Filiação
Pôde A Promessa estar tantos anos intocada que lê-la, começar a imaginá-la, não se faz com ligeireza, é um tardio socorro. Querendo trazer à sua arte sensível não menos intuição que raciocínio, a dramaturgia nutriu-se, sobretudo, da procura de uma família espiritual para o texto e, por extensão, para o espectáculo, família que encontrou viva nos anos de 1890, em Ibsen e Yeats. Não surpreenderá a aproximação de Maria do Mar a essas personagens notoriamente malcasadas que são Hedda Gabler, fulgurante manipuladora, ou a ligeiramente anterior e mais ponderada Nora Tesman: ambas recusam uma vida parda, estão em trânsito entre a tutela e a liberdade. Mas tornou-se também cristalina a afinidade com Solness e Hilde Wangel, na sua intimação das forças, do ogre, até na fortíssima suspeita de que o pensamento, mesmo não-dito, pode instaurar uma nova ordem; ou a afinidade com a Mary Bruin que Yeats desenha em Terra do Desejo, jovem esposa sufocada, agente da ruína, que macula o lar e perde a vida ao convocar as fadas. O terrível mar verde que Maria do Mar reconhece nos olhos de Labareda difere do fiorde impiedoso que engoliu o pequeno Eyolf?, ou configura a mesma sedução, a mesma cisma telúrica e anacrónica? A espaços, especialmente nas conversas eufemísticas entre Maria do Mar e a mãe, é o parente Wedekind que transparece: a necessidade de uma educação sexual é glosada na figura da mãe, que pensa ter uma filha «lorpa», e que é incapaz da mínima simpatia fisiológica ou de prever até onde lacera a culpa. Desmesura e mortificação, portanto, sendo certo que esta dramaturgia também não ignora a unidade que A Promessa forma com as peças publicadas na mesma ocasião, O Bailarino e A Excomungada. A leitura das três sublinha, tanto quanto pude discernir, ideias incontornáveis para o autor e vitalistas: a da experiência mística na carne; e a da originalidade da ascese, que não exclui o crime. As personagens de Jesus e José serão, aqui, os seus intérpretes máximos.
Frugalidade
Muitas das pequenas intervenções que o texto sofreu, e que foram conversadas com o João Cardoso, pretenderam libertar o espectáculo de uma nitidez neo-realista. Creio que é seguro afirmar que o público lidou tão melhor com a imagem refeita da casa portuguesa, com o que há de verdade e fabricação no retrato de um povo cordato e pobre, e com o que pressente de folclórico na exposição de um modo de vida marcado por ofícios e dialectos regionais, quanto mais distou disso e pôde viver a experiência da desenvoltura económica e ideológica decorrente da integração europeia. Por outro lado, a distância a que já estamos desse paradigma é a que permite que os artefactos, marcas, até livros do Estado Novo, sejam vendidos e comprados com benevolência, como coisa curiosa, bem desenhada, bem apanhada. Quisemos evitar o pitoresco. A primeira indicação cénica, que alude a um vago Portugal costeiro sem marcas de época, deu licença para nos deixarmos permear, de facto, pelo que provém da família já referida.[1]
Não era desejável obliterar totalmente os signos que fazem da Páscoa, Páscoa, e da casa, casa, mas elas aqui são menos materiais. Entre outras coisas, roubámos à boca do Padre uma perna de galinha corada e da cozinha o oratório com a imagem da Nossa Senhora dos Navegantes. Comparativamente frugal é também a componente física do castigo, que Maria do Mar expõe quando pede a Jesus que apalpe o cilício e os pregos que tem nos sapatos. A opção de retirar o cilício sublinha o castigo como prática menos oficial, antes rudimentar e voluntária.
A dramaturgia sofreu a influência da versão cinematográfica de António de Macedo ao concentrar a acção num núcleo restrito de personagens, prescindindo de homens, mulheres e guardas (Macedo estabelece essa distinção usando a população como figurante). As velhas, originalmente três, nesta versão funcionam em par. O espírito maledicente, novidadeiro e guloso mantém-se, acrescido do facto de serem as únicas portadoras de uma visão popular dos acontecimentos. Face ao que se julgou ser incipiente e não exclusivo, entendeu-se preferível omitir o mau-olhado com que o texto encerra e reforçar a função social destas personagens. Cabe-lhes a reconstituição do crime e a incorporação de uma misoginia que, espantada com a ira de um homem «manso», prontamente a justifica como consequência da conduta de uma mulher «perdida».
Mas aprendeu-se também com o que A Promessa-filme tem de génio próprio, independência. Em virtude do que eram as inquietações artísticas e políticas de António de Macedo (um autoproclamado anarco-místico!), e do que terá sido a efectiva rodagem na zona dos Palheiros da Tocha, já em 1972, as premências seriam outras. O filme desviou-se da obra de 1957 em alguns pontos críticos: preferiu o sussurro e o silêncio uniforme à profusão discursiva do original, garrido, rebarbativo, cáustico, e não menos lírico; sacrificou a presença feminina, e consequentemente muito do que era feroz e cómico na peça, ausentes que são as personagens de Rosa e das Velhas (Maria da Avó e Joaquina existem, mas enquanto ficção paralela); expôs uma credulidade mais simples, menos criteriosa, compradora do conforto espiritual seja à Igreja, seja aos vendedores de relíquias e fancaria, e introduziu uma forte nota anticlerical ao dividir a figura do padre em dois, um jovem renovador, mas atávico, e um velho corrupto; finalmente, alisou a personagem de Jesus, onde nem se manifesta a homossexualidade nem uma desejada vidência.
Ora, A Promessa foi publicada numa fase em que Santareno não parece ainda desperto para a interpelação ao real. Ou, pelo menos, ela não lhe impõe os recursos narrativos e a implicação tópica que mais tarde assumirá. As peças de que se faz acompanhar, O Bailarino e A Excomungada, sendo menos bem construídas, pertencem a um modelo de «teatro da ilusão» onde a tónica é a da fractura identitária — corpórea e potencialmente maligna — dos protagonistas. Ao contrário de O Judeu, A Promessa não parece ter envelhecido, pelo contrário, apesar de nunca ter passado pelos programas oficiais do ensino de Português. O agudo balanço que Gustavo Rubim fez a propósito da ausência de Ibsen dos palcos nacionais (que transcrevo parcialmente) permite inferir alguns motivos:
Com efeito, tudo indica que a liberdade artística consequente ao 25 de Abril de 1974 gozou de inúmeras virtudes, salvo a da isenção de equívocos graves. O maior de todos ocorreu, a meu ver, precisamente no domínio do teatro. Nenhuma outra arte foi, em Portugal, tão vítima de um processo de colonização ideológica como a arte teatral. Seguindo uma tendência profundamente auto-destrutiva, de que ainda hoje sofremos diversas sequelas mais ou menos notórias, o mundo do teatro português contemporâneo deixou-se subjugar por uma serôdia consciência vanguardista que atribuía ao palco funções e missões sociológicas supostamente superiores à sabedoria veiculada pela própria criação dramática. Simbolicamente, poderíamos traduzir essa história desastrosa na ideia, durante longos anos em vigor para todos os efeitos práticos, de que Brecht nos interessa mais do que Shakespeare.[2]
Bernardo Santareno é menos capturável do que pode crer quem for exposto apenas à fracção mais estimada da sua obra. O Bernardo dos Bernardos que esta dramaturgia recupera é aquele que reactiva primeiríssimas preocupações estético-morais — «[…] representada em teatro, A Promessa é sumamente nociva: a arte actuará como agente de catálise para maior assimilação do erro e do mal, tornando-os aceitáveis, convenientes e até verdadeiros»[3] —, sendo absolutamente compósito; a Ele, que se biografou directa e indirectamente em muito do que escreveu, será talvez possível entrevê-lo n’A Traição do Padre Martinho, na voz de um camarada:
Quando se refere «ao que há de generoso, de humano, nessa fé divina… a qual é uma concepção do homem que o comunista e o cristão podem ter, mas o nazi não terá jamais», Aragon lança uma ponte importante que deve ser considerada, neste caso. Não concordas comigo? Eu sou pelas pontes, meu amigo.[4]
Devoção
Pedia-me o João [Cardoso], a certa altura, que pensássemos numa cena introdutória ou com que pudesse estabelecer-se um efeito de circularidade. A pesquisa que fiz levou-me primeiro ao catálogo de Giacometti e Lopes-Graça, depois à já extensa recolha de Tiago Pereira, convicta de que seria um cântico a estabelecer a paisagem emotiva e devocional desta ficção. A decisão de introduzir uma versão não cantada da Litania do Loreto ou da Santíssima Virgem (fixada em 1587) acaba por responder aos padrões rítmicos do próprio texto. Se aceitarmos que «Em suma, o que nos parece caracterizar o estilo litânico é a repetição, a insistência. Repetem-se as mesmas palavras suplicantes ou insiste-se num louvor e noutro e noutro, até cansar»,[5] não temos como negar o pendor litânico e deprecativo do todo, onde os caracteres idiomáticos e prosódicos que Santareno teria ouvido em mar alto ombreiam com a sua voz própria. Por outro lado, o equilíbrio comprometido ao retirar a imagem de Nossa Senhora repõe-se pelo verbo. O louvor mariano de que José é o orador destacado, e cujo uso tradicional ocorreria «nas calamidades públicas, nas funções litúrgicas, em certas festas do ano ou quando alguém morria»,[6] tem aqui uma nota irónica porque se liga a outra litania, esse novo culto que antecede a consumação: «Maria perdida! Maria aluada! Maria traiçoeira… […] Como tu és cobarde e traiçoeira, como tu és reles!… […] Eh, cabra! Eh, Maria suja!»; o esforçado José humilha com os apurados instrumentos do louvor. Um último aspecto creio sobressair com a introdução da litania: a «exclamação ou, de um modo mais abrangente, fabulosa máquina expressiva»[7] que ela ajuda a revelar aproxima a escrita deste primeiro Santareno tanto de um «sentimento religioso essencial — o que liga, rectifica e cura»,[8] como da mais inequívoca potência poética. Ou seja, melhor se reconhece que a família espiritual de que falava acolhe Artaud e António Nobre e Álvaro de Campos.
E o meu coração, profundamente humilhado com aquela derrota[9]
Na nota introdutória a uma reedição de A Promessa datada de Agosto de 1974, Isabel da Nóbrega observa:
Tenha ou não o autor tomado disso consciência, a verdade é que emerge aqui uma específica denúncia da situação da mulher — mova-se ela na orla do mar ou no país interior, na província ou na cidade, e tenha tentado «revoltar-se» contra essa situação há quarenta anos, há vinte, ou ontem mesmo. […] Não, não se vê saída para a mulher que o macho… machisticamente, soberanamente, acaba por inocentar (depois da prova provada), para com a qual transige em exigir respeito e protecção, o suposto respeito e a suposta protecção com que a mulher tem sido lograda, enclausurada, manietada, alienada, mantida ao serviço, no lento/célere rodopiar dos mundos e dos tempos. Mas este fechar de todas as saídas parece poder ser, afinal, um acto provocador. Creio que uma das formas de abalarmos alguém distraído e em perigo é mostrar-lhe esse perigo sem aviso nem comentários. A reacção virá por si.[10]
Poder-se-á sentir que a versão dramatúrgica proposta reitera esta denúncia, destacando o lugar legítimo de Maria do Mar dentro do clã, Maria filha. Sem cair no erro de pensar que as denúncias hoje sejam mera redundância, esse não foi o principal intuito. Aliás, fazer de Maria do Mar vítima seria não só implausível como indigno da sua contradição fundamental. A frustração é fecunda porque o perigo clássico é outro, como o psicólogo António Martinho do Rosário devia saber bem. As ideias, até nos mais desabridos, podem soçobrar perante os arquétipos com que coabitam; a mulher que situa o destino na cabeça, no peito e nas mãos — arbítrio, ímpeto, manufactura — é a mesma que reclama «um homem, como o das outras». E acaba por tê-lo, ogre, marginal. Nora Tesman apercebe-se tarde de que vale menos do que a reputação do marido e não pode ficar; quando Maria do Mar se apercebe de que vale mais, não tem como partir. A sua última aparição em cena, «lívida» e «desgrenhada», pode distrair-nos de que também vem «altiva»:
Mas podemos agora afirmar […] que não há só «verdades objectivas», produtos de recalcamento e da adaptação cega do ego ao seu meio objectivo. Há também «verdades subjectivas» mais fundamentais para o funcionamento constitutivo do pensamento do que os fenómenos. Por isso, não se deve condenar a função fantástica como «fraudulenta», e como nos diz excelentemente Gusdorf: «A verdade do mito é atestada pela impressão global de empenho que produz em nós… a verdade do mito reintegra-nos na totalidade, em virtude de uma função de reconhecimento ontológico.» Uma mentira é ainda uma mentira quando pode ser qualificada de «vital»?[11]
Julgo que hoje, aos cidadãos e espectadores de um país arejado, seja possível admitir que há mentiras que (os) confirmam.
* Texto originalmente publicado no Manual de Leitura que acompanhou o espectáculo A Promessa, de Bernardo Santareno, uma produção do Teatro Nacional São João, com encenação de João Cardoso e dramaturgia de Constança Carvalho Homem, estreado no Porto a 16 de Novembro de 2017.
[1] A propósito das démarches que fez antes de se decidir por um local para a rodagem, António de Macedo observa com bonomia: «E no tempo do Santareno […] nós aqui em Portugal ainda estávamos no século XIX. As pessoas aqui não sabiam. Mas eu até costumo dizer que, na Europa, enfim, de uma forma geral, o século XX só entrou com a Primeira Guerra Mundial, o século XIX prolongou-se, de certa maneira, até à Primeira Guerra Mundial. Mas em Portugal o século XIX prolongou-se até à Segunda Guerra Mundial…! [Risos.] Por força do Salazar, ou até por força dos hábitos das pessoas, e quando o Bernardo Santareno, nos anos 50, escreveu A Promessa, ainda estamos com aquela ambiência do século XIX.» António de Macedo: Cineasta Inconformado, Bairrada TV, 2014.
[2] Gustavo Rubim, «Ibsen e os regressos», in Henrik Ibsen, Peças Escolhidas 1, Lisboa, Cotovia, 2006, p. 338.
[3] A Voz do Pastor, 14 de Dezembro de 1857, apud Carla Araújo Risso, «Aquilo de que não se fala não existe. Um estudo de caso sobre a Censura ao teatro no período salazarista». Anuário Internacional de Comunicação Lusófona, 2010, p. 274.
[4] Bernardo Santareno, A Traição do Padre Martinho, Lisboa, Editores Associados, s/d, p. 77.
[5] Mário Santos (S.J.), «Ladainhas de N. Senhora em Portugal: Idade Média e séc. XVI», Lusitania Sacra, Lisboa, Vol. 5 (1960-61), p. 139.
[6] Idem, p. 134.
[7] Vera Vouga, «Respiração dos animais de grande porte», in António Nobre em Contexto: actas, Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 74.
[8] Idem, p. 80.
[9] «... abrandava-se numa imensa ternura, alargava-se na compreensão quase ilimitada das fraquezas e temores humanos.» Bernardo Santareno, Português, Escritor, quarenta e cinco anos de idade, Lisboa, Edições Ática, 1974, p. 122.
[10] Isabel da Nóbrega, «Breve nota sobre Bernardo Santareno e a Promessa», in Bernardo Santareno, A Promessa, Lisboa, Círculo de Leitores, 1974.
[11] Gilbert Durand, As Estruturas Antropológicas do Imaginário: Introdução à Arquetipologia Geral, Lisboa, Presença, 1989, p. 271.