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Longe daqui


Luísa Costa Gomes

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Longe daqui


Luísa Costa Gomes

Gombrowicz chegou a Buenos Aires para passar duas semanas, em 1939. Entretanto começou a guerra na Europa e acabou por ficar vinte e cinco anos. Trazia a aura da inovação e falava de um romance, publicado pouco antes, chamado Ferdydurke. A espaços se foi constituindo a tertúlia do café Rex, propriedade de um polaco imigrado. No primeiro andar jogava-se xadrez (que Gombrowicz jogava bem) e cá em baixo pontificava o “conde”, no meio dos exilados cubanos e outros adventícios latino-americanos. Gombrowicz dominava pela beleza, pelo charme e pelo enigma desse romance que “explodira” nas letras polacas e aí ficara, preso numa língua incompreensível. Surgiu a ideia de tradução: Gombrowicz estava nos primórdios do castelhano, a tertúlia não sabia uma palavra de polaco. O autor apresentava-se todas as tardes com umas quantas páginas do Ferdydurke, traduzido no que ele julgava ser castelhano, e em grande exaltação discutia-se o sentido daquilo tudo. Começaram por discutir a tradução do título: como traduzir Ferdydurke? Por vezes, Gombrowicz apaixonava-se por palavras que lhe soavam justas, embora não lhes conhecesse o significado e insistia em usá-las; outras apresentavam-se tão puídas pelo uso que era preciso inventar novas: “nonpodermiento”, por exemplo, para impotência. Os próprios latinos não se encontravam em situação melhor, divididos em variantes, debatendo se “Facha! Facha y facha!” seria castelhano de origem ou lunfardo…Tratava-se, como se depreende de tal empenho, de criar nada menos do que uma neo-língua argentina, fresca, irreconhecível para os argentinos, uma língua de imigrados e exilados. Quando se chegava a um impasse, Gombrowicz gostava de pedir a opinião aos empregados do café. Não devia ser opinião, devia ser confirmação. A tradução durava há quase um ano quando se dividiu em duas facções, uma delas liderada por Virgilio Piñera, escritor cubano que Gombrowicz acabou por nomear presidente do Comité de Tradução. Acabada a tarefa, a tradução foi editada pela Argos, onde a tertúlia foi recolher os exemplares; com eles se encaminharam para o Rex e Gombrowicz fez um discurso emocionado aos seus “cavalheiros e gaúchos”. A tradução castelhana propriamente dita fez-se em 1964. A outra seguiu o seu destino lendário e é consultável por aficionados.

Percebi que era portuguesa em três situações da minha vida: a primeira aos vinte e quatro anos quando regressava de comboio de um exílio mais que deprimente na Alemanha histérica de 1978, a segunda aos trinta quando escrevi poemas, peças, uma opereta e dois capítulos de um romance naquilo a que alguém chamou “mid-Atlantic English” e a outra regressando de Cambridge, onde participara num encontro de escritores anglógrafos, em 1998. A primeira deu-me a medida de uma “pertença”, a segunda a medida de uma “livrança”, a terceira a medida de uma “sentença”, ainda que auto-imposta. O que fiz em Cambridge? Stand up comedy, nem mais. Gostei enormemente, de tal forma que pus a hipótese de me passar toda para o lado da língua inglesa. Depois a vida seguiu o seu curso, não houve guerras, nem catástrofes, não me obrigou a passar para lado nenhum. Apenas livros e livros — and here we are.

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Segunda Leitura


Luísa Costa Gomes

Segunda Leitura


Luísa Costa Gomes

Não sei se mostro grande satisfação quando alguém me diz com apreço que leu o meu livro de um fôlego. “Lê-se muito bem, lê-se depressa, não consegui parar”. Não é que aconteça com frequência, estamos no domínio do ficcional. Ler depressa e bem, despachar um livro em duas penadas, fechá-lo com alívio, ir rapidamente tomar um duche e sair para jantar, depois um espectáculo, também ele rápido, mais um livro, sempre a despachar, e ala, dormir, outro livro, outro espectáculo. Tudo isto me faz pensar no tempo, no trabalho e no prazer que o livro me deu a escrever. Sou ingrata, admito. Mas este grande desajustamento entre as experiências de escrever e de ler, que à partida deviam ser mais coalescentes (v. “coalescência”, Délio Santos, in Instauratio Magna, uma das instâncias cómicas do que tento descrever), o desajustamento, digo, é fonte de mal-estar e perplexidade. Nisso não difere de qualquer outro desajustamento.

Mas se alguém me diz que leu, sim, mas devagar e penosamente, que tem de ler outra vez, não percebeu nada, aquilo é muito denso… é confuso, é complicado, difícil, pois não me encontra mais contente! Estimula-me outro receptor da enervação, a que idealiza, fusional, o leitor que entende o texto por dentro tão completamente como se tivesse ele mesmo gasto anos a escrevê-lo. E não é que este leitor que devia ser o meu alter ego, habitar-me o imo, apanhar cada motejo privado, cada idiossincrasia, e amá-las como a si próprio, afinal não percebeu nada, tem de voltar a ler, provavelmente tirar notas, enviar-me páginas de perguntas capciosas do género das que se punham a certo romance de Agustina em que a personagem aparentemente morria e adiante renascia?! E tudo isto dava aso a murmurações nas hostes, oh que falta de cuidado, lendas sobre a forma como escreve, como deixa de escrever…

Apanho-me pouco depois a dizer ao colega escritor: “Lê-se muito bem o teu livro. Gostei imenso, não conseguia parar de ler.” Mesmo que não seja verdade, porque lhe digo o mesmo que ele me diria se quisesse ser simpático comigo? Há qualquer coisa na velocidade que é bom e assim é que deve ser. Mas devemos escrever livros rápidos de ler? Stevenson estava convencido de que sim. Aos outros, os que o aborreciam, chamava ele “clerks conversing”. A rapidez implica avidez, mas será possível ter o bolo depois de o ter comido? Que leitura é uma segunda leitura? Tenho sentimentos contraditórios em relação a estes sentimentos contraditórios. Porque o livro quer ser lido depressa, quer ser interessante, não quer ser posto de lado! Mas exactamente porque não quer ser posto de lado, quer ser complexo e profundo, quer ser eternamente lido e relido. Todo o livro anseia ser livro de cabeceira. Pelo máximo de tempo que ele puder. E isto, que parece impossível, é afinal possível e corrente. E vamos deixar a coisa na sua pujança aporética, onde é mais produtiva.

Nos artigos que leio sobre George Meredith mais cedo ou mais tarde aparece a referência à dificuldade e obscuridade da sua escrita. Como se não fosse já fora da linha a acusação de “demasiado escrito”, os comentadores ainda lhe apontam o facto de os seus romances estarem sobrecarregados de “wit”. Então censuram o homem por ter graça a mais? Porque as suas frases são saborosas cornucópias de sentidos e os romances se estendem e se espraiam à son gré, sem outra obrigação formal que não a de se irem espraiando e sendo bons e em partes assim-assim, talvez não muito relevantes, mas sempre impecavelmente estilosas? Atentem no princípio, na forma como indirectamente, em trevelingue, se estabelece o microcosmos em que vive o fidalgo natural e culturalmente egotista, o protagonista de The Egoist, e se fica logo a saber quem manda e quem diz o que se pode dizer e como. Ah, but he has the leg.

Por não ser considerado um escritor fundamental, Meredith é um escritor fenomenal. The Egoist, digam o que disserem, é um mamute de um romance extraordinário, de linguagem elegante e sofisticada e rebuscada analítica que deliciava Oscar Wilde. Porque será que perde com a segunda leitura? É este o ponto, e é bem misterioso.

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Suicídio: sim ou não?


Luísa Costa Gomes

Suicídio: sim ou não?


Luísa Costa Gomes

É que não há o mais ínfimo, o mais despretensioso, o mais insignificante dos textos sobre Virginia Woolf que não acabe por insinuar, inserir, referir ou carrément meter a martelo a sua carta de suicídio a Leonard Woolf, deitando sobre a obra um peso de prenúncio e a marca de uma escrita feita exclusivamente para adiar o inevitável. Fala-se das pedras nos bolsos. Da manhã em direcção ao rio. Toda a encenação como se fosse a sua última ficção. Normalmente, e numa nota mais comadreira, acaba por se referir Bloomsbury, a vida boémia, Vita, a irmã, o cunhado, a familória toda. O meu conselho geral? Não se suicidem. Especificamente para artistas: se não conseguirem mesmo evitar – compreendo. Mas se acreditarem que a obra vai viver, mantenham-se discretamente à sombra dela. Fechem-se no quarto e não dêem notícias. Deixem o leitor imaginar que já morreram. Será para ele uma surpresa, uma alegria, saber por acaso na wikipedia que nasceram em mil e muitocentos, mas que o hífen ainda não fechou o parêntesis. Se não quiserem a obra para sempre refém de um gesto, ao menos não escrevam cartas de despedida. Se não conseguirem mesmo evitar escrever uma carta de despedida – compreendo. Mas nunca ao marido. Ou à viúva. Ou à meia-irmã. Uma carta de despedida ao homem que vem entregar as compras do supermercado chega perfeitamente. Ao faz-tudo que pendura os candeeiros e deseja com profissionalismo melhorar a performance das portas. Toda a gente compreenderá que a nota de despedida não é para ele. “Caro Senhor Urbano, penso que todas as nossas contas estão saldadas. Pelo menos, parto com essa convicção. A porta do armário espelhado da casa-de-banho precisa de uma fechadura nova. É para mim enervante não conseguir abri-la quando chega a urgência de tomar remédio. Deixo o Sr. Woolf avisado e ele fará contas consigo. Trata-se de uma fechadura pequena, mas fica ao seu critério, Sr. Urbano, a estética do puxador. Não quero incomodar o Sr. Woolf com detalhes. O Sr. Woolf, com quem mantive cordial entente durante mais de vinte anos, e eu, não poderíamos estar mais satisfeitos com o seu trabalho, dadas as circunstâncias. Não apenas com os seus trabalhos avulsos em casa (o forno já assa, agora sim!), mas um com o outro, como sempre desejámos. Lamento tê-los assustado por vezes com frases a despropósito. Mas o senhor compreende, tal como o sr. Woolf, a especificidade do meu trabalho. A minha vida são as frases, como a sua são porcas e parafusos. E agora que tudo se desarranja, as frases saltam como coelhos de trás de moitas e eu não tenho balas para todos.”

Se, pelo contrário, a obra é horrenda, ou essencialmente incompleta, poderá beneficiar de uma ajuda desta natureza. Mas é golpe que só se consegue dar uma vez. Suponha-se que o autor foi preguiçoso, copiou doutros as passagens que se lhe afiguram mais impactantes, vasculhou as redes sociais para lhes catar as tendências, enfim, usou do estendal de ideias feitas industriais sobre o que é escrever um livro. Escreve o formato, publica o formato, faz a ronda dos mediá, não precisa de se matar. Matar-se é apenas uma vantagem competitiva no mercado dos formatos. Já não o outro, o escritor fumador, que por bravata usa uma máquina de teclas herdada de Dashiell Hammett para a qual não se encontra fita, tornando toda a escrita um desperdício de fita, um exercício do desperdício. Este escritor é que está numa situação muito chata.  Este escritor deixou-se convencer por outros escritores que é ele que tem de escrever o livro. Fez até oficinas em que se lhe meteu na cabeça que a escrita é dele, original, e que a sua missão é ser singular. Este é o escritor que se mete em apuros, que procura em si, que vai fundo. É sua a responsabilidade da qualidade da obra. É uma responsabilidade que ele não enjeita, nem aproveita. Não tem a certeza de conseguir. Mais, tem a certeza de que não consegue. Na secretária, manuscritos semi-começados e semi-acabados, todos incompletos sem excepção. A seu lado, coçando os olhos com os cotovelos, esguedelhado, exasperado com o seu próprio estro que o vincula e abandona, o escritor duvida. Contempla… sim, contempla o suicídio. Pensa em Virginia Woolf, na carta de despedida. É uma saída, sem dúvida. Mas, ouve-me cá, estando tu morto, o que irão encontrar? Excertos, trechos, ramadas. Que é da raiz, do tronco, algo a que o editor se possa agarrar, algo que a tua viúva possa levar ao editor!? Acaba mas é esse romance, não sejas derrotista. Bem basta a depressão, quanto mais ser-se derrotista. É chover no molhado, é pregar ao convertido. Temos título? “Chover no molhado”? Enlouqueceste?

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Sou eu ou é eu?


Luísa Costa Gomes

Sou eu ou é eu?


Luísa Costa Gomes

Experimentem lá falar de doenças a ver se não começam todos a fugir cada um para seu lado. Acabareis sozinhos! Falar de doenças, excepto entre médicos em ambiente médico, é socialmente mal visto. Culturalmente, então, nem se fala! Pior do que aparecer embriagado, em desalinho, num evento sóbrio. Falar de doenças é, em si mesmo, doentio. Não conheceis o doente que vos põe por ordem tudo o que sofreu, o dia e a hora da consulta, o que disse o médico, o que ele disse ao médico, a expressão do médico, “não quero assustá-lo, mas”, onde era a dor, se cresceu, se atenuou, se migrou, perspectivas de futuro, de modo que o ouvinte só quer escapar, ou, em sendo impossível,  mudar de conversa? Mas eu quero lá saber.

Eis algumas das doenças pelas quais somos responsabilizados: doenças dos nervos (excepto nervo ciático, óptico, etc.), depressão, anorexia, gastrite, cirrose (só para quem bebe álcool), sida (válido para homossexuais masculinos, não para hemofílicos, embora para quem não saiba, seja tudo a mesma coisa). Eis algumas das doenças pelas quais não podemos ser responsabilizados: pé boto, palato fendido, joelho de água — a não ser como resultado de desastre de um desastrado — tiroidite dentro do limite, nefrite, tuberculose em alguns casos, pneumonia — apenas no caso de não se poder enraizar numa atitude demasiado descontraída em relação à gripe. Alguns cancros de casuística algo emotiva. A trombose e a tromboflebite vêm com uma responsabilidade partilhada entre a vítima que não fez o exercício preventivo, comeu febras em vez de nabos, e o sacana do trombo. A “constipação mal curada” que degenera em qualquer coisa de maléfico é sempre da responsabilidade do constipado. Uma pessoa que sofre de gastrite é uma neurótica, logo uma “infeliz!”, uma pessoa que sofre de reumatismo é uma “coitada!”. Um não-fumador com cancro de pulmão é um “coitado!”. Um fumador com cancro de pulmão é culpado. (“Bem feito!”). Tal como o sifilítico, e todo o que contrai doença venérea. Excepto a mulher do sifilítico, coitada, uma infeliz. Quem se diverte e apanha uma doença, é toma lá que é para aprenderes. Em geral, e mesmo sabendo racionalmente que nem sempre assim é, a doença mental é da responsabilidade do doente. A não ser que se possa ancorar na realidade objectiva de um tumor ou de um desequilíbrio hormonal (ufa, são as supra-renais!). Da esquizofrenia à demência, há feitios, há personalidades, há manias; se o doente não procura tratamento, é porque não quer mudar; se procura tratamento e ele não resulta, é porque o doente é um estupor e não há droga que o acalme. Como os toxicodependentes, já agora. Há doenças que fazem parte da biografia (pedra na vesícula, sinusite, alergia à penicilina) mas não são propriamente biográficas; outras, aparentemente, são de tal forma biográficas que comprometem a vida, logo a escrita (dermatite herpetiforme anal de Marat, que escrevia no banho, obstipação de Kafka, hemorróidas de Rousseau). Conhecida a ligação da escrita ao sistema digestivo. Ora, meus amigos, Kafka escrevia como um obstipado, olhem-me aquela relação entupida com o pai, e Marat morreu de um efeito colateral da dermatite, no banho em que, estando a tratar-se com umas plantas curativas, foi assassinado. Bem pouco terapêutico, o tal banho. Chamem-lhe ironia do destino, que o destino sente-se lisonjeado. Para os mais radicais dos naturistas, toda a doença é, em última instância, assacável ao doente. Enquanto ele não conseguir afinar a sua harmonia com a Natureza, bem pode penar. Definir “Natureza” é que é o diabo. É vasta, a Natureza, vaga, e vasto e vago o seu conceito. Tanto refere constelações que interferem no nosso eu do dia-a-dia, como seguir a paleo-dieta, destilar toda a sorte de ervas com propriedades carminativas, cumprir todas as posições do ioga. A Natureza é de uma exigência atroz, o que acaba por tornar a harmonia volátil e contingente. Coisa de segundos. Agora, harmonia, uns segundos depois, chá de hortelã para a restaurar. Argila verde alinhada com Neptuno. Tudo auto-sugestão? Algumas coisas auto-sugestão? Que coisas auto-sugestão? Depois se vê. E há os brutos que restabelecem a harmonia com cortisona. Cortisona para tudo e chega de conversas e beijos na testa. O que é este corpo eminentemente desarmonioso pelo qual somos responsáveis? Quem é este eu que apanha doenças e sofre acidentes e envelhece e morre? Somos nós? É nosso? Sou eu ou é eu? É eu, a quem trato com a cerimónia própria de um corpo estranho, vamos lá tomar a colherzinha de xarope, Sôdona Luísa, a ver se isto não degenera em algo da sua responsabilidade, partindo do princípio de que o vírus não é de sua responsabilidade, que a senhora pôs-se a jeito, hã? Andar de autocarro em Dezembro? Com tudo a espirrar e a tossir-lhe em cima? Onde é que começa o eu que trata do eu que toma xarope? Magnas questões que vêm irrespondidas do fundo dos tempos. Não é o que interessa. O importante é que, sabendo o que sabemos desde o século XVII, continuamos a tratar coitados e infelizes como duas categorias diversas, com dois pesos, duas medidas, a mão compassiva afagando coitados, a palmatória do olhar de censura repelindo infelizes.

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Nunca Serei Atleta


Luísa Costa Gomes

Nunca Serei Atleta


Luísa Costa Gomes

Ora, um pouco de conversa de mesa nunca fez mal a ninguém. Jogava ténis, eu, em rapariga. De acordo com o género, épico, a coisa havia de se desenvolver por etapas até ao topo. E eu iria vencendo obstáculos — a vida em geral, falhas de carácter e lesões nos membros — para, por meio da determinação e da força de uma vontade que ora se impunha ora se não impunha para ser mais dramática, chegar ao cúmulo do serviço e da passada. Basta dizer que até hoje não consegui fixar a forma de contagem dos pontos no tal jogo do ténis, nem tive o gosto de saber como é que se ganha uma partida. A minha geração, valha-nos Deus, viveu no desprezo de toda a actividade física que não fosse bibícola, prandial ou sexual. Nem sequer passeávamos, a não ser em termos peripatéticos! Era tudo intelectual de café, e a esta distância me parece que era cafeína bem mal empregada. Os homens, posto que poetas, ainda se permitiam achar o futebol um jogo de grande beleza estética (dizia-se beleza estética, para a distinguir de outras), uma coisa linda, mas deviam ler primeiro o Edgar Morin (algo sobre a tribo) e admirar o Hemingway das armas de fogo e das touradas. E que escrevia de pé, como as árvores. Suicídio viril e por aí adiante. O desporto favorito destes homens, posto que poetas, posto que republicanos, ou de esquerda, eram as mulheres. Esse continente misterioso. O eterno feminino. Aceitável era ser-se da Académica, aqueles futebolistas eram mais cultos, pontapeavam, sábios, um deles até publicou poemas, o que entorpecia a nossa consciência de que o futebol era, e ainda é, o ópio do povo. O ópio é que já não tem a má imprensa que tinha então. Não digo que não se desse já atenção estética ao futebol (e que bem que se escrevia n´A Bola era a opinião aceite) e a desportos elitistas como o ténis, mas a gente só via de longe, não praticava. Sabia como se velejava, mas não se metia à besta dentro de água. E volto à autobiografia, breve, sem delongas. No meu caso, censuro o joelho esquerdo, que me falhou sempre que precisei dele para o desporto, vítima de um acidente de bicicleta parada (mas a bicicleta ficou para a vida, só para verdes a falta de justiça que rege as coisas) e acabei por nunca ser atleta. Não me preocupou o joelho, não me passava pela cabeça o joelho e não tratei. O joelho não fazia parte da maquinaria do intelectual. (Ponho aqui uma graçola sobre o “escrito em cima do joelho”?). E não me fez falta no currículo até começar a ver os currículos destes novos escritores que correm, jogam futebol, praticam desportos de competição. Esqui, aqueles que saltam a voar de alturas descomunais! Oh, quem me dera! Mas o preconceito aliou-se à lesão e despreocupou-me o que me devia ter preocupado. E hoje quando deito os olhos ao mar e o vejo salpicado de surfistas, ou vejo gente a jogar râguebi, ou boxe, penso, foste burra!, não te preparaste. Agora olha: ioga e viva o velho. Quem sabe se não falhei uma vocação de pugilista, pelo mero preconceito de que um intelectual não anda à pancada e não pratica desportos de combate ou competição? Figurões pálidos do passado, ó intelectuais de café, fumadores, alcoolizada gente sentada, a responsabilidade é vossa, mas a culpa, infelizmente, é minha.

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Como saber o que não dizer


Luísa Costa Gomes

Como saber o que não dizer


Luísa Costa Gomes

Sendo dado que, na relação dialógica, tanta coisa pode correr mal, proponho que deveríamos submeter-nos em sede de escola a alguma catequese sobre “o que não dizer”. Podia ser uma disciplina de Civilidade Dialéctica. Para além dos protocolos que se aplicam a toda a vida de relação – “não matarás!”, por exemplo, é evidentemente um deles e vale tanto em comportamento dialéctico como na vida em geral - não vejo inconveniente na doutrinação sobre os interditos específicos do diálogo. Na ausência dela vemo-nos reduzidos à experiência e é com ela que temos de nos haver. É conhecida, em Psicanálise, a purulência do Não-Dito, erguido à imponência de conceito operatório; o Não-Dito, que fica a fermentar nas profundezas e rebenta –embora mais tarde, tem essa vantagem ao menos- em sintomas e excentricidades. Mas há silver lining no Não-Dito, tem de haver.

Há pessoas que nunca dizem nada, atitude formalmente correcta, mas pobre em conteúdo; há os que dizem tudo sobre todas as coisas em todas as situações. Nunca se calam, têm opiniões sobre tudo e fazem questão em explicá-las por passos que vão de causa a efeito até à náusea. No meio, está a busca da virtude. Na minha experiência, já que é disso que se trata, esta é uma aprendizagem lenta e difícil. Aprender a calar, saber o que não dizer, não transmitir precipitadamente uma opinião. Ouvir chegar à consciência uma grande verdade, o mais das vezes ressentida ou vingativa e, ainda por cima, objectiva! E reprimi-la, actividade tão contrária a uma geração que viveu para a libertação. Mas vem a verdade objectiva, aí vem ela, o pensamento afirma-se supremo. Com essa grande verdade a consciência remexe-se de vontade de arremessar, de fazer ver, de convencer e esmagar pelo seu esplendor…E não, nada dirás. Sofre e abstém-te.

Mas como saber, de facto, o que não dizer? Como ganhar essa intuição? Ultimamente, não uma nem duas vezes, quando me ouvem começar algum monólogo indignado ou em que o zelo da transformação do mundo é demasiado evidente, interlocutores murmuram, aproveitando uma pausa que teria sido enfática, após uma pergunta que teria sido retórica, não fora o facto de eles murmurarem: “Bem, isso não sei”. Há muito a aprender com tal murmúrio. Primeiro, ele sabe que um monólogo zeloso tem uma de duas ou três fontes, ou uma indisposição passageira ou um sistema de ideias em rigidificação acelerada ou uma velha questão caracterial incurável. Ora, “bem, isso não sei”, dito de forma não-confrontacional, deixa o interlocutor em roda livre, sem combustível. A conversa é uma forma de combustão (seguem símiles, em combustão lenta, ou em lume brando, ou acesas e fogosas, etc.) e o que ela quer é continuar a conversar, com grandes verdades e sem grandes verdades. A Grande Verdade não serve o diálogo e essa é talvez a lição socrática por excelência. A verdade da grande verdade é que é uma conversation stopper. E o interlocutor vê-se forçado a amochar. Há, convenhamos, interlocutores belicosos, que respondem a uma grande verdade com outra verdade ainda maior, e sobem de tom e de parada, obrigando o conversation stopper a arrancar das profundezas uma verdade quase suprema…E isto não pode acabar de forma satisfatória para ambos.  Para isso precisam de saber o que não dizer. “Bem, isso não sei” afirma que se sabe o que dizer para que aquela conversa específica não continue a descer para o famoso “confronto de ideias”, esse horror dialógico, e se desvie para outras pastagens mais verdes. Sócrates disse que “só sabia que não sabia”. Não era preciso ir tão longe. 

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O Fim do Livro


Luísa Costa Gomes

O Fim do Livro


Luísa Costa Gomes

Há qualquer coisa de arrepiante e sinistro na publicidade, como se tudo aquilo existisse num universo paralelo, impalpável e, no entanto, material. Mas este cartaz é apenas monstruoso: numa sala comum, uma família diverte-se em conjunto ao serão. A menina ri-se para o tablet, o pequenito entusiasma-se com o futebol na televisão, a mãe sorri ao computador e o pai – que já podia muito bem ter dado à sola - , no canto mais remoto do sofá,  dá ao telemóvel um riso maroto.  O pêlo eriça-se nos braços, os bocados do cérebro encarregados da nossa parte crítica e emotiva batem sinapses como loucos. Mas, pouco depois, o realismo instala-se. Não será isto melhor do que jogar à bisca? À soturna bisca? Não será melhor do que ouvir os cônjuges em discussão por falta de outra diversão? Pergunto, é só. Mas a questão não é moral. É cultural. Ficaríamos mais em paz se todos eles estivessem, cada um de per se, com o focinho enfronhado num livro? Num livro? Que é como quem diz num romance, num poema, numa historieta inventada, numa ficção? No instrumento mais escapista e anti-social que alguma vez se inventou? Tão escapista que tiveram de lhe andar à cata de virtudes cognitivas competitivas ou nem a alma se lhe aproveitava! Vivemos do hábito, é o que é.

Porque estava a ver ted talks atrás de ted talks e o nível de imbecilidade dos ted talkers ia fermentando e crescendo a olhos vistos até ir dar, por uma inevitabilidade qualquer da sua arquitectura, às inspirational ted talks. Ora eu tenho um ódio vesgo ao inspirational.

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Eu e o inspirational

O inspirational é o lúmpen da banha da cobra; é a religião sem transcendência; a doutrinação pela superstição; o amor do obscuro aspirativo em nós; a manipulação das partes moles do carácter; a instauração da irracionalidade; e por aí fora. Este ted talk durava só dez minutos, graças a Deus, e a rapariga era self employed (sonho de uma vida). Com sonhos assim, só não é feliz quem não quer. Ela queria que nos tornássemos mais felizes através do desenho. O nosso cérebro diz ela que percebe melhor quando se lhe faz um desenho. Quando me falam no “nosso cérebro” eu vejo o laboratório do Dr. Caligari (não o gabinete do doutor, mas o seu laboratório) onde se alinham frascos de aleijões, fetos abortados, um cérebro em formol. Esse cérebro em formol é o que eu vejo. Somos nós de um lado e o “nosso cérebro” do outro. Nós temos de lidar com o nosso cérebro, temos de saber iludir e enganar o nosso cérebro, temos de saber domesticar o nosso cérebro. O nosso cérebro é um animal de circo. O nosso cérebro tem lá os seus caprichos que ou se arrastam desde a noite dos tempos e não há nada a fazer ou são adaptativos e/ou teleológicos e também não há nada a fazer. A admirável plasticidade do nosso cérebro é afinal a de um emplastro passadista com ideias fixas. Para esta rapariga, portanto, para sermos mais felizes temos de fazer um desenho de como queremos ser daqui a, digamos, dois anos que é para o “nosso cérebro” ver o desenho e perceber, ah! deve ser isto que a dona quer. O nosso cérebro é o Rantanplan dos Dalton. Tira pelo sentido. Desenhamos a nossa vida daqui a dois anos e depois é dar três passos: visualizar, acreditar e pôr tudo a mexer. A rapariga desenhou, é verdade, mas o que me tocou (ou tocou o “meu cérebro”) foi a atenção fixa do público. Havia mesmo quem tirasse notas. Nos ted talks o público toma notas quando fala o Nobel ou a miúda dos desenhos da felicidade em prospecto.    É o facto contextual que importa: está sentado a ouvir alguém que está de pé a falar. O facto de estar de pé a falar leva a que se tire notas do que está a dizer. 

Podeis, portanto, calcular a minha surpresa, quando o meu cérebro se pôs a querer desenhar a nossa vida daqui a dois anos. Para ele, estaremos no Tahiti, a surfar, numa boa; mas não sei surfar, nem tenho força. O meu cérebro quer lá saber, o sonho dele é que vale. Tive de pesquisar, parece que no Thaiti não se surfa, apenas no Hawaii. O meu cérebro achou bem, desde que seja no Pacífico. Com aquelas carradas de plástico no oceano, perguntei? O tédio de uma água perfeita e permanentemente azul turquesa? E anémonas cortantes, peixes venenosos, alforrecas mortíferas, embora muito belas? Mas ele não quer saber, desenhou a nossa vida daqui a dois anos numa ilha do Pacífico. Não se pode surfar mais perto, ali na Caparica? Não se pode, a água está fria. E será então assim a nossa vida:

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Eu e o meu cérebro no Pacífico

Agora vamos pesquisar as ted talks sobre as vitaminas. Que é para irmos bem vitaminados para as ilhas do Pacífico, porque o meu cérebro percebe (não é parvo, longe disso) que nas ilhas isoladas do Pacífico há uma falta milenar de nutrientes. 

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Coisas Soltas


Coisas Soltas


Sarte é o inferno são os outros. Os habitantes de Königsberg acertavam os relógios por Kant – isto dá logo uma ideia do género de menino que ele era. Só conseguia pensar racionalmente, por universais. Tudo o que não era universal, para ele, era como se fosse. Já Proust é a madalena e a sensualidade da memória. Longos parágrafos sonhadores com muitas orações subordinadas, não sei se ainda se diz assim, às vezes é o diabo para perceber a que são elas subordinadas. Tias excêntricas. Um amor mais ou menos anormal pela mãe. Highlights ( licht, licht, mehr licht!) de um universo, é o que se leva desta vida. Tchekov é vamos para Moscovo e seus derivados. Kafkianas por antonomásia são as repartições de finanças que têm senhas ordenadas de A a J, de que apenas há duas letras, de cujas letras não há senhas, porque os dois funcionários que não estão de férias podem fazer apenas o que podem fazer; se esses contribuintes aí sentados fossem crianças, chicoteadas por madrastas grimmescas, perdidas em florestas perraultianas, e merendassem morangos com natas à la Rabelais, aí seria Condessa de Ségur; e se tudo isso se passasse num bairro castiço de Buenos Aires, as crianças fossem furtivas sombras de homens suados e velhacos em virtude de desejos oblíquos, com reflexos de lâminas e cantos dengosos, seria Borges. Tudo isto, mas num poço sem fundo, com uma lâmina de aço gigantesca suspensa acima do corpo, temos Poe. Se cegos à esquina pedem esmola e não cantam milongas obsessivamente é Victor Hugo, é Fialho d´Almeida, a não ser que o plano seja fixo, e é Oliveira. Não dou importância ao pormenor que me há-de perder (o stress, por exemplo) e vivo um fenómeno tipicamente kleisteano. Apanho um autocarro que me leva para um cenário de guerra por engano, quando lá chego e penso “estou perdida!”, não, a paz é declarada, exulto, mas há um atirador furtivo que assesta sobre mim o cano da espingarda… Kleist puro. Continuando no tema autocarros: uma pessoa faz um imenso discurso sobre a esperança a outra que a ouve até ao fim e sai da sala, empolgada, com toda a sua vida pela frente. Vai tão feliz que é atropelada por um autocarro. Ora isto já não é Kleist. É Schopenhauer? Seria, se o Universo continuasse impávido. Mas como o público se ri (nervos, provavelmente) é a comédia adolescente dos Monty Python. O atropelamento por autocarro é traço grosso e quando acontece dá o desconforto do Livro de Job, o de um sentido de humor divino abaixo das suas Dignidades; aliás, qualquer vida interrompida no instante nos faz temer pelo sentido generalizado das coisas; o mais que se tira dela é somos pó, não somos nada, carpe diem, etc. – o que é obviamente outro tema. Porque se continua a ligar somos pó a carpe diem é o que nunca entenderei. Agora Shakespeare. Ena pá, Shakespeare! É reinos por cavalos e loucos por charnecas. Na minha caneca das tisanas vem a seguinte citação: “One touch of Nature makes the whole world kin”, ao lado de um coelhinho à la Dürer, acolitado de folhas de ácer e um cogumelo com bom aspecto (venenoso? não venenoso?). Posso em minha defesa alegar que não me importa em nada a literatura de caneca, nem de T-shirt, nem as tatuagens que dão lições de vida, mas a citação era familiar, embora não o fosse o sentido eco-ecuménico em que ali era usada. É Shakespeare, é Troilo e Créssida, é Ulisses a manobrar Aquiles na Cena III do Acto III. Se se lembram, o que ele quer dizer, se é que podemos sabê-lo, tira-se pelo contexto. Os homens são todos iguais nisto, é que se interessam pelo que é novo e inédito, esquecendo os feitos e os heróis do passado. São uns malvados, ingratos e voláteis, é essa a sua natureza. Na caneca, ao invés, essa Natureza benigna que nos faz irmãos de coelhos&cogumelos é tomada fora de contexto como a nossa parte melhor. Para caneca, não está mal. E também é Shakespeare. 

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Olha a mala, olha a mala


Luísa Costa Gomes

Olha a mala, olha a mala


Luísa Costa Gomes

 Ninguém se espanta se a rapariga, nos anos sessenta, acorda perfeitamente penteada e maquiada depois de uma noite de amor. Ninguém repara se o herói que se fartou de levar na tromba ainda tem a popa no sítio, nem se vislumbra nela  traço da agressão. Mas a mala com que a mesma rapariga sai de casa para iniciar uma vida livre, porque está ela tão leve? Raramente na vida da ficção em imagens se vê pesada uma mala de viagem. Nem ao emigrante, passando a salto a fronteira, nos parece que lhe pesa. A mala, nos filmes, é leve; no palco, leve. Na vida, não.

Abre-se excepção à leveza da mala nas comédias em que a mala tem rodas e é pesada e implicante, para que das duas uma, ou alguém ajude, ou alguém tropece, mas esse alguém é normalmente o rapaz da rapariga e isso constitui o início da história. A mala ou é técnica da intriga e aí pesa, ou é adereço e atira-se de uma penada para qualquer lado. Sempre me fez confusão esta coisa de uma mala que se ginga para dentro da bagageira como se nada fosse; como se ela não levasse dentro as pedras do passado, não sinalizasse um enigma histórico quanto ao futuro dessas pedras.

Há, talvez, uma explicação lógica. Quem parte, no cinema dito naturalista (como adverte a Wiki,  não confundir com “naturismo” e acrescento eu, sobretudo, não confundir “naturismo” com “nudismo”) quem parte, dizia, é pobre por inerência. Não tem muito de seu. Daí a leveza da mala. Então, para quê a mala, continente atravancador para nenhum conteúdo? Porque não a honesta trouxa com um pente, um canivete, duas pagelas, um naco de broa e, digamos, um coto de vela? 

Foi com este problema em mente que revi La Ragazza con La Valigia (1960) do cineasta Valerio Zurlini, que havia de fazer em 1976  Il Deserto dei Tartari, baseado numa história de Buzzati. La Ragazza con la Valigia é uma esplendorosa e pungente Claudia Cardinale e o rapaz a iniciar o Jacques Perrin imberbe e puro. Tentem lá cortar os adjectivos à Claudia Cardinale e boa sorte com isso. A mala da ragazza é a mala de couro dos viajantes pobres daqueles tempos, um pouco batida das andanças. Num dos primeiros planos do filme vemos a mala na bagageira de um descapotável de sedutor e o sedutor a querer tirá-la e deixá-la (e à rapariga) no meio de lado nenhum; em seguida, o abandono da mala efectiva-se (e o abandono da rapariga); revemos a mala quando a rapariga procura o sedutor no seu palazzo; rejeitada, a rapariga carrega a mala, que depois passa para as mãos do inocente irmão do sedutor, o jovem Lorenzo. Nesta passagem é que nós percebemos, pelo quase imperceptível desequilíbrio do rapaz, que a mala é pesada, e que é ele quem vai carregá-la até à cidade. Também é ele que carregará, com a mala, a culpa que o irmão não quis aceitar. Da mala, no dia seguinte – e assim se explica, em parte, o peso - surge um ferro de engomar de viagem que a rapariga quer vender ao jovem, de modo a ter com que pagar o quarto da pensão. Mas é o jovem que não tem com que pagá-lo, ademais a rapariga num assomo de nobreza, deixa de lho querer vender. O rapaz arranja dinheiro e acaba por transportá-las – rapariga e respectiva mala, agora já de táxi, para um hotel decente ; aí, o porteiro do hotel experimenta também o peso da mala. E daqui em diante não há mala. Nunca mais se vê a mala. O padre alude à mala na frase: “Pegue na sua mala e volte para donde veio”. Sim, mas onde pára a mala? 

Procuramos concentrar-nos no sac à main da rapariga já que, em termos de bagagem, não temos muito mais a que nos agarrar. Este saco da rapariga é de um mau gosto dificilmente ultrapassável, uma espécie (não vejo de momento outro símile) de prato de panquecas de que pende uma borla de reposteiro. Vá-se a mala, fique-nos o saco. Este saco acaba por ser substituído, e muito a propósito, no momento em que a rapariga está a ser reinventada pelo jovem, que rouba dinheiro a uma tia para vestir a rapariga, justamente, de tia, por uma carteira de bom corte; logo substituída, no fracasso da reinvenção, pelo sac à main da borla, cujo serve, na única cena de murro, para a rapariga defender o rapaz, batendo com ele na cabeça do promotor-corruptor. E também desaparece o sac à main. Na penúltima magnífica cena na praia não há bagagem, os amantes encontram-se finalmente na impossibilidade do seu amor (que é também a realização de que essa possibilidade existiu), e o mais que temos é um lenço branco do rapaz, com que a rapariga lhe trata as feridas do combate contra o corruptor. Concentradíssima nesta questão particular de malas e de sacs à main escapou-se-me a visão panorâmica. Não percebi o final e ao que parece não se consegue perceber bem uma história a que nos escapa o fim. Na última cena, a rapariga não tem mala, não tem saco, apenas carrega um envelope com umas notas deixadas pelo rapaz, em vez da prometida carta de amor. O comboio veio e foi. A rapariga está triste e decepcionada. Eu, perplexa. Depois explicaram-me o final. Fez sentido. Percebi tudo. Esqueci logo. Diz-se que Flaubert dizia que “le bon Dieu est dans le détail”. Mas não está. Também não está.

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Como conheci o meu primeiro poeta


Luísa Costa Gomes

Como conheci o meu primeiro poeta


Luísa Costa Gomes

Conheci o meu primeiro poeta através do meu primeiro beau que era uma destas pessoas que conhecem toda a gente. “Vai ter com Fulano, diz que és minha amiga” foi conselho que tive sempre o bom senso de não seguir. Por ele conheci afinal parte diminuta da obra do poeta e um bocadinho da pessoa, na forma de uma dedicatória. O poeta era um senhor do Porto que votara à temática do Amor a quase totalidade da sua obra. Ia a dizer “já extensa obra” e é bem provável que o fosse - o livro que nos calhou era uma “antologia”, uma selecção de poemas, o que devia significar que o poeta entrara em fase de rapar o fundo ao tacho.  Ou seria juvenília que enjeitava e enjeitando possuía resmas dela nos armários? 

Eu era uma ingénue da poesia. Sabia mais do que mostrava saber e bastante menos do que julgava que sabia. Lera e esquecera o que se lia nas selectas, já tinha algum Fernando Pessoa, subsistema Álvaro de Campos, o bastante para ser incompetente. E escrevia versos desde os nove anos de idade, o que não era garantia de coisa nenhuma. Mesmo com todas estas limitações, o elogioso facto de um livro de poesia dedicado pelo poeta aos dois amantes (de que eu era uma) não conseguiu obscurecer a impressão de que o livro considerado em si mesmo não era grande coisa. Onde terei ido buscar tal sentido crítico?  

Só conheci a pessoa do poeta muitos anos mais tarde. Estávamos no mesmo hotel a participar numa coisa cultural, ele já mais que laureado e em fim de linha, eu nos primeiros esforços, e encontrá-lo à mesa do pequeno-almoço não deixou de me fazer um certo efeito. Já vira a obra, agora vinha o homem, um senhor cansado, benévolo, com um sorriso meigo que era um programa de vida. Nesse tempo, ele era já a Grande Figura, a trabalhar para a sua própria lenda. Quando se referia à Dama Poesia é que tinha a voz ainda cheia de Musa e Lusa Atenas, mas mesmo assim menos declamativa do que alguns poetas dessa época. Foi gentil e simpático comigo, havia em geral um companheirismo dos mais velhos para os mais novos que era consolador. Aqui a memória torna-se confusa. Embora tenha a imagem nítida, ou seja, falsa, de um homem de muita idade, numa atitude descontraída, um pouco deprimida, de camisa branca aberta até ao peito, uma voz aflautada, não sei o que se passou entre nós…Conhecendo-me como me conheço estava capaz de jurar que (exactamente porque não queria falar) lhe falei no beau e no livro, na dedicatória que ele escrevera uns quinze anos antes a este vago conhecido seu, provavelmente conhecido de conhecidos. Porque lhe falei num livro de que não gostava, memento de um amor passado? 

Não me ficando na memória nenhum incómodo, depreendo que o poeta se portou com subtileza. Manteve-se a sorrir no vago. Julgo que depressa chegou alguém que ele realmente conhecia, que gostava realmente dos poemas dele, e salvou-nos do tête-à-tête. Chamei esta recordação, julgo eu, porque continua a ser misterioso para mim gostar muitas vezes mais dos poetas do que dos poemas que eles escrevem. 

 

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Morreu Pimpona, a garoupa


Luísa Costa Gomes

Morreu Pimpona, a garoupa


Luísa Costa Gomes

E Pimpão sente-se sozinho. É apenas natural, nadavam os dois no mesmo tanque e a vida habitua-se à vida. A avó iça a criança e ajuda-a a subir a escadinha de plástico, mobilizada para o óculo de cada tanque. O dedinho apoia no botão, acende-se a luz. A menina espreita pelo óculo, o olho azul varre o cubículo. Espécie de espécie nenhuma. Que é do cavalo marinho? Nada. Ao lado do tanque, a seco, a imagem eterna do cavalo marinho lembra o excêntrico animal. Das duas lontras, com seus incisivos incisivos, o mais que se pode dizer é que apenas os espíritos assombram o lugar e as fotos datando quase da fundação do aquário há muito deixaram de valer. Tartarugas, cuja longevidade é famosa, resta uma, metida na carapaça. E o mero? A moreia? Por enumeração, acumulação do efeito e pela progressão natural das coisas, imagine-se um aquário inteiramente povoado de tanques vazios, água lisa e notícias necrológicas de peixes bem ilustrados e defuntos. Quando digo imagine-se, digo imaginem, imagine o leitor, como se não tivesse estado a imaginar até agora. Apenas uma chamada de atenção e já é uma outra forma de imaginação que eu lhe peço. É uma alegoria, não? E a alegoria depende da sua capacidade alegórica, tem de se iluminar no leitor outra parte do pensante, e essa alegoria vai depender muito mais da sua experiência que da minha. Porque haverá quem considere um aquário sem peixes um lugar contraditório e cómico que se resolve num encolher de ombros, e quem o veja na forma da hecatombe, um sinal dos tempos, uma imagem da perda e do abandono a que tudo está votado. O pragmático, esse, verá um recomeço, um condomínio de luxo onde de imediato sonha viver. Do tanque faz piscina, e mergulha.

Pimpona é nome que em nada descreve a garoupa. Zuraida, talvez. O que Zuraida tem, o sabor orientalizante de peixe que se dissimula nas rochas, o seu carácter esquivo, a reserva de quem flutua parado, parecendo sempre observar, nunca ser observado. Zuraida é auto-suficiente. Vive bem sozinho. Porque Zuraida é homem e mulher, daí a ilusão do nome. Esta Pimpona é anterior à extinção da sua espécie, o que não constitui truísmo, mas a primeira perna de uma ironia. Ela não foi dessa espécie de garoupa que se vende nas nossas praças cultivada ao quilo em tanques de aquacultura e alimentada a hormônio. Foi uma das últimas da sua espécie, se não a última, pelo menos a última nesse aquário em ruínas. E Pimpão sente-se sozinho, posto que não esteja nem ele, nem a sua espécie, em vias de extinção. Pimpona, que não dava confiança, nem nada na sua pessoa apontava para uma solidão, quando morreu, levou a espécie com ela. E Pimpão sente-se sozinho. Não é uma garoupa, o Pimpão, o nome é mais uma vez equívoco. Mas a espécie de Pimpão não está em extinção. É carapau. Carapau ainda há. Carapau ainda vai havendo.

 
 



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História do Chá Dançante


Luísa Costa Gomes

História do Chá Dançante


Luísa Costa Gomes

“No primeiro de Janeiro de 2013, na sequência de umas Festas desconsoladas,  a senhora dona Maria Eulália Marques de Mendonça mandou pôr no jornal da terra um anúncio particular de quarto de página que dizia assim: “Sinto-me terrivelmente sozinha. Tenho uma casa enorme. Os meus amigos morreram, à excepção de um que está muito mal e os meus filhos estão longíssimo. Conterrâneos meus, estais todos convidados para um chá dançante no próximo domingo, dia 6, pelas dezassete horas.” Trofa – a Trofa que era alguém - partiu-se ao meio: a metade Norte julgou a fidalga senil, a metade Sul, que tinha uma melhor recepção da televisão terrestre, encheu-se de uma curiosidade excitada. Mas ninguém apareceu no domingo.”

Tocou um telemóvel. E a nossa amiga, em vez de ter o cuidado de se levantar da mesa e ir atender alhures, repetindo “espere só um bocadinho, só um bocadinho!”, envolveu-se num número circense de fios e auriculares, que ora se metiam no ouvido, ora caíam do ouvido, de tal forma gesticulado e trabalhoso que fez de nós logo ali uns espectadores. A notícia era grave, embora remota, foi transmitida com o devido dramatismo e reduziu-nos ao silêncio. Meteu-se entretanto a sobremesa e não se falou mais no chá dançante. Há que reconhecer algum sentido de oportunidade ao toque do telemóvel. Não sendo o fim da história, o facto de ninguém aparecer no tal domingo era sem dúvida o fim de uma parte, tinha o aspecto de uma auto-contenção. Era uma coisa atómica.

Pensei nisso um dia destes quando retomei a leitura de Kleist e percebi que o chá dançante começava com uma óbvia alusão à forma como a Marquesa de O. procurava o pai do filho dela.  Seria a história do chá dançante mais uma destas infinitas declinações do tema Vida imita Arte? Que queria ele ao certo com a história de uma fidalga que revelava a sua solidão pela via do anúncio regional? Voltei a ouvir a voz do amigo que relatava o texto: “terrivelmente sozinha, casa enorme, morreram todos menos um, estão longíssimo!” A chave estava na hipérbole, claramente, mas seria dele, a hipérbole, do que contava, ou seria dela, da fidalga? Vamos que era dela. Imagine-se então o chá dançante! A Trofa Norte, a Trofa Sul, a Trofa em peso assomando a terraços seiscentistas, trocando frases em galerias gélidas cobertas de itens ancestrais, dançando compacta o foxtrot no salão da lareira, espalhando restos de canapés, de hors d´oeuvres – assim fala a nobreza ainda! – pelos tapetes para o efeito arredados, mas não o suficiente, que a dona de tais bens não tem quase ajuda. Porque será que a nobreza solitária dança sempre o foxtrot? Eulália, num vestido direito de lantejoula negra, ousado um pouco acima do joelho, de reveladora manga à cava manifestamente senil (era o Norte que tinha razão!), clamando pelo chá, no meio do bruá-á, pelo chá de folha especial, mistura única de chinês, de japonês, de nepalês…E o aroma? Intenso! E a chávena? Gigante! E o bule para dar de beber à Trofa? Imenso! E o pão-de-ló? Monumental! Uma banheira! Eulália pela porta entreaberta, entre a copa e o salão, observa a festa, o seu chá dançante. Um sucesso. Ora, digam lá o que disserem, ela ainda está muito capaz de dar festas divertidas! 

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