PRIMEIRA PARTE — III-V
III
Num desses dias, então, saímos da Pent vestidos a rigor para ir visitar o Sr. Wells, a Sandgate. Deu-se um incidente curioso. Estávamos nós à entrada da quinta do Sr. Wells, no estado inquieto daqueles que cumprem uma visita oficial e, pasme-se, o botão da campainha eléctrica premiu-se, sozinho, e a campainha ressoou… Conrad exclamou: «Tiens!… O Homem Invisível!», e rebentou num riso extraordinário e incrédulo. Enquanto isso acontecia a porta abriu-se mostrando rostos solenes.
Cumprimos a nossa visita. Só os donos daquelas caras solenes poderão atestar sobre se estávamos bêbados ou não. Suponho que estivéssemos. Mas o incidente com o botão da campainha era de um tipo que apelava de forma peculiar ao humor de Conrad. Depois disso, durante anos, tendo aparecido uma tradução italiana do livro do Sr. Wells, nunca se podia mencionar o nome desse autor sem que Conrad exclamasse: «Tiens!… L’Uomo Invisible!»… De facto, numa visita durante o intervalo da nossa longa separação, causada pelas vicissitudes europeias e suas sequelae, Conrad perguntou ao autor: «Ainda vê o Wells?», e acrescentou: «L’Uomo Invisible… Lembra-se?»
Mas O Homem Invisível do Sr. Wells deixou uma impressão muito vincada em Conrad, como deixou, aliás, no autor. Era merecido que assim fosse. De facto, se a memória não me falha, O Homem Invisível, o final de Sea Lady [A Senhora do Mar] e algumas frases que esse livro continha, e dois contos chamados, um The Man who could work Miracles [O Homem que Fazia Milagres] e o outro Fear [Medo], compunham, àquela data, toda a escrita inglesa que nós, trabalhando enquanto junta, admirávamos. Mais tarde apareceram as histórias do Sr. Cunninghame Graham, a escrita de W. H. Hudson e, com reservas da parte de Conrad em relação aos romances tardios – a obra de Henry James.
Era como se, quando considerávamos qualquer outra obra de um autor inglês, acabássemos sempre a dizer: «Oh, mas lembras-te de O Brejeiro do Morin?», ou da casquette de Charles Bovary, de acordo com o tipo de trabalho que estava sob escrutínio. Depois de ler a passagem de O Homem Invisível, por exemplo, do calceteiro a arremessar a pá contra a invisibilidade que passava à sua frente, ou o episódio da lamparina virada ao contrário com a chama a arder para baixo, de The Man who could work Miracles, não nos lembrávamos de nenhuma obra-prima francesa… Estes excertos eram autênticos, em construção, linguagem e no espaço que ocupavam na arquitectura do livro ou conto – na progressão do efeito!
O Sr. Wells já registou que, nessa altura, estava consciente de na Pent se estar a montar uma conspiração contra ele e contra a literatura britânica. Contra a literatura britânica, sim, se lhe quisermos chamar assim: contra o Sr. Wells, a amplitude das nossas maquinações está registada acima.
Conrad tinha noções estranhas e formais sobre como se devia agir na vida literária. Tanto quanto lhe dizia respeito, o propósito da nossa visita ao Sr. Wells era anunciar ao mundo das letras que estávamos envolvidos numa colaboração. Para o autor isso era apenas um assunto de absoluta indiferença, excepto no que diz respeito a uma desinclinação não verbalizada para ir de visita a qualquer lado e em qualquer altura. Mas Conrad apreciava procedimentos de natureza oficial. Ele teria apreciado que a condução para cumprir visitas aos membros da Academia fosse feita numa caleche, como é costume entre os candidatos a membros da Academia Francesa. E excessivamente vívido na cabeça do autor está o sentimento que teve enquanto conduzíamos por baixo da ponte de comboio inclinada que passa por cima Sandling Junction. O autor parecia um pacote de papel castanho sentado ao lado de um funcionário de uniforme verde, decorado com folhas de palmeira douradas e bicorne emplumado…
Na altura estávamos a trabalhar no terceiro esboço da segunda parte de Romance e tínhamos por fim, mental e definitivamente, decidido que o livro acabaria por avançar. Disto o autor está certo. Está certo porque a imagem exacta e o ambiente desse tempo apareceram-lhe, de repente, enquanto o autor fazia uma recensão detalhada da tradução francesa de Romance. O autor estava em pleno oceano, no convés de um paquete, lendo meticulosamente a tradução de um episódio que descrevia como, numa noite azul em Kingston Vale, John Kemp deitou ao chão, na presença do Almirante da Frota nas águas da Jamaica, um tal Sr. Topnambo, membro do conselho do Governador, que usava calças brancas que brilhavam à meia-luz… Nesse convés superior, ao sol, estavam alguns judeus nova-iorquinos a jogar pinocle e algumas garotas de Washington a ler romances. Mas o autor ouviu a sua própria voz como quando leu em voz alta, na saleta da Pent, a passagem que dizia respeito ao Sr. Topnambo, a noite azul, as calças brancas, as caleches alinhadas ao luar, à espera que o Almirante Rowley e o seu séquito alcoolizado se fizessem à estrada. E, de seguida, Conrad interrompendo… «Por Júpiter», disse ele, «é uma terceira pessoa que está a escrever!»
O carácter daquele momento é completamente evidente para o autor. Conrad interrompeu-o com uma nota de alívio na voz. Tinha encontrado uma fórmula para justificar a existência de colaboração em geral e da nossa colaboração. Até ali cada um tinha lutado, tacitamente, pelo seu estilo de escrita. Com o aparecimento de noites azuis, da lua, das palmeiras e das luzes brilhantes da estalagem reflectidas no rio, Conrad anteviu as possibilidades que existiam na história para o seu tom exótico. Sobretudo com o aparecimento da política: porque John Kemp, ao chegar a vias de facto com o Sr. Topnambo, membro do conselho do Governador, identificava-se naquele preciso momento com o partido que, àquela data, na ilha da Jamaica, desejava a anexação pelos Estados Unidos.
Isto tornava a nossa personagem principal imediatamente maleável por Conrad. John Kemp meramente raptado por piratas e julgado injustamente pelo sistema judicial do nosso país não era assim tão apelativo, mas um John Kemp que era, para além disso, um refugiado político, suspeito de alta traição e vítima de mercadores das Índias Ocidentais… Isto é que era espremer o tema até à última gota de sangue…
As diferenças no nosso temperamento eram bem marcadas. Conrad era corajoso: era pela inclusão e para o diabo com as consequências. O autor, mais circunspecto, estava sempre de olho na supressão do incidente melodramático e da frase pomposa. Assim, até àquele momento característico, com o autor escrevendo grande parte do primeiro esboço, Conrad permanecera clamando: «Meta! Meta!» O autor era suposto meter mais um, e outro, e ainda outro prego no caixão que punha o algo apático John Kemp a caminho duma inevitável forca. O provimento efectivo da intriga na Inglaterra e na Jamaica de 1820 era da responsabilidade do autor. Conrad contentava-se em dizer: «Tem de inventar. Tem de pôr esse sujeito a viver constantemente na sombra da forca.» No esboço original do livro, John Kemp havia sido um mero imediato de um navio mercante a zarpar para a Jamaica, no seguimento normal da sua ligação ao mar. Mas no segundo esboço andava misturado com contrabandistas e fugia da praia de Hythe, ao luar, com a guarda mesmo no seu encalce – já um candidato aos cuidados profissionais de um carrasco. No entanto, nesse segundo esboço, estava na Jamaica, ainda um mero aprendiz de agricultor – inapto para a forca. Teria de haver maior inevitabilidade em forma de invenção. Assim, o autor pôs-se a trabalhar lendo um grande número de jornais jamaicanos dos anos vinte e, apercebendo-se de que aquela ilha era um formigueiro de intriga pelos chamados Secessionistas, foi uma tarefa fácil associar Kemp à forca através desses traidores da coroa britânica. No entanto, Conrad era um Lealista: um Lealista de todos os regimes que alguma vez existiram mas um Lealista fervoroso à Grã-Bretanha. Era necessário, por isso, meter mais um prego no caixão: tinha de se fazer de Kemp um homem julgado injustamente, traído pela crueldade estúpida de mercadores e da administração. Tornou-se assim na figura perfeita para Conrad manipular. Porque se Conrad era o eterno Lealista, a estupidez cruel e sem imaginação dos oficiais da Coroa e do Governo faziam, todavia, parte essencial da sua crença. Era um político – mas um político dos impasses. Para ele, o Império Britânico era a perfeição entre as perfeições humanas mas todos os seus políticos, todos os seus oficiais, polícias, oficiais do exército da Coroa, carcereiros, pilotos, comandantes e políticas de porto eram de uma imbecilidade que os colocava, em termos de inteligência, abaixo do primeiro tenente da marinha francesa com que nos pudéssemos cruzar…
Assim, até àquele momento, tínhamos colocado John Kemp numa posição que muito poucos heróis ficcionais injustamente incriminados devem ter ocupado. Quando estava no banco dos réus do Old Bailey tinha todo o sistema judicial, todo o sistema político, todas as forças navais da Coroa, a influência conjunta de toda a cidade de Londres e do reino de Espanha determinados a enforcá-lo. E o autor é obrigado a confessar que ao ler Romance depois de um intervalo de vinte anos – e numa tradução francesa! – ainda sentiu os cabelos da nuca eriçarem-se com a situação difícil de John Kemp no seu julgamento; e reflectiu sobre a genialidade melodramática que havia possuído aquele terceiro escritor que não era nem ele próprio nem Conrad…
Por ter dominado aquela teoria reconfortante, Conrad nunca a abandonou. Nos intervalos das nossas leituras em voz alta, que duraram anos, diria, sempre como se fosse uma trouvaille, que aquilo era certamente o estilo de escrita de uma terceira entidade. Não tinha passado muito tempo desde que ele havia abandonado toda a esperança de que fortuna célere se seguisse ao rápido término daquele livro. Para o autor, o prazer de estar eternamente envolvido em discussões técnicas com Conrad era motivo suficiente para continuarmos o nosso labor. Mas para Conrad, com a sua ideia inflexível acerca da necessidade de uma carreira, isso não era suficiente. Tinha de encontrar pelo menos uma justificação artística para continuar. Éramos escritores muito impopulares mas ambos sabíamos escrever. Que sentido fazia não escrevermos em separado se isso não trazia ganhos comerciais? Encontrou-a no pensamento esteticamente reconfortante de que o mundo das letras seria enriquecido pela existência de um terceiro artista. O terceiro artista não tinha nem a sua coragem nem a sua excelência; ele próprio não detinha nem a circunspecção literária nem o puritanismo verbal do seu colaborador. Por isso a colaboração era, no mínimo… diferente.
Assim chegou a nossa excursão pela estrada de Lower Sandgate. Conrad considerara apropriado que fizéssemos um anúncio oficial. A colaboração estava decidida. Ninguém teria sido receptor mais apropriado deste anúncio do que o autor de O Homem Invisível. Naquele tempo, Conrad tinha a forte convicção de que aqueles que tinham tomado parte no seu lançamento enquanto escritor tinham o direito de lhes ser comunicada qualquer resolução relevante que tomasse. Era um traço exemplar do seu carácter. Originalmente tinha contactado o Sr. Henley, o Sr. Marriott Watson e, presume o autor, o Sr. Edward Garnett, sendo estes, na verdade, os seus principais apoiantes nos bastidores. O Sr. Wells tinha sido o seu apoiante principal em público – enquanto Crítico. As críticas que Almayer tinha recebido formavam, no seu todo, uma montanha de elogios: o encómio mais fabuloso e comovente sendo aquele escrito pelo Sr. Wells para a Saturday Review, um órgão à altura miraculosamente estimado, sob a direcção do Sr. Frank Harris. Assim sendo, na altura vivendo o Sr. Wells nas imediações, a quem melhor poderia esta junta ter-se dirigido? Pelo menos foi o que Conrad pensou, e o autor não colocou nenhuma objecção declarada.
Aparentemente o Sr. Wells pensava o mesmo. Daquilo que se passou nessa quinta na estrada de Lower Sandgate, à excepção de que o jardim das traseiras tinha, na descida para a praia, um escadote no qual várias criaturas encantadoras se recreavam, para cima e para baixo, tendo o Canal por fundo, o autor guarda na memória apenas a conversa com Bob Stevenson e a recordação de Conrad a conversar, com grande vivacidade, com a Sra. Wells sobre a grande tempestade na qual ele chegou pela primeira vez ao Canal, passando aquele cabo. O autor empenhava-se em recordar essa grande tempestade. Estava na escola, em Folkestone, no penhasco que ficava perpendicularmente acima de onde nos sentávamos naquele momento. Ao sol, na manhã a seguir ao vendaval se ter dissipado, olhámos para baixo da ponta do Leas. Toda a curvatura da baía de Dungeness tinha uma frota nas praias – sumacas e embarcações costeiras sem conta, veleiros internacionais e duas fragatas da carreira da Índia, o Plassy e o Clive, com as suas laterais pretas e brancas muito altas, todos de lado, cordame e lona pendurados como cortinas ao longo da baía, inesquecíveis e vulneráveis… Bob Stevenson estava empenhado em dizer ao autor, com vivacidade semelhante à de Conrad, que Ford Madox Brown não sabia pintar. O autor desejava estar no grupo que rodeava Conrad e a Sra. Wells. O cruzamento das vozes desses dois conversadores brilhantes permanece nestes ouvidos, e a mistura estranha de sentimentos…
No dia seguinte, o Sr. Wells pedalou até ao Outeiro de Aldington onde, a cerca de onze quilómetros da Pent, o autor estava mais uma vez a levar uma vida de agricultor do tipo mais austero – numa casa de campo diminuta, os Conrad ocupando a Pent. De facto, nos intervalos de carregar John Kemp até à forca, o autor estava empenhado na criação de uma espécie nova de batata. O Sr. Wells tinha vindo para convencer o autor a não colaborar com Conrad. Com uma solenidade extrema suplicou ao autor que não estragasse o estilo de Conrad: «O maravilhoso estilo oriental… É tão delicado como o mecanismo de um relógio e só o estragará enfiando os seus dedos nele.» O autor respondeu que Conrad queria uma colaboração e, no que lhe dizia respeito, Conrad teria aquilo que queria. O autor ainda consegue ver a forma desanimada como o Sr. Wells montou na bicicleta junto ao degrau das traseiras e se foi, pedalando ao longo da fileira de pequenas colinas… Não trocámos mais do que estas duas falas.
IV
No tom silencioso e lúgubre da Pent tinha-se imiscuído o cenário magnífico de mar e céu que se via de Aldington, com o seu Outeiro. Passávamos o tempo a conduzir a égua amigável e o infame pónei Exmoor entre um sítio e o outro. Saíamos em manhãs solarengas com pedaços de manuscrito; regressávamos debaixo de aguaceiros ferozes, a lama a salpicar de forma visível à frente das lanternas ténues, o manuscrito lido em voz alta, comentado e anotado para alterações… Este tempo retorna como um período de grande tranquilidade, embora os céus altos de Aldington, com o sapal matizado, em forma de foice, e o final achatado do Canal terminando nos penhascos rosados de Boulogne, pareçam gretados como a superfície de uma pintura antiga e brilhante estará gretada – com as agonias da pobreza, da falta de sucesso, das negociações e dúvidas de Conrad.
Ainda assim um período de grandes tranquilidades e, a intervalos, com triunfos. Pinker, um Bramahª pisco com a figura do Destino, concederia um adiantamento inimaginável; William Heinemann – o mais generoso e douto editor, ainda para mais judeu – entregaria um cheque inesperado no último andar do 31 de Belford Street enquanto o autor mantinha Pawling – um cristão louro mas muito mais editor que o sócio semita – tão interessado quanto lhe era possível com uma descrição do enredo de Os Herdeiros, uma colaboração frouxa sem grande enredo que a Heinemann acabou por publicar. Então Conrad entrava, abotoando o sobretudo sobre o cheque: o Sr. Pawling atirava as mãos ao ar e exclamava ao autor: «Deixaste-o chegar-se àquele asno do William outra vez. Valha-me Deus, isso é jogo sujo!»… E os dois conspiradores contra a paz de espírito do número 31 da Bedford Street prosseguiam para a famosa Bodega, mesmo à saída da Strand. Ali, com o Sr. Henry Irving e Nellie Farren em mesas contíguas, acompanhados por salmão fumado e champanhe em copos pequenos, jogavam dominó até às quatro e meia, o último comboio para o Sandling Junction, com as suas linhas calmas de paisagem, o ar puro e a égua ao cuidado do moço de cavalariça que estaria naquele preciso momento a acender as lanternas do cabriolé – este último comboio partindo de Charing Cross às quatro e cinquenta e chegando mesmo ao anoitecer…
Há algo de propício à escrita em quartos baixos, numa região de colinas vulgar, com campos quase nivelados que embocam, lá ao longe, em convoluções serenas. Deixem que a luz directa seja modificada por um celeiro, a iluminação chegando do pico do céu: deixem que haja uma caminhada de tombadilho para cima e para baixo em que, ocasionalmente, Conrad pode aparecer de pijama ou roupão, obtendo alívio para os seus pensamentos num relance pelos campos onde o autor estará a praticar as suas tacadas de golfe… Pois, precisamente num quarto assim, com um celeiro a bloquear a luz directa, com um estaleiro em miniatura, numa região de colinas vulgar, o autor – senta-se a escrever! E atrevem-se a dizer-lhe que ele não pode sair e, à chuva, apanhando o seu pónei perigoso que se meneia e dá um coice na peneira de grãos convidativa que leva na mão, falhando por pouco o peito… Não pode fazer os onze quilómetros até à Pent para perguntar a Conrad o que ele acha do Coronel Marchand e de Fashoda!… Devem certamente estar a mentir… Ou então querem dizer-lhe que dentro de meia-hora Conrad não chegará, no carro desfeito alugado à White Hart, em Stanford, para perguntar o que devemos pensar de Fashoda e do Coronel Marchand e o que faremos se houver realmente uma guerra com a França… Recebemos os jornais de Londres apenas na segunda volta do carteiro, às quatro e meia, e, por regra, não olhamos para eles senão no dia seguinte, ao pequeno-almoço. Mas nestes tempos estimulantes, com o Coronel Marchand a atravessar o Sahara e a içar a bandeira francesa numa posição que Kitchener de Cartum declarou ser uma posição central para o Império Britânico em África e, consequentemente, no caminho para a Índia… E os franceses na posse do seu extraordinário canhão de 75mm… Tudo depende do que os alemães vão fazer, não tendo os russos mãos a medir no Extremo Oriente…
Era assim, quando não estávamos a discutir a conveniência da palavra bleu-foncé enquanto adjectivo a aplicar às couves no campo, ou quando não estávamos comovidos em entusiasmos excêntricos pela escolha de palavras de Christina Rossetti… Mas se me dizem que não posso atrelar o Tommy e conduzir à chuva até à Pent, iluminada a velas – nada de Eau, Gaz, Electricité, na residência desse senhor – bem, se me dizem isso, suponho que têm razão… «C’est le mur d’un silence eternel qui descend devant nous, mon vieux!»… Pois para o autor o sentimento foi muito forte, durante uma grande parte do século, de que Conrad ali estava para poder ser consultado acerca de uma dificuldade – em política, na arquitectura de uma história, sobre uma palavra inglesa ou sobre o francês para Romance – para o qual não há palavra em francês!
O sentimento inevitável que tínhamos acerca dele era que era prático, que eslavo era a última coisa que ele era. Porque o eslavo, para ser o verdadeiro eslavo, deve ser como que indefeso ante as vicissitudes da vida – tão indefeso quanto um gatinho recém-nascido, um objecto acinzentado a esparramar-se, maioritariamente gelatinoso. Uma espécie de Dostoieffsky! Se perguntassem a Conrad como dar a volta a um banqueiro, ele teria um expediente. Se lhe perguntassem se as mulheres deviam poder votar ele diria: não, com determinação. E depois, lembrando-se do papel desempenhado pelas mulheres na manutenção do espírito nacionalista do seu país, a Polónia, onde todos os homens se viraram para a bebedeira, luxúria e indiferença a seguir à revolução falhada de 1862, diria que a única criatura que devia ter a honra de poder votar, algo sempre inútil, seria uma mulher como a mãe, a Madame Kurzeniowski, ou a tia, a Madame Paradowski. Ou outra mulher qualquer! Mas, como expediente privado, dizia às mulheres, nas palavras da rani muçulmana de Palembang: «Porque é que aspiram à dominação durante o dia?… O vosso poder é o da noite, durante a qual, com um sussurro, destruirão impérios!»
A atracção principal da personalidade de Conrad era a firmeza com que mantinha ideias depois de contemplar um número suficiente de factos ou documentos. Tinha tido grande experiência com a vida de homens comuns; as suas leituras tinham sido muito heterogéneas e a sua memória era extraordinariamente retentiva. Extraordinariamente até para o autor, cuja memória é suficientemente retentiva e as leituras heterogéneas, embora incoerentes. No entanto, Conrad nunca teve a aparência de intelectual, ou mesmo de homem que lesse. Poderia ter sido outra coisa qualquer: podíamos tentar cinquenta hipóteses para adivinhar a sua ocupação, desde precisamente capitão de navios até financeiro, digamos, mas poeta ou até estudante nunca estariam entre elas e passaria despercebido em qualquer multidão. Era frequentemente tomado por conhecedor de cavalos. Apreciava isso.
A sua ambição era ser tomado por – ser mesmo! – um cavalheiro rural britânico do tempo de Lorde Palmerston. Podia haver ambições piores. Para perceber como é que um polaco, nascido na província de Kiev, infinitamente afastada até do mar, pode ter desejado ser isso – e possa tê-lo desejado com paixão – o leitor deve ter em atenção duas, senão três, coisas: uma delas sendo uma imagem vívida na cabeça do escritor. No último século, se fossemos até à doca de Tilbury veríamos famílias de judeus polacos a desembarcar. Assim que desembarcavam, prostravam-se e beijavam o solo da terra da Liberdade. Para Conrad havia outra vertente. Enquanto criança, viveu numa casa grande na Polónia: uma casa grande com largas avenidas e muitas luzes à noite. Uma noite as luzes apagaram-se e as avenidas ficaram desertas; um trenó sem sinetas apareceu no pórtico. Uma figura, encapotada e agasalhada até à aba do chapéu, subiu os degraus e enclausurou-se durante muito tempo com o patriarca da casa. Depois foi-se embora pela neve. Conrad dizia que podia imaginar ter ouvido a voz de l’or de la perfide Albionª, chocalhando em sacos grandes à medida que o trenó se afastava. Pois este era o emissário de Lorde Palmerston, semeando ouro por toda a Polónia para que o espírito revolucionário polaco pudesse manter-se vivo e a Rússia embaraçada com as suas ingerências em Pera ou no Afeganistão.
Porque essa era a Inglaterra da visão inicial de Conrad: uma potência imensa representando liberdade e hospitalidade para os refugiados; vigilante sobre uma Pax Britannica que envolvia o mundo. Com uma marinha todo-poderosa tinha uma bolsa todo-poderosa. Era estável, razoável, disciplinada, tinha as hierarquias devidamente ordenadas, as classes definidas, os Serviços capazes e dotados de uma tradição adequada. E disposta a enfrentar a Rússia com armada ou bolsa quando e onde se encontrassem. A primeira canção de music-hall que Conrad ouviu foi:
“Nós não queremos lutar, mas caramba se lutarmos,
Temos os barcos, temos os homens, também temos o dinheiro.
Já enfrentámos o urso antes e voltaremos a fazê-lo,
Os russos não ficarão com Constantinopla…*”
Um polaco do século passado – e, mais do que tudo o resto, Conrad era um polaco do século passado – não podia pedir nada melhor.
E, mais do que tudo o resto, como o autor já demonstrou algures, Conrad era um político. Adorava contemplar a humanidade a puxar das meadas emaranhadas dos partidos e das coligações. Até ao momento em que uma facção cedia inesperadamente, uma posição era clarificada, um ministério era solidamente formado, uma dinastia emergia. Ele era, digamos, um estudante da política, sem prescrições, sem dogmas e, enquanto papista, com uma descrença profunda na perfeição das instituições humanas. O autor nunca viu Conrad ler nenhum livro de memórias à excepção dos de Maxime Ducamp e a correspondência de Flaubert; esses lemos juntos, diariamente, ao longo de vários anos. Mas algures no passado, Conrad tinha lido todos os volumes possíveis e imagináveis de memórias de políticos: Madame de Campan, o Duque d’Audiffret Pasquier, Benjamin Constant, Karoline Bauer, Sir Horace Rumbold, Napoleão o Grande, Napoleão III, Benjamin Franklin, Assheton Smith, Pitt, Chatham, Palmerston, Parnell, a falecida Rainha Vitória, Dilke, Morley… Não havia entre todas estas uma memória que lhe tivesse escapado ou de que se tivesse esquecido – até a O Príncipe e às cartas de Thomas Cromwell. Podia apresentar repentinamente um incidente da vida de Lorde Shaftesbury e moldá-lo para o Nostromo: que era a história política de uma República Sul-Americana inventada. Este era um dos segredos da sua grandiosidade.
Mas não tinha certamente nenhuma prescrição. As revoluções eram para ele sempre anátema uma vez que, como estava acostumado a declarar, no final todas as revoluções foram sempre, devem ser sempre, nada mais do que intrigas palacianas: intrigas ou por poder dentro de, ou para ocupação de, um palácio. O bar dos jornalistas no palácio do Luxemburgo, onde se senta agora o senado da Terceira República, foi outrora o quarto de dormir de Maria de Médicis. Isto não significa que Conrad desejasse activamente a restauração dos Bourbon: teria preferido que os jornalistas permanecessem onde estavam ao invés de ter qualquer revolução. Todas as revoluções são uma interrupção do processo de pensamento e da criação de uma Nova Forma… Para o romance.
De facto, quase que a única revolução que ele contemplava com algum entusiasmo era aquela onde um aventureiro bem-sucedido tomava as rédeas do poder. Em qualquer lado! Um rei Tomás! Não se dava o caso de as suas posições serem napoleónicas. O seu governante moderno favorito era Luís Napoleão, sendo Napoleão I demasiado grande, retórico e portentoso para qualquer intimidade. Durante muitos anos planeámos, e até escrevemos uma cena para um romance histórico que abordava figuras do Primeiro Império. Mas o Primeiro Império tinha desaparecido; o tema eram as tentativas feitas para salvar Ney da execução: o capítulo mostrava Luís XVIII como figura desorientada, forçado a dormir e a receber requerentes entre duas portas num corredor, o Protocolo fornecendo divisões sumptuosas a inúmeros nobres da França, lacaios e parasitas, mas nenhuma para o ungido do Senhor, cujo lenço estava sempre meio pendurado do bolso da sua anca. Era assim que nós – ou antes, Conrad, porque o autor nunca manteve posições políticas com qualquer robustez – víamos a restauração da Legitimidade. Apesar disso ele era atreito a atirar chávenas de chá para a lareira se zombassem da doutrina do direito divino dos reis.
Não, em geral a sua personagem política favorita era Luís Napoleão enquanto Aventureiro e até Napoleão III, Imperador dos franceses, lhe despertava alguma admiração. Apreciava mobília dourada do Terceiro Império, todos os outros dourados, revistas, uniformes, la Montijo, espelhos, financeiros fraudulentos, o Duque de Morny, o aventureiro mexicano. Apreciava o soberano cínico enlutado rodeado pela multidão de aventureiros, escrocs, rastaqouères e prostitutas em lugares de relevo que arruinaram o império. Admirava Napoleão III pelo seu sonho de uma União Latina, que Conrad achava exequível e desejável. Provavelmente era essa a sua ideia de humanidade, um reino em que o sonhador solitário, cínico e não irrazoável é derrubado pela sua contraparte feminina, pelos seus amigos, criados, séquito e família. Via o mesmo microcosmo na falência e ruína de um perfumista da corte – ou do capitão de um navio mercante. Prezava a fidelidade, especialmente para com aventureiros, acima de todas as virtudes humanas e via pouco dela neste mundo.
A sua anedota política favorita, aquela que repetia mais vezes, era a do Maire do XIII Arrondissement que enviou um telegrama a Morny, na altura ministro do seu meio-irmão e a banhos nas termas de Spa, dizendo que a rue de la Glacière estava toda em estado de insurreição. Acabava com: «Que faire?» e Morny respondeu… Mas estamos a escrever para Anglo-Saxões. Esta anedota pouco moralista era a favorita de Conrad mas não deve ser tomada como sugestão de que a cabeça de Conrad fosse amoral. Mostrava apenas o seu desdém pela forma como as questões humanas são geridas. Era como se ele dissesse: «Os políticos são todos tão tolos que mais vale gerir os assuntos estatais mais importantes no espírito de Morny. Apenas encontrarás Maires do XIII Arrondissement para cumprir as tuas ordens.»
Desejava um mundo estável onde pudéssemos pensar e desenvolver a Nova Forma. E porque em nenhuma fase da história da humanidade parece ter havido uma parte do mundo mais estável do que a Inglaterra sob as classes dirigentes do período de Lorde Palmerston, desejava ser o tipo de membro das classes dirigentes da Inglaterra nos tempos de Lorde Palmerston. Viveu assim e assim morreu. Estamos tão longe desses tempos: parece tão pouco provável que alguém vá às lágrimas se dissermos que ele poderia ter tido um ideal mais vil.
Chegamos assim ao Capitão Marryat. Seria ir longe demais dizer que Marryat teve alguma influência em Conrad enquanto escritor – apesar de Conrad ser da opinião de que Marryat tinha influenciado profundamente a sua escrita – mas o efeito de Marryat em Conrad enquanto filósofo tel quel e cavalheiro inglês não pode deixar de ser notado. De facto, durante o nosso último encontro, o autor relembrou a Conrad que praticamente a primeira opinião literária que tinha alguma vez pronunciado na Pent foi em elogio de Marryat. Conrad replicou que mantinha a mesma opinião: Marryat era, a seguir a Shakespeare, o maior romancista a delinear carácter que a Inglaterra já produziu. A opinião deve ser confinada àquilo que abrange e estritamente a isso. Conrad não estava a dizer que Marryat era, digamos, um poeta quase tão bom quanto Shakespeare; estava a dizer que Marryat analisava o carácter inglês com precisão e descrevia-o sem exageros, sendo que todos os romancistas ingleses obtêm os seus resultados através do uso menor ou maior da caricatura.
Os livros do autor de Midshipman Easy [O Cadete Easy] estão tão relegados ao esquecimento, sendo considerados livros para rapazes, que a apreciação pode parecer estranha. No entanto, pode ficar à consideração séria do leitor como a opinião ponderada de um crítico nada vil. Aquilo que estamos a fazer neste momento é a examinar as consequências de Marryat no carácter e na mentalidade de Conrad.
Essa influência era, no mínimo, profunda e durou uma vida, como a melodia de uma canção. Durante todos os anos em que colaborámos foi sempre como se Conrad dissesse: «Oh, mas aguarde até eu chegar ao meu romance napoleónico, com as fragatas no Mediterrâneo.» Esse era o período de ouro para aqueles ingleses filados pelo mar. E durante esses anos planeámos de forma algo elaborada uma colaboração passada entre o período napoleónico tardio e os dias da Restauração, as personagens centrais sendo Ney e um milor inglês bilioso, mas o narrador seria um subtenente de fragata protegido do milor o qual, chegando do Mediterrâneo e do serviço corajoso nas fragatas, deveria introduzir – o toque Marryat!… Passámos uma grande quantidade de tempo com as memórias do período, o autor ocupando-se de Dundonald, milors ingleses e com o papel do czar na execução de Ney, Conrad obtendo as suas informações sobre o período da Restauração de forma algo misteriosa para o autor, de tal modo Conrad parecia ter todas aquelas figuras na sua cabeça…
Discutimos esse romance até muito tarde na nossa associação. Numa ocasião, em Julho de 1916, Conrad disse mesmo ao autor: «Bem, poderás trazer algo de volta para o livro do Ney sobre fazer campanha em França,…» enquanto apertávamos as mãos… E eis que aquilo que dizimou tantas aldeias pequenas sob o nosso olhar dizimou também esse livro, o autor abandonando durante muitos anos qualquer ideia de escrever – perdendo, na realidade, toda a capacidade para escrever. Conrad continuou sozinho… Assim, no futuro próximo que foi Rover [O Nómada], têm o capitão de fragata vigilante e capaz!… E, à altura da sua morte, Conrad estava ocupado – com Napoleão em Elba e o serviço das fragatas no Mediterrâneo, procurando viver de novo o encanto que o romancista-marítimo inglês tinha lançado sobre a sua juventude na Polónia. Tão persistentes que são os encantos da nossa juventude!
Sim! Pelo menos essa influência foi profunda. Olhava para o mundo das questões humanas com os olhos de Jack Easy e enfrentava as dificuldades com a calma de Percival Keene. O leitor não deve sorrir com esta afirmação. A tradição do serviço de fragatas de Dundonald e dos restantes não era vil: a sua influência no carácter britânico foi extensa, importantíssima. E os feitos e a tradição da Inglaterra ao longo do último século não podem ser ignorados por quem se interesse pelos feitos e pela tradição da humanidade.
O autor já falou muito, noutros locais, acerca da influência de Marryat no autor e em Conrad para voltar pitorescamente ao assunto outra vez. Mas há aqueles que nunca leram nem Marryat nem o autor. Sendo assim, Marryat preocupava-se especialmente com as batalhas de fragatas do período napoleónico. As batalhas de fragatas do período napoleónico, comparadas com as linhas de batalha pelas quais se erguem o nome de Nelson e dos seus capitães, eram como algo obscuro, anónimo, desesperado e muito corajoso. Pois pelos milhares que conhecerão o nome de Nelson, de Howe ou de St. Vincent, dificilmente haverá um que tenha ouvido falar de Cochrane. Ainda assim, este serviço mínimo não cessava, conduzido sob condições climatéricas e de trabalho costeiro desesperantes, as fragatas sendo os olhos da frota apenas ocasionalmente, das grandes frotas com os grandes navios de linha a deslizarem majestosamente de oceano em oceano, à volta de meio mundo e depois regressando para combater, aqui e ali, numa Trafalgar ou numa Aboukir. Mas as fragatas, no Mediterrâneo, andavam nisto todos os dias.
Este tipo de serviço, sem conforto, sem publicidade, quase sem a glória do uniforme real, pois os oficiais vestiam-se como limpa-chaminés, permaneciam aspirantes até aos quarenta e ensebados até ao pescoço – era o sentido da Inglaterra para Conrad, como era para o autor durante a sua juventude. Era visível o sacrifício pessoal, a paciência, a fidelidade. E se Conrad escreveu, anos mais tarde, que a fidelidade era a palavra chave da sua «mensagem», era nesta fidelidade que ele pensava. De uma fidelidade que não era a um reino de onde estivessem há muito ausentes e a um semblante real que nunca brilhasse sobre eles, mas de fidelidade a uma ideia, a um serviço.
A ideia era esta: em primeiro lugar vinha o mar, não como um elemento implacável, mas como um instrumento através do qual as fragatas batalhavam contra a ineficiência, os costumes estranhos, a ingestão de sapos e os sapatos de madeira. No mar havia apenas os ingleses – e os franceses; os ingleses enquanto representantes daquele Todo Poderoso que mantém o mar na cova da Sua mão; os ingleses louros, robustos, habilidosos, vigilantes, cada um com mais de metro e oitenta, joviais, exactamente à imagem do seu Criador, cordiais. Os franceses os subordinados, representantes de Satã, eternamente afastados do mar, obrigados a esconder-se atrás dos molhes de Toulon ou de Cherbourg, eternamente a rastejarem como percevejos de fissuras nas paredes… Um inglês valia por um, três, dezassete, vinte e sete franceses… Era isto o mar, então, e era este o seu trabalho, a sua função.
Presumivelmente, as fragatas fizeram o seu trabalho apesar de, se lermos manuais franceses, dificilmente podermos imaginar que tenha sido assim, tal como quando lemos os americanos não ouvimos muito sobre Shannon e Chesapeake. De acordo com os franceses foi l’or de la perfide Albion que resolveu a questão. Dessa forma, Conrad ficava a ganhar de duas maneiras, uma vez que apreciava uma nação que tivesse tanto o seu serviço marítimo quanto o seu ouro. O ouro também é esterlino, incorruptível e tem as suas fidelidades. Entretanto, tinha aparecido um outro serviço com uma tradição quase idêntica – o da marinha mercante britânica, de barcos não tão grandes que fossem impermeáveis ao tempo, sobrevivendo de acordo com os caprichos e brutalidades dos ventos, com as cativantes e perpétuas partidas e atracagens à volta de promontórios perigosos. Hoje em dia encontram-se poucas diferenças entre os costeiros de qualquer nação, mas nos anos setenta e oitenta do século passado, Conrad, em resultado da sua experiência, encontrou nesse serviço, velado mas quase mais paciente e cativante, a tradição das fragatas de Marryat. Era fidelidade a um ideal: o ideal da marinha mercante britânica; era, ainda para mais, uma tradição a trabalhar eficientemente. Pois nesse serviço, todos contribuindo para o registo dos barcos possuídos pela Grã-Bretanha, mesmo se navegassem com bandeira do Sião, todos contribuindo para a longa história daquilo que é exemplar, havia centenas de latinos, lascaris, suecos, dinamarqueses, finlandeses, negros, americanos, rapazes cru… E um polaco.
Conrad, assim, na sua juventude nebulosa que parece ter sido passada em casas grandes ou nos pátios de prisão da criança exilada, e maioritariamente à noite ou ao anoitecer, leu com compenetração Marryat e Fenimore Cooper, plantando portanto as sementes da sua devoção por Inglaterra. Tinha a devoção pela sua arte e pelo seu segundo país. No final, a devoção pelo segundo país superou a devoção pela arte. A única ocasião em que o autor questionou as acções de Conrad – e é verdade que esta foi a única ocasião em que uma acção de Conrad, de que o autor tenha conhecimento, foi alguma vez sequer questionável! – foi quando aquele escritor aceitou ser membro da Academia Britânica. Não devia ter feito isso, nem como escritor nem como artista. A entidade estava sem dignidade, comprometida com os rumos da propaganda e, por hábito, a ser destrutiva para com a arte na qual Conrad fez nome, à qual devia fidelidade.
Assim sendo, numa dada ocasião, o autor protestou contra aquela acção questionável. Foi durante tempos tristes para a nação, num quarto sombrio num edifício dos arquitectonicamente mais lúgubres que se podem encontrar perto do Marble Arch, em Londres. Conrad estava deprimido: não havia ninguém que não estivesse deprimido naquela altura. O autor, sendo a ocasião uma daquelas para esclarecer tudo o que podia ser esclarecido, perguntou porque é que Conrad tinha, como é que Conrad podia ter, renegado assim aos deuses da sua virilidade. O título de cavaleiro, sim! Uma Ordem de qualquer espécie, sim! Uma C.B.; uma O.B.E.ª!…Nem tinha sido há dez anos, ou pouco mais, que, conversando sobre as probabilidades de uma condecoração do género, Conrad afirmara que se lhe oferecessem as insígnias deles as usaria no traseiro das calças – uma tirada que introduziu imediatamente em Os Herdeiros.
O leitor deve entender que este assunto é algo que separa desde sempre – entre trigo e joio – o mundo das artes. Há alguns artistas que aceitam honras académicas; para a maioria daqueles que são realmente artistas a ideia é aberrante e aqueles que aceitam essas honras traem os seus irmãos. Conrad tinha pertencido entusiasticamente a esta vasta maioria. Havia o Flaubert, que tinha recusado, e o Zola, que toda a vida procurara distinção académica. Para Conrad, não costumava haver dúvidas sobre quem seguir. Desta vez seguira Zola.
Conrad respondeu com brandura. Nada podia ser menos característico de Conrad. Ambos sendo partidários do duelo, sempre convivemos sob uma espécie de padrão de formalidade. Exceptuando nos caminhos de ferro belgas, quando Conrad se recusava com furor a mostrar o bilhete aos revisores porque ele era um inglês e eles um tipo de latinos, o autor não se lembra de outra situação em que tenha protestado com o autor de O Coração das Trevas… Mas Conrad respondeu com brandura deprimida e grave… Sim, ter aceite aquela honra pode denotar a negação dos deuses da sua juventude. Isso era algo para considerar com desânimo. Por outro lado, a Inglaterra tinha-lhe oferecido hospitalidade; tinha-lhe sido concedida fama em Inglaterra e a oportunidade de viver no Kent, onde as linhas dos campos embocam serenamente umas nas outras. A Inglaterra estava desejosa de fundar uma instituição que pudesse, como parte das suas funções, prestar algum tipo de honra ao ofício da autoria. A companhia na qual se encontrava, embora admirável, não era exactamente aquela por que se esperara. Mas, se era uma questão de pôr os seus princípios pessoais contra qualquer honra que pudesse prestar ao governo inglês, os seus princípios deviam ir borda fora.
Era um ponto de vista.
V
O mais inglês dos ingleses, Conrad também era o francês mais sulista dos franceses sulistas. Nasceu em Beaucaire, junto ao Ródano; leu Marryat à sombra do castelo do bom rei René, Daudet na Cannebière de Marselha, Gautier entre os tufos de lavanda e rosmaninho das pequenas florestas entre Marselha e Toulon, Maupassant nos torpedeiros em que serviu e Flaubert no navio-almirante francês, o Ville d’Ompteda. Pintou a manta no porto de Marselha com os Sabran-Penthievresª e outros macmahonistas, fez intriga para Napoleão III, alugou, uma vez que não havia mais nada para alugar, uma diligência de parelhas por pintar de um depósito de construção de carruagens e conduziu, soterrado por actrizes e pelo coro da ópera, até às corridas. Assim tornou a marinha francesa intolerável para o manter. No entanto, esse também é o espírito da marinha britânica. O autor nunca se cansa de nomear os termos da ofensa que fez com que o seu tio-avô, Tristram Madox, fosse expulso: que, enquanto embriagado, nadou do navio-almirante até terra, sem licença, e descabidamente atacou o Sr. Peter Parker de Valeta, tabaqueiro. A primeira ofensa é mais francesa, a outra mais inglesa…
No entanto, tal como acima, Conrad contou uma e outra vez a sua façanha em Marselha. Não há dúvida de que, com a queda de Macmahon e com o fim de qualquer esperança para os bonapartistas, a possibilidade de uma carreira na marinha francesa era tão diminuta para Conrad ao ponto de deixar a esse serviço muito poucos atractivos. As influências e ligações de Conrad em França eram todas ao Terceiro Império. Contava o caso da carruagem sem pintura com grande energia e paixão e depois, baixando as mãos fingindo senilidade, exclamava: «E pronto, tel que vous me voyez… Sou agora um vulcão extinto…»
No entanto, não era isso. Era meramente o caso de os poucos recursos terem reduzido as duas parelhas à égua velha ou a outro remplaçant. Conduzíamos até ao Hythe ou alugávamos um carro que se avariava oito vezes em trinta quilómetros e atravessávamos as colinas rasas pelo vale de Elham – no topo do qual morreu – até à Cantuária. E prontamente Conrad era o marinheiro em terra. Tinha de encontrar uma taberna e tinha de beber um copo, o autor, com a beatitude de um cavalheiro rural inglês no seu condado, esperando na rua. Pois não devemos beber um copo na taberna da cidade do nosso próprio condado. Uma refeição na casa de pasto dos agricultores com cinco canecas de cerveja; chá na sala de fumo com whiskies servidos no tabuleiro! Mas na taberna, nunca! O argumento é requintado. Mas Conrad, apesar de em casa ser o cavalheiro rural inglês que, dada a possibilidade, teria criado vacas de chifre curto e usado perneiras, atirava estas considerações borda fora quando na sua disposição de marujo em terra. Um copo na taberna estava garantido pelos Regulamentos do Rei. Podiam não ter sede: tinha de ser.
A biografia de Conrad, como foi narrada, naqueles tempos, ao, e na presença do autor, bem que pode ser inserida aqui… Chegámos, pelo menos na cabeça do autor, ao momento em que abandonámos, abertamente de vez, qualquer esperança de levar Romance até ao fim e começámos a colaborar em Os Herdeiros. Por esta altura o autor já tinha ouvido o suficiente da autobiografia de Conrad, repetida vezes bastantes, para ter uma ideia aproximada do seu passado – de qualquer maneira, uma ideia daquilo que Conrad desejava passar. Porque, como qualquer contador de histórias inspirado, Conrad alterava as suas histórias subtilmente para apelar à empatia do seu ouvinte. Fazia-o não tanto alterando os factos como com gestos da mão, quedas no tom da voz, um baixar de pálpebras e deixando cair o seu monóculo – e, obviamente, com algumas alterações aos factos. Assim, a história mais tarde utilizada em Smile of Fortune [Um Sorriso da Sorte], contada apenas ao autor era uma coisa e contada à sua tia vivaz e muito inteligente, Madame Paradowski, era uma coisa muito diferente. Se contada só ao autor seria mais enxuta, menos acentuada, mais próxima de um tema para tratamento profissional; quando contada à senhora francesa – que também era romancista – era muito mais intensa, muito mais acentuada por gestos e risos – muito mais pimenté; na realidade, a história da bonne fortune de um marinheiro.
Foi a única a história de uma bonne fortune que o autor ouviu contada por Conrad. E bem se pode anotar aqui que em toda a nossa intimidade, que durou muitos anos, nenhum de nós contou alguma vez aquilo a que se chama uma história de sala de fumo. Nem alguma vez discutimos as relações entre sexos.
Assim, ao virar do século – pois Os Herdeiros deve ter sido publicado por volta de 1901 e, tendo sido escrito muito rapidamente, deve ter sido começado em 1900 – a história de Conrad surgia ao autor de forma muito parecida com o que se segue. Ele nasceu – não fisicamente em Beaucaire, naturalmente – mas numa parte da Polónia que ficava na província de Kiev – na Ucrânia, nas Terras Pretas, onde o solo é muito fértil. Nasceu por volta de 1858. Em todo o caso, tinha idade suficiente para se lembrar dos efeitos da Revolução Polaca do princípio dos anos sessenta – 1862, digamos. A mais antiga – a primeira – memória da sua vida foi a de estar num pátio de prisão na estrada para o campo de exílio russo de Wologda. «Os cossacos da escolta», são as palavras exactas de Conrad repetidas uma e outra vez, «cavalgavam lentamente para cima e para baixo sob os flocos de neve que caíam sobre mulheres em peles e mulheres em farrapos. Os russos tinham posto os homens em barracas onde as janelas tinham sido ensebadas. Alimentavam-nos com arenques fumados e não lhes davam água para beber. O meu pai estava entre eles.»
(Naturalmente, a insinuação é que o pai de Conrad morreu de sede atrás daquelas janelas que estavam ensebadas para que os homens não olhassem para a rua e vissem as suas mulheres. Na realidade, é óbvio que o pai de Conrad não morreu nessas circunstâncias mas só muito mais tarde é que o autor se apercebeu do equívoco… Esta é, no entanto, a história exacta de uma relação.)
Conrad permaneceu com a mãe no exílio até aos nove ou dez anos, até que, estando a mãe à beira de uma morte repentina devido à tuberculose, foram autorizados a regressar à Polónia. A mãe de Conrad era uma mulher muito bonita de físico e de carácter. O seu rosto era oval, o cabelo preto entrançado à volta dele, os olhos resolutos e o temperamento discreto mas espirituoso. O pai era menos convincente, a força motora de uma revolução falhada, um facto que Conrad desprezava. O pai não era tão moreno como a mãe; com uma barba desalinhada, as maçãs do rosto elevadas, era o proprietário, não profissionalmente mas enquanto revolucionário, de um jornal famoso no qual escrevia muito. Escrevia constantemente: o seu estilo não era muito distinto.
Do pai, Conrad falava sempre de forma depreciativa. Isto era, parcialmente, urbanidade. Quem quer que fossemos, os seus interlocutores, tudo o que nos era relativo – o nosso pai e todos os nossos antepassados – tinham de ser melhores do que os dele. Eram os seus pobres livrinhos, a pobre inteligenciazinha e as pobres façanhazitas dispostas contra todos os nossos esplendores. Em parte, também lhe causava dor que o pai tivesse sido um revolucionário – e, para mais, um revolucionário falhado – como se estivesse ligado, mesmo antes de nascer, a algo que não era exemplar! Pela mãe, por outro lado, tinha aquela veneração apaixonada que os habitantes dos países latinos e eslavos ocidentais sentem pelas suas mães e que parece tão «forasteira» ao anglo-saxão. Quando falava da mãe como revolucionária, estranha mas compreensivelmente, enchia-se de entusiasmo. Para ele, o espírito nacionalista polaco tinha sido mantido vivo por mulheres como a mãe: os homens eram inúteis. Mais uma vez: não eram exemplares. Isto não era difícil de perceber. Os homens estavam impedidos de viver as suas próprias vidas. A única carreira para a qual os russos lhes permitiam estudar era a da lei. Portanto eram todos ou advogados ou tagarelas – ou ambos, e sem qualquer treino prático. Isto durante gerações e gerações…
Quanto à classe – os Kurzeniowskis eram cavalheiros rurais, exactamente como uma família rural inglesa, com terras onde viviam e que possuíam desde a Idade Média, sem títulos mas aristocratas até ao tutano; aquilo a que se chama, em Inglaterra, «gente de bem», uma expressão intraduzível para outra língua e incompreensível até para os americanos. Isto fazia com que Conrad se sentisse em casa no Kent: disse-o muitas vezes. Lá o espírito feudal sobreviveu nas regiões dos grandes latifundiários.
Conrad tinha um tio – Paradowski – que era um grande Pã, guardião de metade das crianças nobres daquela província. Tinha um rosto alongado, como que quadrado, um nariz comprido, mãos meditativas que pausavam constantemente nalgum tipo de acção e um longo cabelo acastanhado que lhe caía de forma algo germânica sobre o colarinho de um casaco de veludo. Era sua a grande casa de campo a que o emissário de Palmerston tinha ido. (O conde Potocki, amigo do autor, diz que o nome deste tio devia ser Bribrowski. O nome Paradowski mantém-se, no entanto, muito seguro na cabeça do autor. Conrad tinha um orgulho e um carinho desmedidos pelo seu tio e certamente quatro quintos das suas conversas sobre os tempos na Polónia eram relacionados com este parente: havia, por exemplo, os dragões Paradowski, um regimento russo famoso, designado em nome dele ou dos seus antepassados. Da mesma forma, nos primórdios, Conrad escrevia e pronunciava sempre o seu nome como Kurzeniowski; a transliteração correcta parece ser «Korzeniowski». Não parece ter grande importância.)
Este tio dava-se bem com os russos. Antes da revolução falhada tinha sido um amigo próximo de um dos Grão-duques e tinha tido um papel na elaboração da constituição que o czar propusera conceder à Polónia. Não tinha tomado parte na revolução, não por os interesses da Polónia lhe serem indiferentes mas porque sabia que iria falhar e causar muito sofrimento e perseguições aos polacos russos. Além disso, trouxe consigo a revogação da constituição. Depois da revolução ocupou-se a tentar aliviar o sofrimento dos compatriotas; alimentou legiões de famintos desalojados; assegurou o retorno do património às crianças dos exilados. Entre estas últimas estava Conrad: o seu tio assegurou-lhe o retorno de metade da grande propriedade confiscada ao pai e arranjou-lhe uma permissão para residir na Polónia russa, na sua própria casa grande. (O emissário de Palmerston, a propósito, tinha sido mandado embora com uma pulga atrás da orelha.)
Ali, durante anos e anos, Conrad leu Marryat – e Fenimore Cooper. Era um dos pequenos prazeres inocentes de Conrad lembrar-se de que em Paris, depois de Waterloo, tal como registado nas Memórias, houve mais multidões a seguir Sir Walter Scott e Fenimore Cooper nas boulevards do que houve a seguir o rei da Prússia. Agradava-lhe encontrar um dos seus primeiros heróis assim abençoado pela Fama dos pulmões de bronze. A esta informação, o autor acrescentou que, nessa mesma Paris, dessa mesma altura, Assheton Smith, o milor de riqueza e bílis vastas era seguido, de acordo com os jornais, por multidões ainda maiores do que as que se agregavam ao czar da Rússia. Como resultado de uma certa urbanidade tácita, nunca tentámos decidir se era o rei da Prússia ou o czar da Rússia que tinha mais seguidores. Mas Assheton Smith era para ser a figura central do nosso romance sobre a execução de Ney – o milor bilioso a intervir quase com sucesso para salvar o beau sabreur. Isto não por sentir qualquer simpatia para com Ney mas porque queria pôr areia na engrenagem de Wellington e Blücher e na de todos os companheiros combatentes que começavam a achar-se demasiado importantes, apesar de serem apenas filhos mais novos. No entanto, avançou demais nos afectos da Egéria do czar, por isso Ney foi fuzilado por ordem do czar, mesmo à frente da Closerie des Lilas, num local ocupado agora pela estação de comboios de Seaux… para provocar Assheton Smith.
O autor nunca percebeu porque era sempre noite na Polónia; no entanto, assim se conserva para ele: uma casa branca comprida, no escuro, com faias prateadas numa avenida ou, fantasmagoricamente, em grupos. Dentro de portas estava Conrad, mesmo até à adolescência, a ler para sempre à luz das velas numa biblioteca imensa e majestosa, com bustos em plintos brancos e grupos alternados de estatuária em bronze. O tio estaria num escritório meio subterrâneo na outra ponta da casa ampla – escrevendo as suas memórias. Quando é que estes dois se encontravam o autor nunca soube; sobre refeições ou mesmo sobre dormidas não ouviu nada: era uma leitura perpétua. Quanto às memórias do tio… Passados anos, não há muito tempo, o autor encontrou Conrad num estado de grande agitação. «Meu caro companheiro, tem de me acompanhar a Boulogne! Terá de enfrentar o padrinho, naturalmente. É assim que se faz num duelo polaco!» Faz parte daquilo que confere indefinição a este relato que Conrad tenha sempre creditado ao autor uma presciência quase sobrenatural acerca do mais remoto ou mais imediato passado de Conrad. Dizia: «Lembra-se de que quando eu estava no Flower of Surabaya, o velho Corvin, o comissário de carga, tinha o conjunto de barbearia que eu tinha perdido no Duke of Sutherland…», nomeando dois navios e um comissário de carga sobre quem o autor nunca tinha ouvido falar… Portanto, nessa ocasião o autor certamente aceitou ir até Boulogne e imaginou um adversário enorme, de bigode preto, num barrete de peles, peliça com alamares, botas altas e um sabre de cavalaria cuja lâmina desembainhada acariciava com a mão esquerda… E foi só ao fim de alguns dias, durante os quais preparávamos a viagem, que a razão para a nossa viagem se tornou clara para o autor. Conrad estava demasiado angustiado para falar sobre isso.
Ao que parecia, o tio Paradowski, quase vice-rei da Polónia russa e guardião de metade dos filhos e filhas da nobreza polaca na sua província, tinha tido oportunidades até ali inimagináveis para saber de todos os escândalos matrimoniais e familiares dos vizinhos. Tinha apontado isso tudo no seu diário – e esse diário acabava de ser publicado. Era motivo de grande consternação na Polónia e como Conrad era o herdeiro legal do Sr. Paradowski, a responsabilidade da publicação era considerada como sendo dele. Por essa razão, o filho de um dos casais mais horrivelmente caluniado tinha desafiado Conrad e estava a caminho de Boulogne. Conrad estava aterrado ao ponto de enlouquecer: e justificava-se. O pobre do homem suicidou-se com um tiro, em desespero por causa das revelações, na carruagem do comboio, durante a viagem. Logo, nunca lutámos…
Conrad emerge assim das sombras charmosas da Polónia fazendo a Grand Tour com um jovem tutor vivaço. Pela primeira vez, em Veneza, de uma janela, viu um navio na Giudecca. Uma escuna britânica.
Sobre a biografia dos anos seguintes o autor está um pouco confuso. Talvez fosse desejo de Conrad lançar alguma confusão sobre uma parte da vida que foi para ele um período de indecisões. Uma vez dizia que tinha decidido ir para o mar anos antes, ao ler Marryat pela primeira vez; noutra, que um assomo de desejo lhe apareceu ao ver aquela escuna britânica com as linhas comoventes do casco; outra vez que tinha voltado à Polónia à pressa para contar a decisão ao tio; de outra vez que tinha concluído a Grand Tour de forma regular mas discutindo com o tutor e, por fim, dando muito gradualmente a notícia ao tio. O tio pensou que era louco, não precisam haver dúvidas sobre isso: nenhum polaco tinha ido para o mar; todos os polacos tinham sido sempre advogados: Conrad não deve ir para o mar mas deve estudar direito. Na universidade de – como é que era? – Lemberg.
De qualquer maneira, Conrad foi para Marselha e entrou para a marinha francesa. Por influência do tio – os polacos tiveram sempre grande influência nas Chancelleries e nos ministérios da Europa – foi-lhe concedida uma comissão nesse serviço. Nele permaneceu tempo indefinido, saindo com a patente – era muito específico quanto a isso – de Lieutenant de Torpilleurs de la Marine Militaire Française. Durante esse período, no navio-almirante francês Ville d’Ompteda, tinha testemunhado o bombardeamento de uma cidade sul-americana. A cidade retorna ao autor como sendo Caracas; mas aparentemente Caracas é no interior, por isso o navio-almirante dificilmente a terá bombardeado. Talvez Conrad tenha ido com uma expedição até essa capital no interior. Dessa maneira viu a paisagem do caminho até à mina de prata de Nostromo.
A este seguiu-se o período de marujice em terra, em Marselha, com a aristocracia bonapartista. Depois do episódio com a carruagem por pintar carregada de actrizes, Conrad enviou um telegrama ao tio para lhe vir pagar a dívida e embarcou na aventura carlista. Isto é contado no episódio de Tremolino, de Mirror of the Sea, muito como Conrad costumava contar em viva voz. Quando estava a escrever este episódio a partir do ditado de Conrad – e, de facto, quando escrevia outras memórias pessoais de ditados que Conrad fazia quando estava entrevado por causa da gota ou demasiado deprimido para escrever – o autor reparou que Conrad sensatamente alterava aspectos e factos das histórias que contava. Os esquemas mantinham-se muito parecidos, os detalhes diferiam.
Como contado por Conrad – e o autor deve ter ouvido todas as histórias de Conrad cinco vezes, as favoritas muito mais vezes – a aventura carlista era a seguinte: à data da sua saída do serviço francês, a guerra carlista estava a ser travada desorganizadamente no norte de Espanha. (Os carlistas eram os apoiantes de D. Carlos, o pretendente legítimo ao trono espanhol.) A causa dos carlistas apelava satisfatoriamente a Conrad: era legitimista, era pitoresca e acarretava consigo pelo menos alguma eficiência. Oferecia uma hipótese de aventura. Então, na companhia de amigos com disposição similar, Conrad pôs-se a trabalhar para garantir espingardas ao exército do pretendente. Adquiriram um barco à vela pequeno e rápido – o Tremolino, um nome magnífico. E de todos os barcos em que Conrad navegou, este era o mais amado. No princípio da nossa amizade, o nome dele raramente abandonava a sua língua e, quando o mencionava, o seu rosto animava-se. Não, animava-se antes de ele dizer o nome, o sorriso aparecendo, antes do nome, nos seus lábios.
Naqueles tempos, o autor nunca ouviu que tipo de embarcação era. Era esperado que o soubesse; Conrad dizia: «Sabe como o Tremolino costumava passar…» Assim, o autor imaginava-a como uma faluca, com velas altas, arqueadas, brancas contra as nuvens de tempestade e os penhascos cor de ferrugem. Era o barco magnífico – como Turguéniev era o génio russo magnífico.
A andar de um lado para o outro, Conrad relatava como passavam aquelas espingardas. O método era este: carregavam o Tremolino, em Marselha, com laranjas, ostensivamente destinado a Bordéus ou a qualquer porto no Canal. Assim, «se alguma canhoneira espanhola nos abordasse teríamos uma guia de carregamento absolutamente válida. No Canal encontraríamos uma escuna britânica e, atirando as laranjas borda fora, carregaríamos com espingardas…» Estas frases peculiares, com o seu uso ligeiramente anormal do condicional, Conrad nunca alterava… Teria começado a história, sem emoção, com as explicações históricas que achasse necessárias ao seu ouvinte. Depois chegava ao Tremolino e o seu rosto animava-se. Esta emoção durava-lhe um ou dois minutos. Aí, como se fosse o ângulo onde a Espanha volta costas à França no Mediterrâneo, como se o Tremolino tivesse chegado até aí e estivesse apenas navegando pela água azul com a sua carga de laranjas, tornava a voz seca ou para dizer: «O método era este…» ou: «O nosso modus operandi era o seguinte…» E então, depois de retomar o fôlego: «No Canal nós…» Passava depois a explicar as necessidades que tinham ao fazer essa atracagem. «Podia-se subornar qualquer guarda costa espanhol em terra com algumas pesetas ou com uma ou duas garrafas de rum…» mas os oficiais das canhoneiras que patrulhavam a costa eram incorruptíveis…
«Então, uma noite, o dono da estalagem não cumpriu o que tinha prometido às claras. Estava bêbado. De manhã vimos uma canhoneira espanhola a navegar para cima e para baixo na linha da baía estreita. A baía era um funil, assim… Enfiámos o Tremolino contra uma rocha, deitámos-lhe fogo. Nadámos até à costa e arranjámos roupas de camponês para disfarce e prosseguimos para Marselha da melhor maneira possível. Tesos. Sem um tusto».
Ao contar estas histórias, Conrad ocasionalmente duplicava o sentido das palavras, testando-lhes o efeito. Depois debatíamos: qual é a diferença prática e literária entre «Teso» e «Sem um tusto»? Desejamos transmitir o efeito, com a mais severa economia de palavras, de que o desaparecimento do Tremolino os tinha arruinado, permanentemente, durante anos… dizemos, então, tesos ou sem um tusto? Dizemos Sans le sou: isto é consideravelmente permanente. Un sans le sou é um tipo sem dinheiro no banco, não apenas temporariamente teso. Mas «sem um tusto» traz quase sempre consigo: «no bolso». Se dissermos «sem um tusto», essa sugerindo a outra: «Chegámos a Marselha sem um tusto no bolso.»… Bem, isso seria uma espécie de anedota: como se no final de uma viagem continental tivéssemos regressado à Cidade apenas com o suficiente para pagar uma corrida de táxi até casa. Depois iríamos ao banco. Por isso era melhor que fosse «tesos». Isso indica mais um estado do que uma condição temporária… Ou seria melhor gastar mais uma palavra ou duas na exposição? Isso tornaria o parágrafo algo longo e tornaria romba a agudeza da história…
Era com estas discussões intermináveis sobre a incidência exacta de palavras na linguagem oral comum – não na linguagem literária – que as histórias de Conrad chegavam ao autor. Às vezes a história parava e a discussão durava o dia todo; às vezes a discussão era arquivada por um ou dois dias. Houve palavras que discutimos durante anos. Um dos problemas era, como já foi sugerido: como é que traduzíamos bleu-foncé aplicado a um campo de couves-do-gado: do tipo da Jersey grande, cujos talos envernizados dão bengalas? Ou bleu-du-roi? E, ainda para mais, quais são os plurais desses adjectivos em francês – como uma questão lateral… O problema foi discutido, a espaços, por um período de dez anos – o problema do campo de couves, não, obviamente, o dos plurais… Agora nunca chegaremos a uma conclusão…
Então, Conrad voltou a mandar um telegrama ao tio para vir e pagar as dívidas… O autor tinha um tio-avô cuja única ocupação na vida era apanhar um táxi. Um dia, este cavalheiro, passando por Exeter Hall, encontrou um leão. Nos anos sessenta, Exeter Hall tinha uma colecção de animais. Quando lhe era perguntado: «O que é que fez?», ele respondia com um tom leve de repugnância perante a falta de savoir faire do interrogador: «O que fiz? Ora, apanhei um táxi!»… Da mesma forma, Conrad costumava mandar telegramas ao tio para pagar as suas dívidas e para vir a Marselha fazê-lo!
Embarcou num vapor da Messageries francesa como simples marinheiro e, como foi dito, fez uma viagem a Constantinopla, vendo tendas nos montes sobre a cidade europeia. Regressou a Marselha. Talvez o tio ainda não tivesse chegado para lhe pagar as dívidas ou só o tenha feito mesmo a seguir. Ou talvez tenha vindo três vezes a Marselha. Conrad costumava deixar saber-se que, como era do conhecimento do autor, ele tinha esbanjado três fortunas na vida. De qualquer maneira, a imagem que o autor reteve é a de que, enquanto Conrad zarpava, um grumete num brigue britânico com destino a Lowestoft, Pã Paradowski permanecia na ponta da Cannebière, como um grande leão terrestre, a lamentar à beira da água o seu amado, o patinho feio do sobrinho que se havia de tornar uma foca… Um leão marinho…
ª A referência parece ser a Ernest Bramah (1868-1942), autor conhecido pela série de livros com a personagem Kai Lung; a implicação parece ser que Pinker, o agente literário de Conrad, tinha um estilo oriental, como o tom caricatural adoptado por Bramah nos seus livros sobre o Oriente. [N. do T.]
ª «La perfide Albion» é uma expressão francesa de cariz pejorativo enquanto referência a Inglaterra. [N. do T.]
* Como ocorre no original:
We don’t want to fight but, by Jingo if we do,
We’ve got the ships, we’ve got the men, we’ve got the money too.
We’ve fought the bear before and so we will again,
The Russians shall not have Constantinople...
[N. do T.]
ª Respectivamente: Order of the Bath. Officer of the Most Excellent Order of the British Empire. [N. do T.]
ª O nome correcto da família Sabran é Sabran-Pontevès; um dos filhos bastardos de Luís XIV tinha o título de duque de Penthievre. [N. do T.]