… o Estado deve assegurar a transmissão de uma herança nacional cuja continuidade e enriquecimento unirá as gerações num percurso civilizacional singular.
Artigo 3º, n.º 1 da Lei n.º 107/2001
Resumo
Este artigo pretende dar a conhecer as particularidades de um sistema integrado de avaliação física da documentação, que teve início em 2013 no Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT) e que em 2017/18 foi alargado aos arquivos dependentes da Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB). Este sistema tornou-se indispensável para o conhecimento do estado de conservação da documentação, com identificação concreta das unidades documentais em risco, contribuindo assim para uma melhor gestão da preservação e permitindo o planeamento e o estabelecimento de ações concretas de intervenção. Simultaneamente, contribuiu para melhorar a informação disponibilizada na base de dados Digitarq, relativa às condições de acesso à documentação arquivística, assegurando uma maior transparência de informação com o utilizador/cidadão.
Introdução
O desenvolvimento da investigação científica fomentado pelas universidades e a crescente disponibilização da informação/documentação através das plataformas digitais tem potenciado a procura da documentação nos Arquivos; por outro lado as políticas nacionais e internacionais também têm contribuído para essa maior abertura e incentivo à disponibilização remota — refira-se como exemplo a Rede Portuguesa de Arquivos[1] e a Europeana[2].
Ao longo dos séculos, os Arquivos viram-se confrontados com sucessivas aquisições a título de compra, depósito, doação, incorporação, legado, ou ingresso de massas documentais provenientes de fusões institucionais, sendo que a maior parte da documentação chega aos Arquivos sem ser submetida a qualquer processo de avaliação física, com patologias e degradações profundas que implicam intervenções de vária ordem, desde desinfestações a intervenções de conservação, para poder ser manuseada em segurança, ou seja, sem risco de perda. Contudo, o volume da documentação, os escassos recursos humanos e materiais, bem como as diversas competências necessárias às organizações, mas nelas inexistentes, não permitiram que no passado esse trabalho fosse realizado. Conclui-se assim que não houve uma visão alargada e inclusiva da conservação no processo global de gestão documental, de forma a evitar danos, alguns irreversíveis, no património.
Nos últimos anos, algumas organizações, ainda que poucas, apresentam já nos seus quadros técnicos superiores com especialização em conservação de documentos gráficos e credenciados para avaliar e intervir com autoridade na documentação gráfica, com propostas de intervenção fundamentadas no conhecimento académico, de forma a recuperar e disponibilizar documentos que se encontravam «perdidos», complementando-se assim algumas lacunas nos fundos arquivísticos e permitindo melhorias significativas em processos de investigação.
A legislação coloca-nos perante uma dicotomia: se, por um lado, atribui aos Arquivos a missão de garantir o acesso, por outro também nos impõe a obrigação de zelar pela conservação em condições de segurança, podendo os documentos em risco de perda serem condicionados até se garantir o seu seguro manuseamento. Consciente desta dicotomia e da importância da satisfação do utilizador, a estratégia desenvolvida pela DGLAB foi centrar-se nessa satisfação, colocando a sua atenção na documentação solicitada para acesso presencial ou remoto, obrigando a uma redefinição de critérios de avaliação do estado de conservação e a uma mudança da estratégia de intervenção, de forma a dar cumprimento às suas atribuições e simultaneamente satisfazer o utilizador.
A avaliação do estado de conservação da documentação
A avaliação do estado de conservação da documentação era prática da instituição e os documentos eram assinalados como estando em «Mau estado», mas esta ação não era integrada no processo de descrição e não satisfazia as necessidades de informação internas e externas. Assim, a partir dos anos 90 passou a avaliar-se toda a documentação solicitada para acesso através da aplicação de uma checklist, identificando as principais patologias que colocavam em risco o acesso ao documento. A identificação das patologias era registada num formulário de avaliação que se anexava ao documento. Contudo, verificou-se que esta avaliação, apesar de ter melhorado, era apenas qualitativa, revelando-se ineficaz na aplicação e insuficiente para fazer face ao planeamento estratégico de ações de preservação, de projetos de intervenção, e mesmo de melhoria das descrições na base de dados relativamente à acessibilidade da documentação.
O sistema de avaliação do estado físico da documentação
Tornou-se assim fundamental criar um sistema de avaliação objetivo, com critérios bem definidos e uma metodologia de aplicação acessível a todos os colaboradores sem formação especializada em conservação, permitindo também identificar com rigor a documentação em mau estado de cada fundo/coleção.[3]
A avaliação tornou-se uma peça fundamental no conhecimento do estado de conservação da documentação, no planeamento dos projetos de intervenção e na acessibilidade e disponibilização da documentação sem risco de perda da informação.
Em 2013, o ANTT iniciou um novo paradigma de sistema de avaliação, processo que ao longo destes cinco anos se tem manifestado uma aposta concreta na valorização e salvaguarda do património arquivístico. A equipa de Conservação e Restauro definiu os objetivos gerais e específicos deste modelo, tendo como base de apoio alguns modelos internacionais já implementados, nomeadamente: Library of Congress, Archives Nationales de France, British Library e IDAP – Improved Damage Assessment of Parchment. Ao conhecer e analisar outras realidades semelhantes foi possível adaptar alguns conceitos e fluxos de trabalho; contudo, a experiência baseada no conhecimento de um conjunto de particularidades que são a essência da missão de um arquivo nacional conduziram a uma série de especificidades que correspondem ao modelo descrito.
A implementação deste sistema teve como base os seguintes objetivos:
a) Implementar uma dinâmica de preservação integrada, com base num compromisso partilhado entre unidades orgânicas. Pretendia-se que este modelo pudesse ser aplicado e desenvolvido por várias equipas de colaboradores, nomeadamente Conservação e Restauro, Comunicação, e Descrição Arquivística, uma vez que no âmbito das suas competências e funções a documentação é o objeto comum a todas;
b) Recuperar, periodicamente, informação a partir dos registos efetuados. Cada avaliação é equivalente a um código, o que simplifica a sua aplicação. Esse código é registado, tornando-se possível a recuperação dessa informação sempre que necessário;
c) Conhecer a fração de documentação solicitada que não admite manuseamento, e que por esse motivo fica sem acesso;
d) Aumentar o número de documentos comunicados como estando em «Bom estado» ou fisicamente mais estáveis;
e) Reduzir os riscos de manuseamento dos documentos mais fragilizados, através de um acompanhamento especializado;
f) Conhecer as necessidades do utilizador e aferir procedimentos de preservação com base num compromisso partilhado. O diálogo com os utilizadores tornou-se imprescindível neste sistema, quer na definição de estratégias a adotar que pudessem melhorar o circuito estabelecido, quer para a salvaguarda da documentação;
g) Possibilitar processos de avaliação sistemática em projetos de investigação, que implicam a consulta de grandes volumes de documentação.
O marcador de avaliação do estado físico
A avaliação contempla a aplicação de um marcador de estado físico junto ao documento (Figura 1). O marcador é composto por uma escala de degradação de 1 a 4, cada número correspondendo a quatro cores que se relacionam com a extensão do dano do documento, tendo como foco de análise o risco de perda de informação. Com o número 1, correspondente à cor verde, classificam-se os documentos sem danos e que, por esta condição, após serem solicitados para consulta, têm um acesso imediato.
Figura 1 - Marcador do Estado Físico.