a única instituição que alguma vez tentou criar uma maquinaria de perdão. A Igreja é a única coisa que alguma vez tentou, por sistema, perseguir e descobrir crimes, não para vingá-los, mas para perdoá-los. O tronco de empalamento e o cavalete foram meramente as fragilidades da religião; os seus snobismos, as suas rendições ao mundo. A sua especialidade – ou, se quisermos, a sua singularidade—foi esta misericórdia implacável; o sabujo impiedoso que procura salvar e não matar.
Posso mostrar melhor o que quero dizer referindo-me a duas peças populares sobre tópicos de certo modo paralelos, que foram bem-sucedidos aqui e na América. The Passing of the Third Floor Back[3] é uma experiência humana e reverente, que lida com a influência de uma figura desconhecida mas divina que passa por um grupo de personagens esquálidas. Não tenho qualquer vontade de fazer brincadeiras de mau gosto sobre as conversões extremamente abruptas de todas estas pessoas; isso é um ponto da arte, não de moral; e, afinal, muitas conversões foram abruptas. Este método redentor de tornar as pessoas boas consiste em dizer-lhes quão boas elas já são; e no caso dos marginais suicidas, cuja espinha moral está danificada, e que estão encharcados em sincero desprezo-próprio, imagino que este possa ser realmente o caminho certo. Eu não deveria transmitir esta mensagem a autores ou membros do Parlamento, porque concordariam tão entusiasticamente com ela.
Ainda assim, não é de todo aqui que eu divirjo da moral da peça do Sr. Jerome. Divirjo vivamente da sua história porque não é uma história de detectives. Nela não há nada desta grande ideia Cristã de romper o mal dos homens; falta-lhe o realismo dos santos. A redenção deve trazer verdade assim como paz; e a verdade é uma coisa precisa, embora os materialistas tenham enlouquecido com isso. As coisas têm de ser enfrentadas, mesmo que seja para serem perdoadas; a grande objecção a «não acordes gato que dorme» é que eles dormem em mais do que um sentido.[4] Mas em Passing of the Third Floor Back do Sr. Jerome, o redentor não é um detective divino, impiedoso na sua determinação de saber e de perdoar. Pelo contrário, é uma espécie de ludibriador divino, que não perdoa de todo, porque não vê nada do que se está a passar. Pode ou não ser verdade dizer: «Tout comprendre est tout pardonner». Mas evidentemente é muito mais verdade dizer, «Rien comprendre est rien Pardonner», e Third Floor Back não parece compreender nada. Ele podia, ainda assim, ser um sentimentalista bastante egoísta, que achou reconfortante ter os seus vizinhos em boa conta. Não há nada de muito heróico em amar depois de se ter sido enganado. A tarefa heróica é amar depois de se ter sido desenganado.
Quando vi esta peça acabou por ser natural compará-la a uma peça que não tinha visto, mas que tinha lido na sua versão impressa. Refiro-me a Servant in the House[5], do Sr. Rann Kennedy, cujo sucesso se alastra por tantos jornais americanos. A peça também versa sobre uma figura apagada, mas evidentemente divina, uma figura que muda os destinos de todo um grupo de pessoas. É uma peça melhor do ponto vista estrutural do que a outra; de facto, é uma peça realmente mesmo muito boa; mas não há nada estético ou exigente em relação a ela. É tanto ou mais sensacional, democrática e redentora (uso a palavra num sentido robusto e bom) do que a outra.
Mas a diferença reside precisamente nisto — que o Cristo da peça de Mr. Kennedy insiste em conhecer realmente todas as almas que ama; rejeita conquistar por uma espécie de estupidez sobrenatural. Perdoa o mal, mas não o ignora. Por outras palavras, ele é um Cristão, e não um Cientista Cristão. A disjunção é sem dúvida parcialmente explicada pelos diversos problemas selecionados. O Sr. Jerome praticamente supõe que Cristo estaria a tentar salvar pessoas desonradas; e isso, claro está, é naturalmente uma tarefa simples. O Sr. Kennedy supõe que Ele estará a tentar salvar pessoas honradas, o que é uma questão muito mais ampla. As personagens principais em The Servant in the House são um pároco popular e incansável, universalmente respeitado, e a sua mulher elegante e enérgica. De nada serviria dizer a estas pessoas que elas tinham alguma bondade nelas — pois isso era o que elas diziam a elas mesmas todo o dia. Tinham de ser lembradas de que havia alguma maldade nelas — idolatrias instintivas e traições silenciosas que sempre tentaram esquecer. É na ligação com estes crimes de riqueza e cultura que enfrentamos o verdadeiro problema da maldade positiva. Toda a controvérsia do Sr. Blatchford sobre pecado foi completamente distorcida pela consciência de que sempre que ele escreveu a palavra «pecador», pensou num homem vestido de trapos. Mas aqui, mais uma vez, podemos encontrar a verdade meramente referindo-nos à literatura vulgar — a sua fonte infalível. Quem leu uma história de detectives sobre pessoas pobres? Os pobres cometem crimes; mas os pobres não têm segredos. E é porque os soberbos têm segredos que eles precisam de ser detectados antes de serem perdoados.
[1] No original, «racks and thumbscrews». Referência a dois instrumentos de tortura, o primeiro consistindo numa prancha de madeira onde o prisioneiro era amarrado e depois esticado pelos pulsos e pelos tornozelos; o segundo, consistia num mecanismo com parafusos ao qual se prendiam os polegares do prisioneiro para posteriormente serem apertados . [N. da T.]
[2] Bancos de três pernas (“three-legged stools”, no original) está também por berço de Judas, um instrumento de tortura que consistia num banco de três pernas com um assento piramidal.
[3] Peça de Jerome K. Jerome, datada de 1908. [N. da T.]
[4] O jogo de palavras perde-se na tradução, uma vez que que se alude aos sentidos múltiplos de «lie», estar deitado e mentir: «“letting sleeping dogs lie” is that they lie in more senses than one”. [N. da T.]
[5] Peça de 1908. [N. da T.]
* Tradução de Inês Rosa.