Escrever sobre Edward Lear e pássaros é tarefa a realizar literalmente «ao voo do pássaro», pela ligação do autor à espécie a vários níveis e porque qualquer abordagem do tópico será sempre necessariamente incompleta.[1] Edward Lear referiu-se a si mesmo como um pássaro estranho e, nalguns dos seus autorretratos, surge com a forma de ave. Aos vinte anos, publicou o primeiro livro de ilustração sobre um único tipo de aves, os papagaios. Como ilustrador científico, Lear desenhou pássaros exóticos mas reais, sempre que possível a partir de animais vivos, mas veio a ficar conhecido fundamentalmente pelos desenhos de pássaros inventados e disparatados que incluiu nos seus limericks e noutros poemas nonsense onde pássaros se comportam como pessoas e estas são representadas ou comportam-se como pássaros.

Lear, o vigésimo de vinte e um filhos,[2] não foi criado pelos pais, mas pela irmã mais velha, Ann, com quem viveu a partir dos quatro anos. Com apenas um breve momento de instrução formal aos onze anos, começou por aprender a desenhar flores e pássaros, ensinado pela irmã Ann (Peck, 22-23).

Um dos seus biógrafos refere que
 

The drawings Lear made as a boy, those in the album now in the National Library at Edinburgh, for example, are perfectly conventional, of parakeets and pretty little birds and butterflies, and of brilliant flowers. He grew up with a girl’s accomplishments, as those were in 1812: natural history drawing of birds, flowers, and a few shells, slight, comic verses and parodies of poets like Collins, and singing. (Levi 2013, 5)


Aos quinze anos começou a vender os seus desenhos e aos vinte já era um consagrado ilustrador científico, embora seja hoje conhecido fundamentalmente pelos seus poemas e ilustrações nonsense. O naturalista David Attenborough recorda que «The first owl to lodge in my memory was the one that went to sea in a beautiful pea-green boat.» (Attenborough 2016, 7). Attenborough refere-se a «The Owl and the Pussy-Cat», um dos poemas narrativos de Lear para crianças, cujas personagens são um mocho e um gato que viajam de barco. «Mr. and Mrs Sparrow», «The Pelican Chorus», «The History of the Seven Families of the Lake Pipple-Popple» e «The Duck and the Kangaroo» são outros títulos de poemas que contam histórias de animais próximas da fábula, mas apenas pelo facto de os animais realizarem ações «humanas», como viajar, andar à boleia, conversar ou fumar, e não no que diz respeito à intenção moralizadora inerente ao género fábula e à literatura para crianças do tempo de Lear, que tinha intuitos moralizantes e didáticos (Whalley, 223), ao invés da perspetiva lúdica de Lear relativamente à literatura infantil (Pereira 2006, s-p).

O autor veio mesmo a ser celebrado num selo de dezanove pence, emitido em 1988, comemorativo do centenário da sua morte, não com a sua fotografia mas com uma ilustração e os versos iniciais do poema mencionado por Attenborough («The Owl and the Pussy-cat went to sea/ In a beautiful pea-green boat»), o seu nome e as datas de nascimento e morte (Peck, 13).

A maior parte das pessoas que conhecem Lear associa-o à poesia nonsense e esse foi também o caso de David Attenborough, que durante muito tempo pensou que Lear era autor apenas nesse contexto; mas uma litografia do século XIX de um tucano mostrou-lhe que não era assim: «This was the portrait not of a stuffed specimen, but a living creature. It was signed E. Lear and for the first time, I realized that the man who wrote ‘The Owl and the Pussy Cat’ also drew superlative pictures of birds» (Attenborough 2016, 9).

Como ilustrador científico de aves, e embora tenha ilustrado outras espécies, Lear é fundamentalmente conhecido pelas suas ilustrações de papagaios, tendo publicado, ainda antes de fazer vinte anos, entre 1830 e 1832, o primeiro livro inglês totalmente dedicado a uma só família de pássaros, Illustrations of the Family of Psittacidae, or Parrots (Peck, 15).[3] Este livro teve ainda mais impacto pelo facto de Lear ter optado por uma publicação de grande formato, que nunca tinha sido usado antes (Uglow, 49). De referir ainda que Lear pintou, sempre que possível, a partir de animais vivos, outra diferença em relação à ilustração científica da época:
 

The final touch of novelty was Lear’s insistence (…) in drawing from live birds whenever possible. At the zoo, he measured wingspan, length and legs (…). He shows their most striking, defining pose (…), he sketched them — perched on branches, preening, nodding and blinking at the artist before them — in countless rough drawings, surrounded by jotted notes. (Uglow 2017, 50)
 

Pintava ao vivo pássaros no zoo e também pertencentes a particulares (Levi, 39) e trabalhou igualmente para outros ilustradores, sendo o mais conhecido John Gould, ornitólogo, que se apropriou do trabalho de Lear, nos três livros em que este trabalhou (Noakes 1968, 38-39).[4] Segundo David Attenborough, Gould sempre menorizou a contribuição de Lear, não mencionando o seu nome no texto dos livros, indicando apenas as iniciais ou simplesmente omintido a sua participação (Attenborough 2012, s-p).

Durante uma parte dos anos 1830, Lear foi, pois, um prolífico ilustrador científico. As primeiras litografias coloridas eram pintadas à mão e Lear aprendeu a dividir e subdividir os seus desenhos de pássaros pena a pena, para que colorir fosse simples, sendo as suas ilustrações científicas muito realistas (Levi, 28).

Mais tarde, Lear vai juntar à ilustração científica outros modos de representação e expressão: foi pintor paisagista, viajando incansavelmente, escreveu inúmeras cartas, assim como diários de viagem ilustrados, e foi igualmente poeta e ilustrador dos seus próprios poemas, nomeadamente dos seus limericks, publicados pela primeira vez em 1846, em A Book of Nonsense, ano da saída de Illustrated Excursions in Italy, que agradou à rainha Vitória a ponto de esta contratar Lear para seu professor de desenho, havendo registo de doze lições dadas à rainha. Neste mesmo ano, lorde Derby incluiu ilustrações produzidas por Lear na sua casa de Knowsley no volume The Gleanings from the Menagerie at Knowsley Hall (Noakes 1968, 70-73).[5]

Entre 1830 e 1837, Lear trabalhou precisamente em Knowsley, para lorde Derby, detentor de um zoo privado, que o contratou para desenhar os seus animais. Lear passava, pois, grandes temporadas em Knowsley, tendo começado por se relacionar apenas profissionalmente com a família. Todavia, a situação mudou e o ilustrador deixou de fazer as refeições com os criados e foi recebido na mesa da família, quando lorde Derby se deu conta de que os netos já não lhe faziam tanta companhia como antigamente e quis saber porquê.
 

When he asked them why this was they told him that the young man in the steward’s room who had come to draw the animals was such good company that they were going down to visit him. If he is such good company, said Lord Derby, then the young man shall come and dine upstairs with us. (Noakes 1968, 42)
 

As crianças gostavam de estar com Lear, porque este os distraía com poemas e desenhos, os poemas e desenhos que viriam a fazer parte de A Book of Nonsense anos mais tarde. A génese deste livro, completamente constituído por limericks ilustrados, foi, deste modo, a diversão proporcionada às crianças da família de lorde Derby durante a sua permanência em Knowsley, como o autor recorda, muitos anos mais tarde, na introdução a um dos seus livros de nonsense:
 

Long years ago, in days when much of my time was passed in a country house, where children and mirth abounded, the lines beginning, “There was an old man of Tobago,” were suggested to me by a valued friend, as a form of verse lending itself to limitless variety for rhymes and pictures; and thenceforth the greater part of the original drawings and verses for the first “Book of Nonsense” were struck off with a pen, no assistance ever having been given me in any way but that of uproarious delight and welcome at the appearance of every new absurdity. (Lear 1871a, 143-144)


Nestes poemas, cuja forma é proveniente da tradição oral, e que Lear terá composto e ilustrado em simultâneo, os pássaros aparecem como tema recorrente, como afirma Robert Peck: «Birds appear regularly in Edward Lear’s limericks, perching on noses, nesting in beards, dancing quadrilles with humans who are sometimes punished by their avian affection» (Peck 2016, 16). Com efeito, nos limericks de Lear, a proximidade entre pessoas e pássaros acarreta, por vezes, consequências desagradáveis para aquelas: as aves usam o nariz como poleiro, fazem o ninho na barba, mordem o nariz ou fazem um barulho ensurdecedor.

Além das ilustrações dos limericks com pássaros, ou relacionadas com estes, Lear desenhou, por exemplo, uma coleção de pássaros coloridos em 1880 no Norte de Itália para ensinar cores a Charles Pirouet, uma criança que estava no mesmo hotel de Lear (Hyman, 84). Estes pássaros coloridos têm nomes divertidos, por vezes com designações com palavras inventadas, como «The scroobious bird» e «The runcible bird» (Lear 2013, s-p). E os pássaros surgem também nos numerosos alfabetos nonsense que criou e mesmo em algumas espécies botânicas inventadas, como o «Cokatooca Superba», uma planta cuja flor é um papagaio (Lear 2013, s-p), ou «Pollybirdia Singularis», uma planta que tem uma flor com pétalas que são pequenos papagaios (Bevis, 40).

Podemos afirmar que os anos dedicados à ilustração de aves se repercutiram nas ilustrações nonsense sempre que a temática são pássaros, e a publicação destas beneficiou igualmente dos conhecimentos de litografia adquiridos por Lear enquanto ilustrador científico, uma vez que os seus livros de poesia ilustrada foram impressos com esta técnica, ao invés do que acontecia com os livros ilustrados para crianças na sua época, impressos através da xilogravura (Heyman, 71-75).

A Book of Nonsense, além de ter sido inovador no que diz respeito à ilustração e à técnica de impressão, foi também uma novidade noutros aspetos: inaugurou um género, ostentando no título a sua designação, e o seu autor reivindica a «classificação» de nonsense puro e absoluto (Pereira 2007, 98-99), afastando-se da tradição da literatura infantil oitocentista, didática e moralizante. Embora não seja o «inventor» do limerick, pois este já existia antes na tradição oral, sem dúvida Lear muito contribuiu para a divulgação da forma que é considerada o soneto do nonsense (Tigges, 117-133), uma forma poética reconhecida enquanto forma fixa, pelo menos no contexto da cultura anglo-saxónica.

O limerick é um pequeno poema narrativo composto por cinco ou quatro versos, com o esquema rimático aabba e uma métrica específica (o primeiro, segundo e quinto verso devem ter três pés, o terceiro e o quarto, dois): nomeia inicialmente uma personagem (Young Person/Lady; Old Man/Person), identificada em seguida pela sua origem ou alguma característica específica. Na história contada, a personagem é caracterizada, é referida uma ação, e o último verso remata a narrativa, geralmente sendo usado um adjetivo para recaracterizar a personagem apresentada inicialmente ou um verbo que indica a consequência da ação realizada (Pereira 2007, 126-128).

A forma pode ser exemplificada com «There was an old man of Dunrose» (Lear 1871, 334) e «There was an Old Man on whose nose» (Lear 1846, 178), citados a seguir.
 

Lear 1.png

There was an old man of Dunrose;
A parrot seized hold of his nose.
When he grew melancholy, they said,“His name’s Polly,”
Which soothed that old man of Dunrose.

Lear 2.png

There was an Old Man on whose nose
Most birds of the air could repose;
But they all flew away at the closing of day,
Which relieved that Old Man and his nose.


No primeiro poema, o velho de Dunrose torna-se melancólico porque um papagaio lhe picou o nariz e o facto de se chamar Polly resolve a questão da melancolia da personagem, que se acalma devido a esse facto. No segundo, um homem com um longo nariz acolhe nele uma série de pássaros que ao fim do dia voam para longe, o que traz alívio para o homem e para o seu nariz. Considerados do ponto de vista das situações criadas, ambas com contornos nonsense, é evidente o nexo de causalidade no caso do segundo limerick, o alívio trazido pelo voo das aves, assim como no primeiro, que liga o nome do papagaio à reação da personagem, o que implica uma causalidade de outra ordem. Polly, como nome comum para papagaio,[6] acalma o homem de Dunrose pela banalidade, por ser apenas um papagaio, facto de algum modo contrariado pela ilustração, que apresenta um papagaio de grande dimensão, o que potencia o efeito de nonsense.

A ideia, no entanto, não é explicar os limericks através de nexos lógicos de causalidade, mas antes o modo como estes nexos são, muitas vezes, postos em causa através de sequências narrativas com base na rima, por um lado, ou apresentados como uma banalidade evidente, por outro, como no caso do papagaio que se chama Polly.

Os nexos de causalidade são, pois, geralmente mais rimáticos que factuais, verificando-se geralmente uma preponderância do som relativamente ao significado, argumento usado por Lisa Ede, que defende que o destino das personagens é traçado pela relação estabelecida entre a rima e o ritmo do poema (Ede, 52). Inegavelmente, «Dunrose» rima com «nose», que rima com «repose», e o mesmo argumento, usado para mostrar um procedimento que provoca um efeito de nonsense, é reforçado em muitos outros limericks de Lear.

Segundo T. S. Eliot, que reconhece a qualidade «musical» dos poemas, estas mininarrativas constituem uma paródia do sentido e não a ausência deste: «His non-sense is not vacuity of sense: it is a parody of sense, and that is the sense of it. (…) We enjoy the music, which is of a high order, and we enjoy the feeling of irresponsibility towards the sense.» (Eliot, 29-30).

O sentimento de irresponsabilidade relativamente ao sentido verifica-se, por exemplo, na ocorrência de repetições, tal como a repetição da mesma palavra em posição de rima no primeiro e último versos, que é uma das marcas dos limericks de Lear, conforme acontece nos poemas citados antes com «Dunrose» e «nose». Relativamente a este aspeto, George Orwell refere que
 

what is sometimes considered a weakness in his limericks—that is, the fact that the rhyme is the same in the first and last lines—is part of their charm. The very slight change increases the impression of ineffectuality, which might be spoiled if there were some striking surprise. (Orwell, 66)
 

Retomando a questão da paródia do sentido e a repetição de palavras, Mathew Bevis, baseando-se também no facto de Lear ter estado ligado à ilustração de papagaios, através de um jogo de palavras com «parody» e «parrot», afirma que, nos limericks de Lear, «The parodic is the parrotic—a repetition of words so as to catch meanings that common sense may hide.» (Bevis, 40). Ou seja, «parrotic» no sentido em que os papagaios repetem palavras, isto é, imitam sons, mas sem que estes sejam significativos em si.

Bevis refere-se à repetição de palavras, assim como Orwell, mas a questão da repetição como imitação «papagueadora» pode alargar-se a outros aspetos dos limericks de Lear, nomeadamente àqueles, tanto na narrativa como na ilustração, que revelam figuras humanas que se comportam ou se parecem com pássaros — ou seja, que os imitam, tal como as palavras e os sons se repetem nestes poemas. Tratar-se-ia, assim, de estabelecer uma equivalência entre a imitação fonética que a rima implica, ao reproduzir um mesmo som, e a imitação das aves na aparência e nas ações de figuras humanas.

Além disso, ao contrário do que acontece nalguns poemas mais longos, referidos antes, as aves raramente surgem antropomorfizadas nos limericks, ocorrendo, ao invés, uma transposição de qualidades de pássaro para as figuras humanas, como nos poemas a seguir citados: «There was an old person of Nice» (Lear 1871, 360), «There was an old man of Dumbree» (Lear 1871, 354), «There was an Old Man with an Owl» (Lear 1846, 176), «There was an old person of Crowle» (idem, 369) e «There was an old man of El Hums» (idem, 362). Nestes poemas, as pessoas são ilustradas como pássaros e/ou comportam-se como eles, sendo as aves a referência para as pessoas, e não o contrário, como acontece nas fábulas e em muitas histórias e poemas para crianças, em que as pessoas são a referência para os pássaros, que se comportam como elas.

Em todos estes poemas, a relação entre texto e ilustração é fundamental no que diz respeito ao efeito de nonsense produzido. Como acontece em «There was an Old Man on whose nose», não há uma ligação imediata entre texto e desenho, neste caso no que diz respeito ao exagero: no poema, o exagero é mencionado no que se refere à quantidade de aves que poderia pousar no nariz da personagem «on whose nose / Most birds of the air could repose», reproduzido na ilustração através da representação de um nariz desproporcionadamente longo. Algo equivalente acontece também em «There was an Old Man with a beard» (Lear 1861, 157): não é referido o tamanho da barba, mas a quantidade de aves que fizeram o ninho na barba da personagem. Potencia-se, assim, o efeito de nonsense relativo ao exagero através da representação pictórica da desproporção de uma das características físicas das personagens retratadas. Além disso, a posição do homem da barba, nomeadamente dos braços, sugere uma ave, tal como acontece em outros limericks.
 

Lear 3.png

There was an Old Man with a beard,
Who said,“It is just as I feared!—
Two Owls and a Hen, four Larks and a Wren,
Have all built their nests in my beard.”


Nos limericks citados a seguir, todas as personagens surgem na companhia de aves e, embora nada seja mencionado sobre a sua aparência, são representadas nas ilustrações com a configuração de aves, mimetizando a espécie com que estão em contacto, como é o caso de «There was an old person of Nice», topónimo que rima com «Geese», a que o protagonista se associa para passear.

Lear 4.png

There was an old person of Nice,
Whose associates were usually Geese.
They walked out together, in all sorts of weather.
That affable person of Nice!
 

Do mesmo modo, em «There was an Old Man of Dumbree», o velho que observa professoralmente a fila de mochos empoleirada numa espécie de cerca é representado de maneira a replicar a aparência das aves. Na ilustração assiste-se a uma duplicação: o homem, imagem especular dos mochos, é imitado por estes na realização de uma ação humana, pois todos seguram uma chávena de chá. O limerick informa tratar-se de uma cena de instrução que implica um fundamento moral, uma vez que a ação natural dos mochos, alimentar-se de ratos, é imprópria e deve ser substituída pela ação civilizada de beber chá (Pereira 2007, 111). Se, por um lado, o fundamento moral é irónico, ao aplicar critérios humanos ao comportamento dos mochos, por outro o homem de Dumbree parece ter conseguido o seu intento, na medida em que a ilustração mostra uma aprendizagem bem sucedida, com cada mocho a segurar uma chávena de chá.

Lear 5.png

There was an old man of Dumbree,
Who taught little owls to drink tea;
For he said,“To eat mice is not proper or nice,”
That amiable man of Dumbree.


A questão da imitação de ações humanas coloca-se neste limerick, mas, apesar da ideia veiculada no poema, a ilustração revela que a figura humana mimetiza a aparência dos mochos, o mesmo acontecendo em «There was an Old Man with an Owl», em que homem e mocho parecem réplica um do outro, não havendo, no entanto, qualquer tentativa de instrução civilizadora, mas apenas a ação de beber cerveja. Sem a ilustração, não é claro a qual das personagens se refere o pronome usado no terceiro verso, ou seja, quem bebe a cerveja, incerteza potenciada pelo facto de ambos sentirem os efeitos da bebida.

Lear 6.png

There was an Old Man with an Owl,
Who continued to bother and howl;
He sat on a rail, and imbibed bitter ale,
Which refreshed that Old Man and his Owl.


Os mochos de «There was an old person of Crowle», tal como o mocho do limerick citado antes, são barulhentos e incomodam as figuras humanas. O mimetismo do homem de Crowle vai mais longe, pois, além de lhe ser atribuída a aparência de mocho, narrativa e ilustração colocam-no num ninho, juntamente com oito mochos, e emitindo os mesmos sons que estes.

Lear 7.png

There was an old person of Crowle,
Who lived in the nest of an owl;
When they screamed in the nest, he screamed out with the rest,
That depressing old person of Crowle.
 

As representações de figuras humanas na companhia de aves barulhentas representadas nos dois últimos limericks podem constituir uma reminiscência da atividade de Lear como ilustrador científico, sobretudo nos anos que frequentou o zoo para desenhar papagaios e tinha de suportar o barulho destas aves. O incómodo do barulho vinha acompanhado do desconforto de estar dentro do recinto fechado das aves e igualmente por ser um observador observado pelos visitantes do zoo, como refere Susan Hyman:
 

Lear often worked in the Parrot House at the Zoological Gardens. (…) The massive biped in the elegant aviary soon became a popular exhibit himself. Trapped between squawking birds and gawking crowds, Lear, who had a low tolerance for noise, persevered with his pencil sketches and detailed colour notes. In some of these the encaged artist expressed his irritation by including unflattering portraits of the more intrusive members of the audience. (Hyman, 20)
 

Em «There was an old man of El Hums», o topónimo que rima com «crumbs» é alimento de pássaros e também de um «pássaro humano». Neste limerick assume-se totalmente a identificação entre homem e pássaros, pois aquele é englobado no grupo destes. Ele come as migalhas do chão como os outros pássaros ao redor, o que o torna um dos pássaros. O homem é (como) um pássaro, uma vez que a ilustração o configura como ave e o mostra a praticar uma ação de pássaro; o poema, além disso, engloba-o no grupo da espécie.

Lear 8.png

There was an old man of El Hums,
Who lived upon nothing but crumbs,
Which he picked off the ground, with the other birds round,
In the roads and the lanes of El Hums.


Todas as ações praticadas pelas figuras humanas dos últimos poemas citados imitam ou replicam comportamentos típicos dos pássaros que se prefiguram na mesma história e são apresentados como ações banais, apesar da sua evidente desadequação se os termos de comparação, forem, naturalmente, ações normalmente praticadas por pessoas. Contudo, na narrativa criada nos poemas e ilustrações, o termo de comparação são pássaros, situação diferente da que ocorre em «There was an Old Man of Dunblane» (Lear 1871, 362). Neste limerick, o protagonista surge perante três figuras humanas e a história contada implica a rejeição deste homem demasiado parecido com um pássaro.

Lear 9.png

There was an Old Man of Dunblane,
Who greatly resembled a Crane;
But they said,—“Is it wrong, since your legs are so long,
To request you won’t stay in Dunblane?”


As três figuras humanas representadas à esquerda na ilustração correspondem a «they», personagem coletiva frequente noutros limericks de Lear, mas que surge apenas neste limerick do conjunto citado. Muitos críticos consideram «they» enquanto «os outros», como representantes da opinião pública ou do senso comum, que não admitem a diferença de comportamento ou de aparência dos protagonistas destes poemas (Pereira 2007, 140).

De referir ainda que o elemento do grupo referido como «they», representado à direita, tem igualmente algumas semelhanças com um pássaro, o que parece eludir o motivo da pretendida expulsão do velho de Dunblane: não pelo facto de se parecer com um grou, mas por ter as pernas demasiado longas, ou seja, por exibir uma deformidade. De acordo com James Williams, «Among the fool’s historical and cultural archetypes, the bird-man is a figure who bridges his deformity (the fool as a hunchback or a dwarf, for example) and his sanctity (his innocent singing and aspiration to fly towards God).» (Williams, 38). Assim, como figura que representa o louco enquanto alguém que exibe uma deformidade, é visto como um outro ameaçador e de grandes dimensões, o que implica a sua expulsão.

Com uma aparência de ave menos imediata, a protagonista de «There was a Young Lady of Portugal» (Lear 1846, 163) é apresentada em cima de uma árvore a observar o mar. Este limerick pode ser lido estabelecendo nexos de causalidade lógicos entre a origem da personagem, a ilustração e parte das ações da protagonista. Na verdade, «nautical» decorre de Portugal, não apenas de um ponto de vista rimático, mas igualmente no que diz respeito a uma possível ligação à história de Portugal, no caso o período dos Descobrimentos (Pereira 2007, 118). Desenhada com a configuração de um pássaro, a jovem portuguesa é mostrada também com um comportamento de pássaro: em vez de usar corretamente o telescópio para observar o mar, observa os peixes como qualquer ave marinha faria.

Lear 10.png

There was a Young Lady of Portugal,
Whose ideas were excessively nautical;
She climbed up a tree to examine the sea,
But declared she would never leave Portugal.
 

No limerick sobre o homem que lê Homero, «There was an old Person of Cromer» (Lear 1846, 169), ler “Homer” decorre de a personagem ter origem em Cromer, topónimo que rima com o nome do autor clássico em inglês. O homem surge representado na ilustração como uma ave que poderia ser um flamingo, tanto pela perna dobrada, como pela configuração do nariz e do casaco lembrando uma cauda. Embora a perna dobrada não seja a mesma, pode estabelecer-se uma comparação entre esta personagem e o flamingo que Lear desenhou para John Gould em The Birds of Europe (Hymes 1980, 53).[7] No limerick joga-se com a literalidade de concluir a leitura de um livro e a metáfora de concluir para morrer, que é o remate da narrativa contada. E a aparência é enganadora: homens com a aparência de pássaros, mesmo os que leem Homero, não saem ilesos de um salto para um penhasco, como aconteceria com uma ave voadora.

Lear 11.png

There was an old Person of Cromer,
Who stood on one leg to read Homer;
When he found he grew stiff, he jumped over the cliff,
Which concluded that Person of Cromer.
 

A irracionalidade do homem de Cromer, ao saltar do penhasco, tal como a irracionalidade de muitos dos protagonistas dos limericks, nos casos citados antes, devido à sua associação com aves, é geradora de efeitos de nonsense, ao criar situações impossíveis, potenciadas pelas ilustrações e decorrentes da forma poética usada, bem como do encontro rimático entre palavras e ações. E esta irracionalidade das personagens e situações criadas muito agradou às crianças da família de lorde Derby, para quem Lear criou os primeiros limericks, como refere Jenny Uglow: «In nursery, designed to mould into rational shape, nonsense was a dance of unreason, showing strait-laced grown-ups dancing gigs, sleeping on tables, falling down vulcanoes, climbing up trees» (Uglow 2017, 96).

Em A Book of Nonsense, e nos livros seguintes de limericks e outras formas de nonsense, encontramos uma abordagem da literatura pensada para crianças contrária à estabelecida na época de Lear. Nos pequenos poemas ilustrados, não se veicula qualquer moral através de fábulas em que animais se comportam como pessoas, mas exatamente o oposto: são as personagens humanas que tomam a forma e as atitudes de animais, nomeadamente de pássaros.

A propósito do sucesso dos livros de Lear entre as crianças da sua época, Vivien Noakes refere que, além da vitalidade dos desenhos, a ausência de moralidade das histórias contadas nos limericks constitui a razão do seu sucesso entre os mais novos: «Unlike the virtuous heroes of the moral tales they are on the children’s side, for Lear still remembered how he felt as a child: he wanted to make them happy—society would make its best to make them good» (Noakes 1968, 69).

E Lear talvez se visse, por vezes, como uma personagem dos seus limericks: autorrepresentou-se como pássaro na sua abundante correspondência e caracterizou-se mesmo como um pássaro estranho. Num dos seus diários dos anos 1860, escreveu: «Verily I am a very odd bird.» (Noakes 1991, 22); e nalgumas cartas desenha-se em forma de ave. Numa carta para Nora Decie de 3 de abril de 1864 (Lear 1988, 196), desenha-se como pato, nadando na companhia de patos, à semelhança do homem de Nice, que andava com gansos, e numa carta enviada de Corfu para Evelyn Baring, em janeiro de 1864 (Lear 1988, 191), representa-se como uma gorda ave voadora.
 

Em janeiro de 1871, numa carta enviada de San Remo para David Richard Morier, diz-lhe «I’m going to buy a Parrot, to walk on my terrace with» (Lear 1988, 229) e inclui uma ilustração de si mesmo abraçado a um papagaio. E em 25 de dezembro do mesmo ano, numa carta para Chichester Fortescue e Lady Waldegrave, desenha-se num ninho com uma ave, como o homem de Crowle, e diz-lhes que


My elth is tolerable, but I am 60 next May, & feel growing old. Going up & down stairs worries me, & I think of marrying some domestic henbird & then of building a nest in one of my olive trees, whence I should only descend at remote intervals during the rest of my life. This is an orfle letter of stupidity – but there is no help for it. (Lear 1988, 236)

«This is an orfle letter of stupidity—but there is no help for it» é o fim da carta citada, antes da despedida e assinatura. Lear afirma uma inevitabilidade, a sua persistente ligação aos pássaros. E o nonsense que envolve o modo como se autorrepresenta e como representa personagens nos seus limericks, em narrativas fechadas em si próprias, sem escapatória possível, é outra das suas marcas inevitáveis. A natureza absurda do seu nonsense «thrives on being encapsulated within the strict formal structure of the limerick.» (Lord 1984, xv). Limericks onde pessoas e pássaros «voam» dentro dos limites da forma poética como os pássaros engaiolados no zoo que Lear observava para as suas ilustrações científicas e que o autor viria a abandonar totalmente, preferindo a liberdade das viagens e da representação de paisagens naturais. O constrangimento da forma poética fixa torna-se mesmo uma vantagem, uma vez que permite concentrar o efeito de nonsense destas micronarrativas onde coexistem pessoas e pássaros.

 

 

[1] «Ao voo do pássaro», traduzido à letra de «à vol d’oiseau», é tomado de empréstimo do título Lisboa ao voo do pássaro de Mário-Henrique Leiria.

[2] Embora este seja o número geralmente referido pelos biógrafos de Lear, na sua mais recente biografia, Jenny Uglow mostra que ter sido o vigésimo de vinte e um filhos não é necessariamente correto. Poderão ter sido vinte e um, mas não sobreviveram todos e os nomes foram-se repetindo: “The babies came year after year, and names were used and reused until one survived, a litany of hope. Thus, Ann, Sarah, Sarah, Sarah, Henry, Henry, Eleanor, Jane, Harriet, Cordelia, Frederick, Florence, Charles, Catherine, Edward, Catherine. Different lists are confused as to whether there were seventeen, nineteen or twenty one babies (as Lear often claimed).” (Uglow 2017, 10).

[3] Algumas ilustrações de Illustrations of the family of Psittacidae, or Parrots podem ser vistas aqui:  http://bibliodyssey.blogspot.co.uk/2008/11/parrots.html

[4] A century of birds from the Himalayan Mountains, A monograph of the ramphastidae or Toucans e Birds of Europe são os títulos dos três livros que Gould publicou com ilustrações de Lear (Noakes 1968, 38-39).

[5] No catálogo da exposição Happy Birthday Edward Lear, 200 Years of Nature and Nonsense podem ver-se exemplos diferentes da arte de Edward Lear http://www.ashmus.org/assets/docs/Exhibitions/AshmoleanPressImagesEdwardLear.pdf

[6] Polly é um nome comum para papagaio na época de Lear, que usou o nome como sinónimo de papagaio em “The adventures of Mr Lear & the Polly [& the] Pusseybite”, assim como mais recentemente. Veja-se, por exemplo, o papagaio chamado Polly no sketch “The dead parrot” do episódio 8 da primeira temporada do Monty Python’s Flying Circus.

[7] A ilustração pode ser vista no catálogo referido na nota anterior.

 

Bibliografia

Attenborough, David. «Foreword». In The natural history of Edward Lear, 7-11. Suffolk: ACC Art Books, 2016.

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