O que é um corpo? É feito de silêncio e contenção? Ou será, pelo contrário, como bem sabe a medicina real, aquela que vai evoluindo, segundo os relatos de Canguilhem e Foucault, da nosologia dos Antigos ao método anatómico-clínico, um conjunto de miasmas, muco, tosse, expectoração, medos, patologias, terrores, pesadelos, sudorese, corpos apegados a outros corpos - e finalmente essa liberdade que supera todos [os] afectos e que Nietzsche apelidou de «a grande saúde»? Nesse caso, os Purgon são os Daifoirus, que não ousam enfrentar a evidência de que a humanidade sempre viveu e sempre viverá com os seus vírus.
Bernard-Henry Levy
I've watched my obsessions... [for over] fifty years as a writer, and I'm very lucky that I've been able to express those obsessions as a writer. I mean, had I decided to be a psychiatrist, I might have been able to do real damage!
J. G. Ballard
Terça-feira, antevéspera do segundo confinamento português, duas mulheres e um homem estão no cinema, ele mais perto do ecrã. São os últimos cartuchos de solidão acompanhada. Crash (1996), de David Cronenberg, baseado na obra homónima de J. G. Ballard de 1973, foi um dos meus inadiáveis desse dia. Entre o filme que pensava conhecer e o que vi, registo algumas notas. Parece-me que escrevo tanto sobre cinema como sobre o tempo, a nudez e a doença.
ligeira irritação
O filme de que tinha memória ombreava com Videodrome (1983) e Dead Ringers (1988) na tematização do horror do corpo e da sua plasticidade. É um facto que os três são conduzidos por uma mutação essencial, verificável ou imaginada. É também facto que os seus protagonistas caem num transe, espreitam, apalpam o que suspeitam ser uma nova carne.[1] Mas é possível que deva rever todo o meu panteão. Guardava estes filmes, mais do que outro Cronenberg antigo e recente, porque as suas obsessões me pareciam belas e justificadas. Nada destas ficções me parecia menosprezável no futuro, antes emergente, e achei que continuaria a encontrar ali decalques de um tumulto que reconheço ser meu. E, no entanto, foi com ligeira irritação de fundo que o recebi agora. Descobri que é também um filme satírico. Descobri-me espectadora sexuada, reactiva à profusão de cenas parcialmente explícitas, à duração de planos a que preferiria não chamar exploratórios, ao despir desproporcional do corpo feminino. James Spader e Debra Kara Unger, intérpretes das personagens centrais do filme, Ballard e Catherine, aparecem tão bonitos como caricaturais, o que é assinalável!; mas são persistentemente filmados num desequilíbrio há muito estabelecido, «woman as image, man as bearer of the look».[2] Em definitivo, não era disto que me lembrava.
Quando comparado com o filme-ensaio The Atrocity Exhibition — JG Ballard and the Motorcar (protagonizado por Ballard e co-realizado com Harley Cokeliss em 1970, ano de publicação do livro homónimo),[3] Crash perde em várias frentes. Nesse caso, porque o discurso é na primeira pessoa, as reflexões do autor são indissociáveis das imagens produzidas e, em fluxo, o automóvel surge como produto fortemente impregnado de desejo, brinquedo expandido de uma imaginação masculina tecno-fisiológica. É um filme mais subtil, e que possivelmente envelhecerá melhor, porquanto a imaginação consumada ao mesmo tempo se confessa e vulnerabiliza. A versão fílmica de The Atrocity Exhibition oferece uma chave para a violência da locomoção moderna e das suas vias rápidas; é um bom herdeiro de O Supermacho, de Alfred Jarry, de quimeras de movimento perpétuo e desempenho perpétuo, mais do que de qualquer rebuçado para consumo privado.
Admito que me seria difícil classificar Crash como mero filme de adultos, mas saturado de peito e púbis, em sucessivas negações do órgão masculino, ele é rosto de uma indústria de mitos estáveis. Mostrar um falo, arriscar a gratificação pornográfica, teria funcionado como equalizador? Porque não houve uma substancial redistribuição de modos de olhar e imagens, é possível que tenhamos maioritariamente acedido à velha carne.
psicopatologia benevolente
A força erótica que o desastre de automóvel deflagra instala-se como bruma generosa sobre os acidentados, fenómeno que Ballard designa como psicopatologia benevolente. Patologia como forma de benevolência será hoje uma formulação ainda mais repugnante. Consumidos de preocupações de saúde, fervorosos consumidores de saúde, toleramos mal qualquer revalorização da doença. Aludir a psicopatologia, então, é entrar num campo totalmente minado. Convivem entre nós sinais aparentemente incompatíveis: por um lado, o rápido apontar de dedo a tudo o que é tóxico, como se houvesse um desígnio humano consistente de salubridade; por outro, a ambição de que todos os anseios, comportamentos ou propensões da paisagem íntima possam, devam integrar a norma. Acusação e despatologização, ambas nos valham!, que queremos à fina força ser saudáveis. Ora, Ballard não era um moralista, muito menos se ocupou do casamento do ponto de vista terapêutico, mas não descarta, no essencial, a distinção entre o normal e o patológico. Aliás, o discurso pretensamente clínico, chamemos-lhe mockpsychiatry, é um dos registos que o autor percorre com génio.[4] Por outro lado, ao admitir que a sua obra é globalmente constituída de cautionary tales, reconhece precisamente a violência, o dano, como tal. A vertigem porventura criminosa, quase sempre autofágica, é constitutiva do processo excitatório que o ocupa, não lhe interessa expurgá-la. E tem consequências, por mais matter-of-factly que seja o enunciado: «The car crash is the most dramatic event in most people’s lives apart from their death. In many cases, the two coincide.»
Suponho que o que encontro de mais revigorante na ideia de psicopatologia benevolente seja um princípio de comunhão, o desastre a recobrir qualquer gosto ou denominação particular, a esbater fronteiras de classe, a reordenar os objectos plausíveis de desejo. A cicatriz, a prótese, a perna manca (historicamente ocultadas) não só ficam a par do bem esculpido, do macio e equilibrado, parecem suplantá-lo. Há corpos apegados a outros corpos e é um apego até então imprevisto, multiforme, reconfigurável em género e número. A pérpetua nostalgia do desastre inaugura uma unidade maior. Novíssimos lugares de culto quando foram descritos, chocantes ainda no ano em que o filme estreou, hoje atrevo-me a pensar que sejam paraíso perdido por via de uma crescente atomização identitária.
elias redentor
Elias Koteas já tinha no currículo uma interpretação decisiva como melífluo manipulador em The Adjuster (1991), de Atom Egoyan, pérola esquecida do cinema dessa década. A personagem que lhe coube em Crash, a que confere uma inocência pavorosa, é o vórtice do sentimento religioso que se instala após a colisão. Não por acaso o único mediterrânico do elenco, é primeiro mostrado de bata branca, espécie de técnico hospitalar que documenta lesões. Mas é numa oficina que Robert Vaughan revela a sua efectiva vocação, a reconstituição de desastres de automóvel. Rigoroso coleccionador de acidentes célebres, Vaughan atrai a si uma congregação de potenciais amantes e público. A liturgia irónica que monta, o espectáculo da morte revivida de James Dean, é um dos momentos de absoluto brilho do actor. Como é também a resolução da estranha amizade entre Vaughan e Ballard, queda do último interdito, com penetração e choque frontal. Se há momentos em que o inadmissível lirismo da ficção ballardiana não fica capturado pelo métier cinematográfico; se há momentos em que o nervo transgressor convive com a excitação mais pueril; se há momentos de celebração do corpo estrangeiro, estrondoso e massacrado, Koteas esteve lá. E ainda bem, ainda bem.