Segunda PARTE

Excelência? Algumas cabras…

 

I

Chegamos assim à vida estritamente literária.

Dois anos e meio depois de abandonarmos Romance: o problema de como tirar John Kemp de Cuba tinha-se tornado muito complicado. De qualquer maneira, a engenhosidade do autor tinha falido e Conrad estava demasiado envolvido com o seu trabalho para engendrar o que fosse. Olhando para trás, o período em que lentamente prolongámos aquele conjunto absurdo de fatalidades parece ter sido de longa guerrilha: como se estivéssemos a desbastar um terreno onde a vegetação crescia depressa demais para as ferramentas de corte de que dispúnhamos.

Não se suponha que passámos o nosso tempo todo dedicados a essa empresa; cada qual continuou, a espaços, o seu trabalho. Depois abandonávamo-lo e passávamos um mês de volta de Romance. Depois abandonávamo-lo outra vez… Ou então, às vezes, um de nós redigia o seu trabalho de manhã; o outro ia avançando com o Romance; à noite, e até altas horas, juntávamo-nos. Perseguíamos esta tarefa monstruosa por toda a costa e zona costeira do Canal Britânico; na Pent, perto de Hythe, em Kent; em Aldington; em Winchelsea, no Sussex; em Bruges… As lutas mais terríveis de todas travaram-se num hotel ventoso em Knocke, na costa belga, com uma contralto de Bayreuth a ensaiar na cave. A voz dela abanava literalmente a casa pouco firme. Enquanto escrevíamos ou gemíamos no quarto andar, os copos dispostos num tabuleiro chocalhavam uns nos outros por afinidade com as passagens de Die Götterdämmerung da contralto… E havia uma criança muito doente, só com médicos belgas; abcessos no maxilar e sem dentista; gota; quartos gélidos para onde sopravam as areias da Holanda; ventos intoleráveis; bátegas intermináveis de chuva… É assim que o mundo adquire as suas obras-primas. Conrad estava por essa altura a começar Nostromo pelas manhãs: ia ser um livro pequeno e terminado muito rapidamente — para fazer algum dinheiro.

No entanto, foi antes disso que abandonámos Romance. Dedicámo-nos a Os Herdeiros, um livro peculiar, fino, para o qual o autor sempre olhou com um intenso desagrado. Ou antes, com ódio e pavor que nada têm a ver com literatura. Com o que têm a ver o autor não sabe dizer; alguma causa primária obscura, sem dúvida, que não poderá interessar a ninguém que não um perito psicológico.

Aparentemente, Conrad não tinha nenhum destes sentimentos. O desagrado do autor começou assim que a última palavra foi escrita, de tal maneira que conseguiu deslocar o fardo da revisão de provas — que Conrad até apreciava — para os ombros do seu colaborador e desde esse dia nunca mais olhou para o livro. Portanto, quando, durante os primeiros tempos do último conflito europeu, finalmente nos encontrámos para finalizar vários assuntos, e quando Conrad disse: «No que diz respeito a colaborações, quando for das nossas edições completas, é melhor ficar com Os Herdeiros porque é praticamente todo seu, e isso deixa-me com Romance — não que Romance não seja também praticamente todo seu» (Conrad falava assim!), o autor ficou muito contente. A intenção do autor era suprimir o livro. Pensava que Conrad o odiava tanto quanto ele próprio e que estava apenas a entregá-lo com desdém educado. Por isso não iria aparecer em nenhuma das nossas edições completas e permaneceria inacessível até que, com o fim dos direitos de autor, algum investigador alemão conseguisse desenterrá-lo e fazer dele um opúsculo.

No entanto, um pouco depois, Pinker, tendo sido informado de que o autor estava morto ou num asilo, assinou um contrato para a obra completa de Conrad na América, incluindo todas as colaborações passadas e futuras. Assim, antes que o autor soubesse alguma coisa sobre isso, lá estava Os Herdeiros, publicado outra vez, não apenas numa, mas em três edições. Na altura mencionou a reedição a Conrad, não sem algum pesar, como algo que presumia que Conrad não tivesse podido impedir. Os autores são forçados pelos agentes e editores a reeditar toda a espécie de trabalhos que podem querer suprimir — a bem de uma «completude» sagrada. Conrad, no entanto, observou com grande emotividade — com mais emotividade do que aquela que o autor se recorda de ver nele —: «Por que não? Por que não reeditá-lo? É um bom livro, não é? É um livro mesmo bom!» E o autor deixou o assunto ficar por aí — ao invés de insinuar que Conrad pudesse assinar com o seu nome um livro que ele não considerasse bom, ou então mesmo muito bom. Pretendera falar no assunto mais tarde para se assegurar completamente de qual era realmente a opinião de Conrad sobre esse livro. Mas agora é tarde de mais para isso. Deve perdurar como opinião de Conrad a de que o livro é mesmo um bom livro.

Sendo assim, é melhor alongarmo-nos um pouco para considerar a exegese deste livro… Tínhamos abandonado Romance; o autor tinha acabado um livro disparatado que se propunha ser a história de Cinque Ports em formato gigante. Por despeito, estava escrito em frases que não tinham mais de dez sílabas. A Guerra Sul-Africana estava aí — ou por aí, sendo o autor um pacifista entusiasmado cujo chapéu era ocasionalmente amolgado por patriotas ainda mais entusiasmados. Conrad estava ocupado com o final de O Coração das Trevas, com a elaboração de Typhoon [Tufão] e com a escrita de «Amy Foster», um conto original do autor de que Conrad se ocupara e que rescreveu integralmente. O autor tinha, em comum com Conrad, uma grande admiração pelo Sr. Balfour; o autor, pelo menos, tinha um profundo ódio pelo falecido Sr. Chamberlain que, por sua própria iniciativa, tinha provocado a guerra. O que Conrad sentia pelo falecido Sr. Chamberlain o autor não se lembra. Era certamente mais imperialista do que o autor…

Uma vez que pode parecer estranho ao leitor que um autor, vivendo em proximidade íntima com outro autor, possa não saber quais eram as opiniões do seu amigo sobre um assunto político tão importante como uma guerra, talvez seja melhor dar uma palavra ou duas sobre como vivíamos juntos. Os nossos relacionamentos eram, na altura, inesperadamente impessoais: nunca o autor colocou uma pergunta a Conrad sobre o seu passado, as suas posições éticas ou religiosas ou sobre qualquer assunto pessoal acerca dos seus sentimentos ou vida. Nem por uma vez Conrad fez qualquer pergunta desse tipo ao autor. Nem por uma vez discutimos qualquer assunto político.

Conhecemo-nos primeiro como o fazem dois cavalheiros ingleses num clube: continuámos assentes nessa base. Tomámos como garantido que cada um era um cavalheiro, com os sentimentos, opiniões sobre o mundo e compostura de um membro das classes dirigentes nos dias de Lorde Palmerston — temperados, obviamente, com as excentricidades que acompanham o humor do milor anglais. Permitíamos estas excentricidades um ao outro, mas sem perguntas. Assim, durante a Guerra Sul-Africana, como já foi dito, o autor foi um pacifista activo e às vezes turbulento. Não um pro-Boer: teria enforcado o Presidente Kruger no mesmo cadafalso em que o faria ao Sr. Chamberlain. Ou, mais tarde, com igual entusiasmo apoiou a Menina Christabel Pankhurst e as sufragistas. De quando em vez, em situações ociosas depois de almoço invectivava sobre qualquer uma destas causas. Conrad ouvia.

De tempos a tempos, particularmente enquanto escrevia O Coração das Trevas, Conrad invectivava apaixonadamente sobre a imbecilidade e crueldade sombrias dos belgas no Estado Livre do Congo. Invectivava assim ainda mais, aqui e ali, depois de ter estado em Londres e ter conhecido Casement, que tinha sido comissário britânico no Congo e era defensor apaixonado dos nativos. Então o autor ouvia.

Se Conrad divergia do autor, nunca discutia, nem o autor alguma vez discutiu com Conrad. Uma vez, na sua juventude mais fogosa — embora fizesse o mesmo na sua idade mais madura! —, o autor alistou-se como disposto a acompanhar a expedição sem pés nem cabeça à Polónia alemã para combater os prussianos, e Conrad nem por uma vez protestou, embora expusesse previsões sombrias sobre o que aconteceria a essa expedição. No entanto, a ambição do autor era combater os prussianos; a isso Conrad não colocou objecção…

Ou, mais uma vez, o autor nunca na sua vida pronunciou uma palavra de afecto pessoal a Conrad. Aquilo que era ou não era a sua inclinação está aqui. E Conrad nunca pronunciou uma palavra de afecto ao autor: aquela que era ou não era a sua inclinação nunca será conhecida agora. Conrad era infinitamente mais generoso nos elogios aos livros do seu colaborador: tão generoso que às vezes o autor se sentia como um ídolo budista fátuo enquanto Conrad prosseguia. Por outro lado, o autor supõe que Conrad deduzia de alguma forma o quão profundamente o seu trabalho era admirado pelo companheiro.

Talvez o fizesse, talvez não; isso, também, já não o podemos saber agora. O autor não se lembra de alguma vez ter dirigido um elogio particularmente comovente a Conrad por causa do seu trabalho — excepto na sua penúltima carta…

É isto que faz da vida a coisa estranha e solitária que é. Podemos viver com outra pessoa durante anos e anos numa condição de intimidade diária e nunca saber o que, no fundo do coração, se passa com o nosso companheiro. Não na verdade.

Assim lá vivíamos, os dois cavalheiros ingleses, um a acenar rigidamente ao outro, como mandarins… As nossas políticas eram o que eram; as nossas crenças eram as que eram. Da lealdade que é exigida a cavalheiros, éramos ambos papistas — mas nem o mais pequeno vislumbre de uma ideia sobre o que era a condição religiosa de Conrad passa pela cabeça do autor excepto que, quando conduzia, mais depressa voltava para trás do que se cruzava com dois padres. Essa é uma superstição polaca. Uma vez nas nossas vidas o autor dirigiu um protesto — uma censura — a Conrad. Essa já foi contada. Uma vez Conrad fez o mesmo ao autor.

Isso era muito característico. Conrad tinha fortemente a ideia da Carreira. Uma carreira era para ele algo um pouco sagrado: qualquer carreira. Era parte da sua crença na manutenção da ordem. (O leitor não deve crer que, apesar de não nos contestarmos, deixávamos de ocasional e voluntariamente expor um ao outro as nossas crenças empolgadas.) Uma carreira era uma coisa para ser conduzida ordeiramente, sem erros, como um barco é conduzido numa viagem e atracado com segurança num porto. Por isso um dia, quando o autor simultaneamente começara uma revista e permitira a alguém que transformasse numa peça muito desinteressante um dos romances que estava na altura a ser empolado por uma imprensa entusiasta, Conrad resolutamente dirigiu ao autor uma carta de protesto grave e austero.

Mas Conrad tinha certamente antipatizado intensamente com a English Review, se não pelos conteúdos ou conduta, pelas consequências na carreira do autor. Com uma grande perspicácia mostrou que é a ruína para qualquer escritor imaginativo editar qualquer tipo de periódico. Em primeiro lugar, é uma perda de tempo; em segundo, erige tais hordas de inimigos que acabam por nos aniquilar — ou muito perto disso. Todos os escritores que descobrires ou beneficiares tornar-se-ão nos teus inimigos mais implacáveis assim que cessar a tua ligação a um órgão público — ou antes ainda! É a natureza humana. Até Benjamin Franklin nota que a sua carreira eminentemente bem-sucedida foi construída por se ter colocado muito cuidadosamente numa posição de receber — na maioria das vezes — benefícios desnecessários. Arranjou assim um grande número de mecenas que pelo caminho lhe foram dando empurrões amigáveis, sempre que a oportunidade se apresentava. E por nunca atribuir benefícios, ou por muito habilmente esconder a origem dos benefícios que atribuiu, não fez quaisquer inimigos… Adicionalmente, continuou Conrad, qualquer alma que tenha escrito uma nota abonatória sobre ti vai inundar-te com os seus manuscritos. Serás incapaz de os publicar; terás tantos milhares a chamar-te ingrato ignóbil em privado e a injuriar o teu trabalho em público — mais uma vez, assim que deixares de ter um órgão próprio através do qual te possas vingar…

Mas ainda assim dirigir uma revista não era nada ao lado do pecado de permitir que uma peça desinteressante, feita a partir de um dos teus romances, fosse encenada. Naqueles tempos, em Inglaterra, todos os romancistas estavam obcecados pela ideia de que se pudessem ter pelo menos uma peça encenada, fama, fortuna e sossego eterno, para lá do alcance de qualquer aflição mundana, seriam para sempre seus. Um romance pode ganhar as suas centenas. Uma peça — mesmo que não tenha sucesso — ganhará milhares; as receitas de uma peça de sucesso andam pelas dezenas e centenas de milhares. Adicionalmente, naquela altura em Inglaterra havia um glamour especial associado à Peça. Até a censura de Lorde Chamberlain fora quase abolida. Havia qualquer coisa de sagrado nela.

O autor era praticamente o único romancista britânico que não tinha apanhado essa maleita. Envenenou toda a posteridade de Henry James; até Conrad não era imune. O autor era — e levou nas orelhas, como se costuma dizer. Nunca houve — nunca houve tal fiasco como o daquele romance dramatizado. Tinha cinco actos, cada um com inúmeras cenas; a cortina esteve corrida o dobro do tempo que esteve aberta; durou das 20h até às 00h15. Nem dez pessoas ficaram até ao fim. No dia seguinte toda a imprensa estava lívida de raiva com o escritor por ousar escrever uma peça sem estudar a técnica dramática. A ligação do autor à English Review tinha recentemente chegado ao fim. Não tinha tido nada a ver com a peça. Tinha sido extraída do romance por um dramaturgo. O autor nem sequer tinha visto um ensaio.

O autor não se importou; Conrad, sim. Importou-se terrivelmente. Chegado da Cidade no dia seguinte a ter recebido essa carta, o autor mencionou apenas a sua recepção e deixou o assunto por aí. Conrad, não. Repetiu o conteúdo da carta outra vez: o autor estava a arruinar a carreira. O autor disse que não se importava. Com isso Conrad sofreu realmente tanto como aquando da leitura do primeiro esboço de Romance. Era da mesma categoria de sofrimento. Sentou-se, meio enroscado numa ponta de um sofá, com aspecto doentio e a tremer, corado, e as sobrancelhas contraíram-se para baixo.

Um estado de espírito, uma concepção de vida, segundo os quais um homem não examine cuidadosamente as consequências das suas acções sobre ele próprio, e a longo prazo, era algo que nunca tinha imaginado. Da maneira que ele via a vida, escrevíamos um livro, vivíamos circunspectamente, evitávamos fazer inimigos, metíamo-nos apenas com aquilo que nos dizia respeito directamente; ou fazíamos de segundo imediato, vivíamos circunspectamente, evitávamos fazer inimigos, preocupávamo-nos apenas com o nosso barco e com a tripulação do barco… Então poderíamos antever que num espaço de dez anos, quinze, vinte, seríamos promovidos ao comando do Torrens, o veleiro mais belo à tona de água; ser Comodoro de uma grande rota; ser um membro da direcção da Trinity House… Ou o Times louvava-nos como um luz brilhante no firmamento literário; ou tornávamo-nos decanos das letras britânicas e membros honorários da Academia Francesa; teríamos um serviço fúnebre na Abadia de Westminster. Ou seríamos mesmo enterrados lá: uma aspiração cujo cumprimento estava vedado a Nelson… Ele desejava a vida ordeira.

Que alguém — qualquer alma — pudesse ser alheio a estas honras era uma novidade, e terrivelmente dolorosa. Tomara assim por certo que quaisquer homens dignos mereciam estas quietudes e como que britânicas calmarias!… Da mesma maneira, no exército de Sua Majestade tem de se tomar como certo que todos os oficiais têm como fim último ser promovidos ao posto de coronel honorário à frente do seu regimento. De outro modo a vida não poderia continuar. Que algum oficial seja indiferente a uma promoção torna-se doloroso: como se não nos preocupássemos sobre o fardamento da nossa unidade aquando da inspecção do Major-general comandante-em-chefe… Com efeito, é o mesmo tipo de crime que não espremer um tema até à última gota quando estamos a escrever: o autêntico crime contra o Espírito Santo.

Porque presumivelmente esse crime não é nem mais nem menos do que estar em desarmonia com o universo, e para Conrad o universo era a ordem. Qualquer alma a vaguear no abismo fora dessa cerca era para ele um assunto puramente de indiferença sombria… «O camarada simplesmente não existe!» — era essa a fórmula… Que qualquer pessoa com quem ele tivesse um relacionamento íntimo mantivesse, sem suspeita, tal filosofia era para ele indizivelmente doloroso — como uma traição à bandeira britânica. Foi-lhe tão indizivelmente doloroso como quando, mais tarde, Casement, desprezando de tal forma os belgas pela maneira como tratavam os nativos no Congo, tomou armas contra o seu próprio país e foi, para nosso descrédito eterno, enforcado, em vez de morto a tiro durante a tentativa de fuga… Poderíamos ter alcançado esse valor com os nossos intelectos rígidos…

Talvez seja melhor tentar compor aqui uma espécie de cronologia. Este é um romance exactamente na linha da fórmula que Conrad e o autor desenvolveram. Porque tornou-se-nos evidente desde muito cedo que aquilo que se passava com o Romance, e com o romance britânico em particular, era que avançava linearmente, enquanto que no contacto gradual com os nossos camaradas nunca avançamos linearmente. Conhecemos um cavalheiro inglês no nosso clube de golfe. Ele é robusto, saudável, com a moral de um aluno da Escola Pública Inglesa da melhor espécie. Descobrimos, gradualmente, que ele é um neurasténico irremediável, desonesto em assuntos triviais mas inesperadamente abnegado, um mentiroso hediondo mas um estudante dolorosamente dedicado de lepidópteros e, finalmente, na imprensa publicada, um bígamo que foi uma vez, sob outro nome, cilindrado na Bolsa… Ainda assim, lá está ele, o camarada robusto, bem alimentado, a moral um produto da Escola Pública Inglesa. Para pôr um homem destes em ficção não podíamos começar pelo seu princípio e trabalhar a vida dele cronologicamente até ao fim. É preciso introduzi-lo primeiro com uma impressão forte, e depois andar para trás e para a frente sobre o seu passado… Pelo menos desenvolvemos essa teoria gradualmente.

Assim, no início deste capítulo tínhamos chegado ao ano de 1900 ou por aí. Fomos ao Knocke, na Bélgica, e começámos o Romance mais uma vez, provavelmente um ano depois ou assim; mas a carta de Conrad sobre uma carreira em perigo não foi escrita senão por volta de 1908. Aparece aqui como uma luz sobre o que induziu — sobre o que poderá ter induzido — Conrad a desejar intervir na produção do livro chamado Os Herdeiros

Desde o princípio deste capítulo que o autor leu uma quantidade suficiente desse livro que o satisfizesse acerca do que se tratava. O processo foi desagradável, mas a submissão da nossa resolução ao dever é o primeiro passo no caminho para uma carreira ou mesmo para a escrita de um romance. E aquilo que fez com que Conrad desejasse apaixonadamente deitar mão ao então tema do autor foi uma frase. Uma frase que aparecia depois de um par ou assim de frases eficazes com as quais se abria o manuscrito.

A cena dessa venalidade é completamente vívida para o autor neste momento. Tinha conduzido até à Pent com o manuscrito dos capítulos iniciais do romance timidamente no bolso. Conrad ainda não estava ciente de que estava em desenvolvimento um romance. Estava sentado na saleta da Pent com as rosas-da-china a espreitarem por cima do parapeito. Depois de ter supervisionado o desemparelhar do desgraçado pónei Exmoor — que só fazia um truque, o de abrir o fecho do saco da aveia com os dentes, o que era um incómodo maldito, porque o animal empanturrava-se até às orelhas com aveia e depois tinha de ser passeado durante sete ou oito horas para não morrer, e normalmente a meio da noite — então, depois de o autor supervisionar o desemparelhar daquela peste, com a ajuda de um envelhecido ex-soldado de má fama chamado Hunt, que tinha apanhado uma insolação, um sezão e malária em Quetta com os Buffs,* que reclamava ser herdeiro, em Chancery, de metade do condado de Kent, que tinha os pés sempre doridos, coxeava, e cuja proximidade se assemelhava à de um barril de rum, e que servia de empregado de rua e jardineiro, o autor foi até à saleta. Conrad estava sentado a reflectir e, para além de ele ter dito «Meu caro companheiro…», não falámos. Estávamos tantas vezes na casa um do outro que muitas vezes podíamos cruzar-nos depois da viagem sem qualquer cumprimento especial, como se acabássemos de descer depois de lavar as mãos no quarto…

Conrad estava, então, sentado reflectindo sombriamente — sobre a sua carreira, sobre a quase impossibilidade de continuar a lutar com o inglês que descreverá lagos, baixios e brigues reflectidos na água parada, sobre a possibilidade de que poderíamos ter de nos endividar antes de conseguirmos acabar o The Rescue [O Salvamento] — um livro fino um pouco maior do que uma novela, já empenhado a Heinemann, esse companheiro decente que nunca importunava os autores para acabarem os manuscritos. E havia o princípio de mais um ataque de gota no pulso direito; e a Nancy precisava de ser ferrada…

O autor entrou, então, e antes de se sentar retirou do bolso o manuscrito do primeiro capítulo de Os Herdeiros. Conrad disse: «Outra história… Donne! Donne!» Conrad não tinha qualquer apreço especial pelos contos do autor. Retirara apenas «Amy Foster» ao autor, sem qualquer pedido de desculpa, e tinha-o simplesmente rescrito — introduzindo a própria Amy, que não existia na versão do autor. No entanto, isto era um romance, não um conto, e em vez de dar o manuscrito a Conrad, que teria meramente olhado para ele negligentemente e, deixando-o cair, teria regressado à contemplação das dívidas e da gota, o autor sentou-se e começou a ler em voz alta.

No final do primeiro parágrafo, Conrad disse: «Mais mon cher, c’est tres chic! O que é?» No final de uma frase da sexta página exclamava: «Mas o que é isto? O que raio é isto? É très, très, très chic! É épatant. É magnífico.» E já o autor sabia que ou estava a meter-se noutra colaboração ou que cederia o manuscrito definitivamente.

A frase era:

 

Recuperei a minha paz de espírito com o pensamento de que tinha sido assomado por algum golpe obscuro e irrisório do tipo físico.

 

Os parágrafos de abertura iam assim:

 

— Ideias — disse ela. — Ah, quanto a ideias —
— Bem — arrisquei eu —, quanto a ideias —
Passámos pelo portão velho e lancei um olhar por cima do ombro. O sol do meio-dia brilhava sobre a alvenaria, sobre as efígies dos santinhos, sobre as pequenas canópias entalhadas, a sujidade e os riscos brancos dos excrementos dos pássaros...

 

E assim que o autor fez saber a Conrad que isto era um romance, não um conto, soube que estava a meter-me noutra colaboração. Cada palavra pronunciada aumentava essa convicção… O romance era para ser um trabalho político, apoiando de maneira alegórica o Sr. Balfour no então Governo; o vilão era para ser Joseph Chamberlain, que tinha provocado a guerra. O sub-vilão seria Leopoldo II, rei dos belgas, o sórdido — e acidentalmente libertino — bruto que tinha criado o Estado Livre do Congo para lubrificar as engrenagens dos seus haréns com o sangue de negros assassinados e decorá-los com marfim entalhado cortado de presas roubadas em florestas cerradas… Para o autor, até àquele momento, tinha-lhe parecido ser um romance alegórico-realista: mostrava a substituição de gerações e códigos antigos pelos jovens implacáveis que são sempre forasteiros e não têm remorsos… Mas assim que Conrad falou, falou com a voz do Conrad ávido de temas políticos para tratar, e o autor sabia que este era o tema de Conrad…

 

II

Os Herdeiros é um livro de setenta e cinco mil palavras, o mais aproximado possível. No seu todo não podem haver mais de mil — certamente não haverão duas mil — escritas por Conrad; estas crepitam da prosa emasculada como estalinhos no meio das saias das senhoras.

Já tinha olhado para ela antes; agora lanço-lhe um olhar transviado, crítico. Saí da minha letargia para ponderar de que tipo era ela. Tinha um bom cabelo, bons olhos e algum charme. Sim. E havia mais alguma coisa — uma coisa — uma coisa que não era uma característica da sua beleza. O tornear da sua face era tão perfeito que produzia um efeito de transparência, embora não houvesse insinuação de fragilidade; o seu olhar tinha uma força vital extraordinária. O seu cabelo era louro e brilhante, as faces rosadas como se vinda de algures uma luz quente lhes tivesse caído em cima. Era familiar até que nos ocorresse que era estranha.

Não ouvem Conrad a dizer «Para o diabo com as mulheres do Ford» e a escrever «tinha bom cabelo, bons olhos e algum charme»? E não vêem o autor, aos vinte e seis, a torcer-se e a contorcer-se com «uma coisa — uma coisa — uma coisa» para obter um efeito de requinte, e Conrad a dizer: «Ah, para o diabo com tudo, vamos arranjar umas características específicas para a jovem»?

Normalmente, era assim que colaborávamos. Mas nesse livro esse é o único excerto discernível no qual Conrad visivelmente interveio. Ocasionalmente inseria um diálogo inteiro que construía uma situação. A diferença entre os nossos métodos naquele tempo era esta: ambos desejávamos meter-nos em situações, pelo menos quando alguém estava a falar, com o tipo de indefinição que é característico de todas as conversas humanas, e particularmente de todas as conversas inglesas que são quase sempre encaminhadas através de alusões e frases incompletas. Se se ouvirem dois ingleses a falar por meio de palavras, pois dificilmente lhe podemos chamar conversar, descobre-se que os seus discursos pouco mais são do que isto: A. diz: «Que tipo de companheiro é… tu sabes!»; B. responde: «Ah, é do tipo que…»; e A. exclama: «Oh, sempre tive essa impressão…» Isto acontece em parte por falta de vocabulário, em parte por não se gostar de pronunciar qualquer declaração definitiva. Porque pode-se ser responsabilizado por qualquer coisa que se diga. O autor teve mesmo um conhecido que disse a uma das suas sobrinhas: «Minha querida, nunca mantenhas um diário. Um dia pode ser usado contra ti», e esse pensamento tem uma influência profunda na vida e no discurso ingleses.

O autor costumava tentar obter esse efeito reproduzindo quase por completo discursos que, a bem dizer, nunca acabavam, de maneira que a primeira versão de Os Herdeiros era composta por um conjunto de cenas vagas em que nunca se dizia nada de definitivo. Estas cenas diluíam-se umas nas outras até que todo o livro, no fim, se tornou em algo que não era mais do que uma série das mais vagas insinuações. O autor esperava por este meio conseguir um efeito de estilete: um requinte. Foi bem-sucedido, sem dúvida. Mas o esforço para o ler deve ter sido incomportável.

A função de Conrad em Os Herdeiros tal como hoje se encontra foi dar a cada cena o toque final; cada um destes, em muitos casos, de à imaginação do leitor o significado completo da cena. Ao olhar pelo livro o autor encontra ocorrência atrás de ocorrência destes finalizar de cena com um diálogo de Conrad. Aqui temos o — deveras insuportavelmente vago — herói a falar com o financeiro real sobre a heroína aventureira-sobrenatural. Originalmente o diálogo corria assim:

 

«Não percebes… Ela… Ela vai…»
Ele disse: «Ha! Ha!» num tom intolerável de real galhofa.
Eu repeti: «Não percebes… Para o teu próprio bem…»
Ele balançou-se um pouco sobre os pés e disse: «Bravo… Bravíssimo… Propões assustar…»
Olhei para aquela grande massa de corpo… Pessoas começavam a passar, agasalhadas, de saída do local.

 

A cena desfalecia naquele tom. No livro como ficou corre assim, com as adições de Conrad italicizadas:

 

Se não (parares de a perseguir estava implícito várias falas antes)— disse eu —, proíbo-te de a veres. E irei…
— Ah, ah! — objectou com a entoação de um borguista numa farsa. — Estamos nessa: somos o irmão notável. Fez uma pausa e depois acrescentou Bem, vai para o diabo, tu e as tuas proibições. Falou com o melhor bom humor.
— Estou a falar a sério — disse eu —, muito a sério. Isto já foi longe de mais. E mesmo para o teu bem é melhor que tu…
Ele disse: «Oh, oh!» no tom do seu «Ah, ah!»
Ela não é tua amiga — continuei a debater-me —, está a folgar contigo para proveito próprio; tu vais…
Ele balançou-se um pouco sobre os pés e disse: «Bravo… bravíssimo. Se não o podemos proibir, vamos assustá-lo. Continue, meu bom amigo…» E depois: «Vá, continue.»
Olhei para aquela grande massa de corpo…
Recusa completamente prestar atenção? — disse eu.
Ah, completamente — respondeu ele.

 

Nesse ponto, Conrad cortou uma ou duas páginas que foram transferidas para mais à frente no livro e passou directamente para:

 

O Barão Halderschrodt suicidou-se,

 

o que, para maior requinte, o autor tinha reproduzido por «O Barão Halderschrodt…» No entanto, Conrad ainda juntou mais ao efeito acrescentando:

 

Meias frases chegavam-nos aos ouvidos vindos de grupos que passavam por nós: um homem muito velho com um nariz que quase tocava nos seus lábios grossos estava a dizer:
Suicidou-se… Pela têmpora esquerda… Mon dieu!

 

Se o leitor perguntar como é que o autor pode saber aquilo que escreveu e aquilo que escreveu Conrad num livro com quase vinte e cinco anos, a resposta é muito simples. Por um lado, o autor lembra-se. Esta era a única cena do livro na qual martelámos durante algum tempo e a maneira como o fizemos está ainda fresca na sua cabeça. Por outro lado, é saber; Conrad nunca escreveria «um homem muito velho» ou «quase». Teria fornecido uma imagem para o nariz do homem e ter-lhe-ia dado uma idade exacta, da mesma maneira que precisou de especificar o facto de Halderschrodt ter disparado sobre si próprio, e na têmpora esquerda, nem mais.

O outro excerto no livro que o autor pode identificar definitivamente como sendo de Conrad é o que se segue. A bem da heroína-aventureira e de um rendimento o herói lúgubre — e este é o ponto — denunciou ao Sr. Chamberlain e às forças do mal o Sr. Balfour, Lorde Northcliffe, Leopoldo da Bélgica, a solidez financeira, o pequeno investidor e o passado. Está sozinho às quatro da manhã com o jornalista bêbado, o verdadeiro produtor daquela parangona que cria estes resultados arrasadores. A passagem completa, que é Conrad consistente, é uma coisa de duas páginas. Aqui está o excerto mais característico.

 

— Não me assustas… — disse eu — Já ninguém me assusta. — Uma sensação da minha inacessibilidade foi o primeiro gosto de um triunfo conquistado. Tinha exterminado o medo. O pobre diabo à minha frente parecia-me infinitamente distante. Estava perdido; mas era apenas um dos perdidos: um daqueles que eu já conseguia ver assoberbado pelo fluxo das comportas abertas pela minha mão. Seria destruído em boa companhia; arrancado da minha vista juntamente com o passado que tinham conhecido e com o futuro por que tinham aguardado. Mas ele era odioso. — Não quero mais nada consigo — disse eu.
— Hum, o quê?… Quem é que quer assustar?… Queria saber qual é o seu vício predilecto… Não diz? Pode seguramente. Vou-me… Quer que lhe diga o meu?… Não tenho tempo… Vou-me… Pergunte ao polícia… Um mariola no cruzamento serve… Vou-me…
— Tem de ir — disse eu.
— Quê… Dispensar-me?… Atirar borda fora o indispensável Soane como um limão espremido?… O que diria o Fox?… Hum? Mas não podes, meu rapaz. Não tu. Digo-to… Não podes… De antemão contigo… Farto disto… Vou-me… Para as ilhas… As Ilhas Afortunadas… Venha também… Aparte-se disto tudo… Areia quente, quente, cuide. Não virá? — Tinha uma expressão condoída. — Bem, vou-me. Acompanhe-me até ao carro de aluguer, velho camarada, é um companheiro decente apesar de tudo… Não um desses mendigos que vendem o melhor amigo… por um pouco de dinheiro… ou alguma mulher. Bem, acompanhe-me.
… Fui lá abaixo e vi-o a avançar rua acima com um meneio ligeiro sob a madrugada pálida… O eco dos meus passos nas lajes acompanhou-me, enchendo a terra vazia com o som dos meus passos.

 

Isto ocorre quase no fim do livro. Há outra passagem completamente de Conrad duas páginas depois:

 

Virei em direcção ao rio e na represa larga a luz solar envolveu-me, amigável, familiar e quente como os cuidados de um velho amigo. Uma chata negra andava à deriva, trôpega e vazia, e o homem solitário nela digladiava-se com a cana do leme pesada, retesando os braços, levantando a cara para o céu a cada braçada…
A chata com o homem ainda retesando-se ao remo sumiu-se da vista debaixo do arco da ponte, como se por uma porta para outro mundo. Uma sensação bizarra de solidão instalou-se em mim e voltei costas ao rio tão vazio quanto o meu dia. Cabriolés e landaus circulavam num contínuo rolar abafado de rodas e bater de cascos. Um rafeiro grande acrescentou uma nota tempestuosa e um rumor de correntes…

 

Estas duas passagens são praticamente toda a escrita de Conrad que há neste livro. Devemos ter tido uma luta dura sobre estas seis ou sete páginas. De que o autor se apercebe porque recorda ainda a sensação de alívio que se seguiu à escrita da excessivamente sentimental última cena, a comprazer-se na sua prosa juvenil e frases hediondas. Como aqui:

 

Tinha mantido os meus olhos no chão este tempo todo; agora olhava para ela, tentando perceber que não devia vê-la novamente. Era impossível. Havia aquela beleza intensa, aquela ausência de sombra que era como diafanidade. E havia a voz dela. Era impossível compreender que eu não devia voltar a vê-la, nunca mais ouvir a voz dela depois disto.
Ela ficou em silêncio durante muito tempo e eu não disse nada — nada de nada… Por fim ela disse: «Não há esperança. Temos de seguir os nossos caminhos; tu o teu, eu o meu. E depois se quiseres — se não conseguires esquecer — podes recordar que me preocupei; que, por um momento, entre dois suspiros, pensei sobre… falhar. É tudo o que posso fazer… para teu bem.»… Não tinha olhado para ela; mas mantive-me com o olhar afastado, muito consciente da sua presença diante de mim; da sua grande beleza, da sua grande glória.

 

A pontuação deste excerto é a da edição uniformizada das Obras Completas de Joseph Conrad, a capa da qual atribui o livro apenas a Joseph Conrad. A pontuação e as gralhas, que são muitas, são americanas e não do autor. O resto, sim.

Tendo chegado a este final, o autor levou-o até à Pent. Conrad olhou de soslaio para duas ou três páginas do manuscrito e exclamou: «Maravilhoso! Meu caro rapaz… Meu caro Ford. Mon vieux, não sei como o consegue!» e pousou o manuscrito na mesa. Foi tudo nessa tarde para a gráfica.

Ocorreu várias vezes ao autor questionar-se sobre se Conrad alguma vez leu — se alguma vez poderia ter lido — aquele excerto. Se nunca o fez, não havia mal na lacuna. Tinha por desculpa a fadiga da nossa guerra de vontades que se dava sempre que nos debruçávamos sobre um excerto difícil; havia ainda o caso de ser suposto o autor lidar com todas as mulheres dos livros que escrevíamos juntos.… No entanto, Conrad, assegurou o autor de que tinha corrigido muito cuidadosamente as provas do livro na edição inglesa das Obras Completas, numa altura em que o autor estava ocupado noutro lugar. Isto foi quando ele asseverou que Os Herdeiros era um livro muito bom. E se acrescentarmos que deixou ficar o seu nome como único autor na capa do livro tem de se imaginar que o estimava com algum gosto. Que o seu nome aparecesse nesses termos não foi obviamente responsabilidade de Conrad, mas deveu-se aos talentos do falecido Sr. Pinker e dos editores. (Por regra, não se mostra a capa a um autor antes da publicação. E naturalmente que isto ocorre ainda mais especificamente quando se trata de todos os volumes de uma edição completa.) Mas Conrad ofereceu-se mandar recolher todas as cópias de Os Herdeiros e de Romance para lhes mudar as capas. No entanto, o autor disse que não tinha importância: naquilo que diz respeito ao autor, Conrad poderia ter assinado todos os seus livros. Ainda podia. Por isso deixou-se a edição em paz. Mas pelo menos Conrad não se incomodou com a atribuição.

Mesmo assim, o autor prefere acreditar que Conrad nunca leu o último capítulo de Os Herdeiros. O factor fadiga seria mais do que suficiente para o desculpar. O autor está pronto a confessar que há umas quantas passagens de Romance que ele próprio só leu em francês… E era permitido a Conrad não ler as passagens daquilo a que ele chamava «as mulheres do Ford». Tinha sido apenas com algo parecido a náusea que ele se tinha forçado a aproximar-se desta dama o tempo suficiente para introduzir o «tinha bom cabelo, bons olhos e algum charme» da citação inicial deste capítulo. Foi com alguma dificuldade que se conteve de adicionar bons dentes à lista. Disse com absoluta seriedade: «Por que não bons dentes? Bons dentes numa mulher fazem parte do charme dela. Pense quando ela se ri. Não quer fazer com que ela não tenha bons dentes. São um sinal de boa saúde. O raio da mulher tem de ser saudável, não tem?» No entanto, o autor impediu aquilo… Hoje não o teria feito.

Mesmo assim, o autor preferiria acreditar que Conrad mentiu sobre ter lido, sobre ter visto as provas, sobre qualquer coisa; preferiria que Conrad tivesse roubado uma caixa das esmolas a que ele tivesse lido aquela prosa horrenda e a apelidasse de muito boa. O resto do livro está mal escrito mas não tão horrendamente. Ainda assim é mau quanto baste: uma miscelânea de prosa concebida no espírito de Christina Rossetti com imitações do falecido Henry James; inspirado pela sentimentalidade de um actor pré-rafaelita em cenas amorosas — especificamente por Sir Johnston Forbes Robertson dispepticamente a fazer de Romeu para a Julieta da Sra. Patrick Campbell; cadenciada como Flaubert e cheia de pequenas falas caçadas aos versos do autor daquele período. Na altura tinha apenas vinte e seis anos e tardava a amadurecer…

Corre assim: atmosfera rural, nomes de lugares românticos e tudo:

 

Deambulávamos pelo vale esquecido que fica entre Hardres e Stelling Minnis; permanecíamos em silêncio há longos minutos. Para mim, pelo menos, o silêncio estava impregnado com… emoções indefiníveis… Havia algo do mundo passado naqueles bosques suspensos, os pequenos véus de neblina imóvel — como se o Tempo não existisse naqueles sulcos do mundo maior; e estava-se tão completamente só; (De repente Conrad acrescentou aqui: podia ter acontecido qualquer coisa. Mas o autor prosseguiu intrepidamente.) permanecia calado. Os pássaros cantavam o sol a pôr-se. Estava muito escuro entre as ramagens e de minuto a minuto as cores do mundo ficavam mais carregadas e sombrias… Permanecia calado. Um rouxinol de Junho começou a cantar, um tudo nada rouco…

 

Compreende-se: ao fim e ao cabo o autor lá conseguiu pôr o seu rouxinol: um prodígio de persistência parruda. Pode ter sido por pura agonia que Conrad irrompeu aqui:

 

Estiquei a mão e toquei na dela. Agarrei sem qualquer hesitação. «Como poderia resistir-te?» disse eu, e ouvi o meu próprio sussurro com um certo maravilhamento pela sua emotividade…

 

Não se alarmem. Podia ter acontecido qualquer coisa. Mas o autor estava lá para salvar a jovem. Positivamente ele anota:

 

Não sabia para onde aquilo podia conduzir: lembro-me de que nem sabia quem ela era… Deixei a mão dela cair. «Temos de continuar», disse-lhe um tudo nada rouco…

 

O que terá então atraído Conrad para esta balbúrdia sem sentido? Em parte, sem dúvida, foi a ideia de terminar um livro rapidamente: aqui estava mais um riacho inexplorado possivelmente com ouro nos seus baixios ou nas suas barracas. Mas tratava-se disso apenas muito parcialmente. Havia alguma atracção misteriosa: a atitude de Conrad foi muito inflamada, o seu entusiasmo demasiado grande na primeira leitura. Em parte pode ter sido por causa do manuscrito ter sido lido. A retórica passa sempre quando vem numa voz humana. O autor tem frequentemente considerado bons manuscritos que jovens lhe lêem, só para ficar pasmado pela sua ornamentação — ou mesmo com a sua secura! — quando depois os lê por ele… Ainda assim não pode ter sido só isso: Conrad teve muitas oportunidades de ver o livro antes de estar concluído. Ou pode ter sido afeição: Conrad pode ter realmente tido afeição pelo autor. Ainda assim dificilmente terá sido isso…

O autor tem às vezes imaginado que, por mais que possamos ter escarnecido das preciosidades de cinco palavras de comprimento que no indicador esticado da velhice brilham para sempre… por mais que possamos ter escarnecido, foram as meias-frases do autor que, inescrutavelmente, saltavam da prosa e agarraram Conrad pelo pescoço. À cabeça deste capítulo está aquela frase misteriosa, «Excelência? Algumas cabras…» O autor imaginou isto. Escreveu-a num estado de espírito bem trivial, no mesmo espírito com que poderia escrever o pedido para um sacho quando se manda uma lista de instrumentos agrícolas de que necessitamos para um ferreiro. Queria fornecer a um Lugareño obscuro uma ocupação plausível. Mas assim que pôs as palavras no papel Conrad rompeu num dos seus rugidos de êxtase. «Isto», gritou quando estava em condições de falar, «é genial!» E sem ar, exausto e a espernear no sofá, continuou a arfar: «Genial!… Isto é genial… É isso que isto é. Puro génio. Genial, digo-lho eu!» O autor concordou que era genial — a bem da paz! E nos vinte anos que se seguiram, a qualquer segunda ou terceira carta para o autor, Conrad regressava à carga. «Excelência, algumas cabras…» escrevia ele. «Lembra-se?» Mesmo este ano, numa carta para a Transatlantic Review, atribuindo partes de Romance aos seus vários autores, escreveu: «Quinta Parte, praticamente toda sua, incluindo a famosa frase à qual ambos exclamámos: “Isto é genial!” (Lembra-se de qual é?), com talvez meia-dúzia de linhas escritas por mim…»

Num número subsequente do periódico em questão, o autor ofereceu como prémio aos seus leitores uma cópia de Romance se algum deles conseguisse identificar aquela passagem genial. Foram recebidas muitas respostas de leitores a arriscar passagens daquilo que, à superfície, parece ser mais genial… Mas nenhum arriscou: «Excelência, algumas cabras…» Talvez seja genial. Mas, frequentemente ao receber uma carta das «Não se lembra de algumas cabras?» de Conrad, o autor sentiu como se estivesse a ter crédito por um tiro de sorte a um rato…

Em Os Herdeiros, então, houve várias frases que Conrad aplaudiu quase tão arrebatadamente. Houve aquela já citada sobre um golpe obscuro e irrisório do tipo físico… Aí Conrad gostava das palavras «obscuro e irrisório». Outra — vinha depois do excerto já citado sobre o suicídio — é sem dúvida do autor e estava na primeira versão:

 

De Mersch caminhou lentamente ao longo do corredor afastando-se de nós. Havia uma rigidez extraordinária no seu andar, como se estivesse a tentar imitar o passo de ganso dos seus velhos tempos na Guarda Prussiana. A minha companheira olhava-o como se desejasse medir a dimensão do seu desespero.
— Dirias «Habet», não dirias? — perguntou-me.

 

A esta última frase Conrad também chamou genial. Talvez seja.

 Os Herdeiros apareceu. Não provocou qualquer agitação; mesmo para nós próprios provocou tão pouca que o autor não se consegue sequer lembrar de abrir o pacote que continha as primeiras cópias. Por essa altura Conrad já tinha deixado de acreditar nas qualidades comerciais do livro; o autor nunca tinha tido quaisquer ilusões. Tinha sido muito bem instruído pelo Sr. Edward Garnett.

Foi recebido pelos críticos com um hino de injúrias pelo número de pontos que tinha… Um cavalheiro engenhoso sugeriu mesmo que tínhamos enganado o Sr. Heinemann e o público que tinha pagado por um romance de seis xelins completo com palavras bem sólidas na página. Na América atraiu ainda menos atenção, mas os editores, tendo publicado o livro, tanto quanto o autor se recorda, com um erro na folha de rosto, ou possivelmente na capa, foi retirado de circulação com apenas quatro cópias vendidas, e depois reeditado. Diz-se que estas quatro cópias exigem uns preços exorbitantes aos coleccionadores. O autor não se lembra de alguma vez ter visto uma.

 

III

Regressámos então a Romance.

Tem sido asseverado que o autor pagou largas quantias a Conrad pela honra de colaborar com ele, sendo esse o móbil de Conrad para continuar com esses trabalhos árduos. Não foi esse o caso. Mesmo emprestar dinheiro a Conrad era sempre uma operação muito difícil. Frequentemente era muito dolorosa, ao ver a agonia de espírito em que Conrad estava por causa das suas dívidas ou da sua dificuldade nos negócios; de maneira que ver recusada a facilidade a alguém de conceder um pequeno empréstimo tinha quase o aspecto de uma crueldade — como se um doente em grande sofrimento recusasse, a bem da consciência, o alívio de um anestésico. Do autor Conrad , excepto num caso extremo, nunca aceitou qualquer empréstimo sem ver um caminho directo para o devolver com brevidade e pontualidade rigorosa — e assim pagava sempre na data por ele marcada. A excepção foi o caso de um daqueles desastres complicados que de vez em quando subjugam aqueles que não têm meios de sustento que não seja a frágil e fina ponta da caneta. Conrad tinha estado doente, tinha havido doenças na sua casa. Ainda por cima deu-se uma crise bancária e Conrad viu-se confrontado com o ter de pagar uma soma alta no imediato ou vender a casa. O autor adiantou essa quantia a Conrad; foi paga a seu tempo.

Doença e a antecipação de doença, dívida e, ainda mais, a antevisão de uma altura em que terá de se endividar são, por causa das suas necessárias capacidades de imaginação, mais aterradoras para o romancista do que para qualquer outra criatura humana. No que diz respeito à doença: numa sociedade que se tem organizado gradualmente de forma auto-protectora, são poucas as vocações ou profissões em que um trabalhador, em caso de doença, perde o seu rendimento por inteiro. A loja do comerciante continuará aberta — talvez seja gerida com menos eficiência se o seu chefe não estiver presente por um longo período; e o mesmo com o negócio do mercador ou do financeiro. O médico, o pároco e o advogado podem encontrar locos tenentes implicando obviamente algum custo. O operário tem o seu seguro; a classe doméstica tem protecção legal até certo ponto. O homem de letras não tem nada. Mesmo seguro contra a doença é para ele um fraco expediente uma vez que aquilo que o fará parar de trabalhar são com muita frequência doenças impossíveis de diagnosticar. O autor sofreu uma vez um colapso nervoso que durou para cima de dois anos, durante o qual se retirou de quase todas as actividades humanas, excepto ir a banhos em várias termas alemãs. Estava completamente incapacitado para escrever. Tinha seguro contra a doença há tempo considerável numa empresa grande e reputada; no entanto, tudo o que foi capaz de reaver dessa empresa, a título de compromisso, foi uma quantia pouco superior a um quarto das quotas que tinha pagado. Não houve compensação: aparentemente as leis em Inglaterra estipulam que enfermidades nervosas não são doenças.

No entanto impedem de escrever. E para tão admirável homem de família como era Conrad, para quem metade das preocupações advinham da questão de assegurar conforto e provimento permanente àqueles que dependiam dele, para quem as agonias sobre este departamento da sua vida eram sempiternas e avassaladoras, a mera doença de um membro da sua família era o suficiente para estropiar o seu espírito empreendedor por longos períodos. Porque a mente do escritor salta muito rapidamente para preocupações extremas, e muito frequentemente ele sabe mais do que devia, para o seu próprio bem, sobre o evoluir de doenças. É forçado a isso pelas mesmas necessidades da sua profissão no decurso da qual ele deve, pelo menos de vez em quando, descrever a evolução de uma doença ou outra. De facto, escreve porque a sua memória é mais tenaz e mais vívida no seu funcionamento do que a de outros homens. Isso faz com que a antecipação de todos os revezes pese mais profundamente sobre ele.

É esse ainda mais o caso, se possível, com o enfrentar de dívidas ou a antecipação de dívidas. O leigo incorre em dívidas como parte da negociata necessária da vida sem a qual não podem ser conduzidas operações comerciais. Com frequência os seus credores são grandes corporações, insensíveis é verdade, mas imunes ao sofrimento individual. Se ele próprio for à falência, nos dias que correm é na figura de uma firma ou empresa pública, e ele prosseguirá em muito como dantes. Para o romancista uma dívida é como uma espada nas mãos de um indivíduo que pode ele próprio morrer à fome se não receber a sua parte, que é também o executor, que é também uma misteriosa e temida força do mal, desconhecida nas suas funcionalidades. Desconhecida, especialmente… O que é que acontece se for a tribunal? Que tipo de caras têm os homens das correctoras? Desprezam-no ou reprovam-no por ter incorrido numa dívida que não pode liquidar?… Os horrores visualizados da situação são infinitos: imagina o seu filho pequeno atirado para fora do seu berço por homens brutos como os assassinos na Torre, ou ainda pior, imagina o seu filho com idade suficiente para apreciar privações, misérias e a desgraça…

Uma das memórias mais vívidas de que o autor se recorda na sua vida inteira foi provocada pela primeira visita de um grande escritor à Pent. Já foi descrita num livro do autor: mas como não se encontra quem o tenha lido, pode aparecer aqui outra vez. Estávamos na altura sentados na saleta da Pent num dia solarengo calmo. Conrad estava na mesa redonda no meio da divisão, a escrever, o rosto virado para a janela; o seu colaborador estava a ler algumas páginas de um manuscrito corrigido, voltado para a divisão. Passou uma sombra vinda da janela de trás sobre essas páginas. Conrad exclamou: «Valha-me Deus!», num tom de tal agonia e medo que o coração do autor parou mesmo enquanto se voltava para a janela para seguir a direcção do olharaterrado do companheiro. Passou-lhe pela cabeça: «Deve ser o oficial de diligências… Ele tem dívidas que eu desconheço… O que se pode fazer?... Estão as portas todas fechadas?… O que é que uma pessoa faz?» Um homem extremamente alto com uma cabeça desproporcionadamente pequena e solene passava furtivamente pela janela, observando a frente da casa desconfiado… A família estava toda fora a passear. Como poderiam eles entrar se todas as portas tinham de estar trancadas? Pela janela? Mas se uma janela pode ser usada como ponto de entrada, certamente que um oficial de diligências também a pode usar… Imagina-se aquele tipo imenso e solene, numa casaca de couteiro sarapintada, a pôr um joelho no parapeito como se de um rapaz se tratasse… Certamente que uma execução por dívidas não pode ocorrer depois do pôr-do-sol?… Então terão de permanecer lá fora até lá. Ou talvez essa lei seja obsoleta… Podiam ir para o celeiro grande… Lá está-se sempre quente e tranquilo, com o cheiro do feno: como uma igreja imensa.

A casa estava completamente silenciosa. A figura alta com o aspecto de um alcaide espanhol desapareceu por trás das rosas-da-china. Tinha andado furtivamente, muito lento, como um homem num cortejo grave — uma cegonha. De repente Conrad exclamou numa voz que era mais como um grito de alegria: «Por Júpiter!… É o homem que vem ver da égua!» Conrad andava quase sempre metido em negócios equinos complicados com aquela sua égua. Ia trocá-la por um par de póneis de Shetland e uma cortadora de palha; ia vendê-la no mercado de Ashford como contrapartida para parte do valor de um cavalo cigano robusto, a parte restante a ser paga pelo aluguer da égua durante a ceifa ao agricultor que arrendava as terras da Pent; era para ser trocada a um negociante de cavalos que estava prestes a ir à falência e que tinha a mais admirável escrivaninha e uma máquina de escrever muito boa. As caleches podiam ser alugadas na estalagem Drum, em Stamford…

A convicção de Conrad restaurou a vida à Pent desfalecida: respirou outra vez, o gato saltou do parapeito da janela; o relógio bateu as quatro… O autor apressou-se, ainda um pouco nervoso, a abrir a porta da frente… O homem alto, magro e solene olhou-o seriamente. O autor exclamou apressadamente: «A égua está fora, num passeio…» Acrescentou: «Com as senhoras!» É um grande feito conseguir provar a um negociante de cavalos que a nossa égua pode mesmo ser conduzida por uma senhora. O homem — assemelhava-se a um relógio de sol —, na voz arrastada que um relógio de sol deve ter, disse: «Eu sou o Hudson!» O autor disse: «Sim, sim. A égua está fora com as senhoras.» Dando à voz a ressonância de um sino gigante, o homem alto com o tipo de barba espanhola disse: «Eu sou o… W… H… Hud… son. Quero ver o Conrad. Não és o Conrad, pois não? Tu és o Hueffer.»…

O autor pode bem ter-se enganado a analisar a personalidade de Conrad, apesar de se manter fortemente convicto de, depois daquele rei entre os homens ter saído, Conrad ter dito: «Por Júpiter, pensei que fosse um oficial de diligências!» Mas a tarefa de escrever para alguém com a natureza de Conrad é terrivelmente absorvente. Ser perturbado repentinamente pode provocar um momento de loucura real… Uma vez íamos a caminho da Cidade levar umas provas a um editor, e a meio caminho entre Sandling e Charing Cross, Conrad lembrou-se de uma frase que se esquecera de ter visto nas provas. Tentou corrigi-las com um lápis, mas o comboio sacudia-se de tal forma que escrever, sentado, era impossível. Conrad agachou-se no chão da carruagem e deitado sobre a barriga continuou a escrever. Obviamente que quando a frase estava corrigida, vinte outras correcções saltavam da página. Estávamos sozinhos na carruagem. O comboio passou por Paddock Wood, Orpington, acelerando pelos subúrbios. O autor disse: «Estamos a chegar à Cidade!» Conrad não se mexeu a não ser para escrever. Os telhados de Londres rodopiavam em perspectiva à nossa volta; a sombra da estação de Cannon Street estava sobre nós. Conrad escrevia. A última sombra de Charing Cross estava sobre nós. Devia ser muito difícil ver ali em baixo. Nunca se mexeu… Ligeiramente chocado com a ideia de que um empregado de carruagem pudesse abrir a porta e achar-nos estranhos, o autor tocou no ombro de Conrad e disse: «Chegámos!» A cara de Conrad estava extraordinária — corada e loucamente violenta. Pôs-se em pé num salto e foi direito à garganta do autor…

O leitor leigo — um oficial do exército de Sua Majestade, digamos — neste momento não deve dizer: «Oh, estes homens das letras!»… Ele que pense nos seus próprios sentimentos quando está a tentar escrever uma mentira particularmente intricada à Administração sobre isto ou aquilo… O autor viu uma vez um coronel — e, já agora, um coronel muito esperto — da Administração pegar numa pistola e quase acertar num oficial de dia que o tinha interrompido durante uma redacção literária. O quartel-mestre, de quem era o trabalho, o adjunto e o autor, que tinha sido chamado, tendo falhado tudo, o Comandante estava ele próprio a tentar explicar ao quartel-general da guarnição porque é que a lavagem da roupa do regimento tinha sido entregada à Riverdale Laundry Co. em vez de a uma empresa recomendada pelo Q.G. Podia quase jurar que a língua seguia a caneta, às voltas e voltas na boca, num esforço de redacção…

Bem, o leitor leigo deve perceber que as nossas línguas seguem mesmo as nossas canetas quando estamos envolvidos na escrita das mentiras capciosas das quais depende a nossa vida. E se as nossas mentiras não forem convincentes, nós, tal como ele, morreremos à fome. E nós estamos nisto o tempo todo enquanto ele não dispensa em média mais do que cinco minutos por dia durante cinco dias por semana a redigir os documentos ardilosos que o salvam de ter de abdicar do posto de comando. E só tem uma Administração e um adjunto assistente para enganar: nós mentimos a milhares. Se tivermos sorte, a dezenas de milhares! Por isso ficamos absortos… Não é mais fácil para nós juntar palavras: é mais difícil, porque temos mais sensibilidade para as palavras. E nós que nos atiramos a isto com persistência, confiantes em face do inevitável fracasso… somos os espíritos corajosos.

Pelo menos Conrad era. Deve ser recordado que teve de lutar, não apenas com uma língua, mas com três. Ou digamos que com duas e com o fantasma de uma, pois ocorria-lhe dizer de vez em quando: «Há uma palavra assim e assim em polaco para exprimir aquilo que quero». Mas isso só acontecia muito de vez em quando. O resto das vezes conseguia um efeito em francês que o satisfazia. Claro que era predominantemente este o caso nas passagens de alguma minudência de pensamento ou expressão. Podia obviamente escrever: «Toma uma chávena de chá?», ou: «Está morto», sem primeiro exprimir-se para si próprio em francês. Mas quando escrevia um conjunto de frases como «o dom da expressão, o desconcertante, iluminado, o mais inflamado, mais desprezível, o raio de luz palpitante ou o fluxo traiçoeiro do coração de umas trevas impenetráveis», estava a traduzir directamente do francês na sua cabeça. Ou quando escrevia: «O olhar deles era franco, profundo, confiante e de confiança», ou: «A linha do horizonte estava barrada por um aglomerado de nuvens negras e o canal tranquilo que conduzia aos confins da terra fluía sombrio sob um céu carregado — parecia conduzir ao coração de uma negritude imensa.» Naturalmente, enquanto mestre marinheiro britânico, não tinha de pensar na linha do horizonte como «le large», mas quando estava a experimentar a sonoridade dessa frase para a sua cadência final primeiro disse mesmo «le large» e depois disse: «O mar alto; o caminho para o mar alto. Não, o horizonte.» Disso o autor lembra-se bem… Ainda para mais, Conrad queria acabar a história com as palavras: «O horror! O horror!» «L’horreur!» tendo sido as últimas palavras de Kurtz; mas desistiu disso. A acentuação da palavra inglesa era diferente da da francesa*; o sombreado do significado também. E o artifício dum final assim, que seria perfeitamente normal numa história francesa, seria aquilo a que se costuma chamar chargé — uma palavra significando algo entre perturbador, melodramático e retórico, para a qual não existe equivalente inglês. Talvez «sobrecarregado de sentimento» pudesse aproximar-se tanto quanto possível: mas isso é trapalhão…

Mas a mera tradução directa do francês imaginado para inglês era só uma brincadeira de criança. Era quando se chegava à transposição específica, de uma palavra como chargé de francês para inglês, que as dificuldades começavam. O autor lembra-se de Conrad gastar quase um dia inteiro à volta de uma palavra em duas ou três frases nas provas do volume da Blackwood chamado Mocidade. Eram duas palavras, talvez — «serene» [sereno] e «azure» [cerúleo]. «Azure» certamente. «E ela rastejou, andar ou morrer, no tempo sereno. O céu era um milagre de pureza, um milagre cerúleo.» Conrad disse «azure», o autor «aysure» — ou mais exactamente «aysyeh». Isto preocupou muito Conrad uma vez que queria «azure» na sua cadência. Leu a frase uma vez e outra para ver como soava.

O ponto era que ele estava perfeitamente consciente de que «azure» era uma palavra francesa, ou em inglês um termo quase exclusivo da heráldica, e toda a sua empresa foi para usar apenas tais palavras como as que são encontradas no inglês vernacular comum — ou nas proximidades, pois ele nunca se conseguiu convencer de quão miserável coisa era o inglês vernacular comum. O vocabulário que usava a falar inglês era vasto e considerava falta de patriotismo pensar que o inglês médio conhecia a sua língua pior do que ele.

O Sr. Henry James costumava chamar a Marlowe, durante muitos anos o narrador habitual das histórias de Conrad, «aquele mestre marinheiro tolo». Queria dizer especificamente que Marlowe dava mais para filósofo e tinha um vocabulário vastamente mais amplo e mais variado do que poderíamos creditar aos mestres marinheiros enquanto classe. No entanto, Conrad insistia em que Marlowe estava pouco acima do comum oficial de navio em todos os aspectos e presumivelmente conhecia melhor os seus antigos camaradas de serviço que o Sr. James — ou o resto de nós… Ainda assim pensava realmente que a palavra «azure» estaria fora do vocabulário comum na conversa de um capitão de navio…

Falámos disso então durante um dia inteiro… Por que não dizer simplesmente «azul»? Porque, na verdade, não é azul. Azul é algo com um grão mais grosseiro: imagina-se o produto de um pintor impressionista francês — ou de um pintor de casas —, com as pinceladas a verem-se. Ou pensa-se assim do azul depois de se ter pensado em «azure». «Azure» é mais transparente…

Ou outra vez a palavra «serene»… Por que não «calm» [calmo]? Por que não «quiet» [tranquilo]?… Bem, tranquilo aplicado ao clima é — ou talvez seja apenas foi — parte da «linguagem privada» que estava a ser usada pelos últimos poetas pré-rafaelitas. Isso eliminava tranquilo. Calmo, por outro lado, é para um mestre marinheiro quase demasiado normal e demasiado inclusivo tecnicamente. Calmo é num diário de bordo quase qualquer clima que não seria agitado para um homem em terra — ou nas proximidades. Calmo de morte é — mais uma vez para um marinheiro — demasiado técnico. Calmaria de morte exclui até a mais leve agitação de vento, a mais leve ondulação na superfície lisa do mar.

O autor ouviu acusações de que Conrad era picuinhas; por que não deveria usar termos náuticos técnicos e deixar o leitor perceber aquilo que conseguir? Mas o mar de Conrad é mais real do que o mar de qualquer outro escritor do mar; e é mais real porque ele evitava a palavra técnica.

O excerto completo de Mocidade sob consideração é o seguinte — o autor cita de memória, mas tanto quanto diz respeito ao excerto está pronto para pôr a memória ao lado da página impressa:

 

E ela rastejou, andar ou morrer, no tempo sereno. O céu era um milagre de pureza, um milagre cerúleo. O mar estava polido, azul, cristalino, a brilhar como uma pedra preciosa, a estender-se para todos os lados, a toda a volta do horizonte. Como se todo o globo terrestre tivesse sido uma jóia, uma safira colossal. E sobre o lustre das grandiosas águas calmas o Judea movia-se imperceptivelmente, envolvido por vapores lânguidos e sujos…

 

Isto é até onde a memória do autor o leva, embora o parágrafo acabe com as palavras: «O esplendor do mar e do céu.»

Isto é, então, a quase perfeição da escrita deste tipo sobre o mar. (Stephen Crane poderia alcançar outro primor ao descrever as ondas como bárbaras e abruptas: mas no fim de contas isso não é menos antropomórfico.) E as palavras sereno e cerúleo permaneceram depois de uma conversa infinita de maneira que a passagem completa pudesse conservar a sua nota de personalidade do Destino que observava imperscrutavelmente por trás do céu. Era o Destino que estava sereno, que tinha aquela pureza, que era cerúleo… e que ironicamente punha aquele borrão de vapor oleoso do navio ao longo da serenidade da safira miraculosa — para que a mocidade pudesse ser iluminada acerca da natureza do cosmos, mesmo durante o processo de se comover com os seus esplendores.

«Sereno» aplicado ao clima; «cerúleo» aplicado ao céu são escrita rebuscada para uma sombra, são um tudo nada chargés se meramente aplicadas ao mar e ao céu… Mas Conrad era obcecado pela ideia de um Destino omnipresente por trás das coisas; de um Destino que era augusto, cego, imperscrutável, justo e acima de tudo desapaixonado, que decretou que o exterior das coisas — o mar, o céu, a terra, amor, mercadoria, os ventos — fará a mocidade parecer suavemente ridícula e todas as outras idades dos homens sombrias, imbecis, transviadas — e, possivelmente, heróicas… Tivesse a personagem principal desta história sido um quarentão teríamos tido, adicionado ao navio incendiado com o seu fumo, mau tempo, roupas ensopadas, os atributos miseráveis do mar azedo. Como era um assunto de Mocidade há clima sereno e um milagre de pureza, para dilatar a ironia do Destino.

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* Regimento de East Kent. [N. do T.]

 
 
 
 
 
 

* Em inglês, «horror» tem a tónica na primeira sílaba, enquanto em francês, «horreur», a tónica recai na segunda sílaba. [N. do T.]