Quando, numa conversa, aparece o nome de alguém de quem não se ouve falar há muito tempo, é costume perguntar se está vivo. Se apesar de nos dizerem que sim, está vivo, quisermos confirmar que se trata da mesma pessoa em que estávamos a pensar, experimentamos descrever uma característica, lembrar uma ligação familiar ou contar um episódio pelo qual o nome até nos soa. De Tonya Harding ficou a dúvida sobre um episódio: «Não foi aquela que partiu a perna à rival?» E assim se é recordado em conversas de circunstância anos depois do sucedido: de forma injusta e pouco rigorosa. Ter sido a primeira mulher a fazer um triplo Axel nos campeonatos do mundo de patinagem artística não é o que nos vem logo à cabeça. Não é do feito que nos lembramos, mas do «defeito».

Comecemos pelo feito. Um Axel triplo é um salto de dificuldade extrema na patinagem artística que começa com o atleta virado de frente, e que parece requerer a temeridade de que padecem aqueles que todos os anos no Red Bull Cliff Diving mergulham de um rochedo escarpado nos Açores ou que surfam ondas com mais de 30 metros na Praia do Norte. Porém, no caso de um atleta de alta competição, como Simone Biles, que num momento está parada com os pés muito juntos em cima de uma trave com dez centímetros de largura, a um metro e vinte e cinco centímetros do chão, e no momento seguinte faz um salto de frente no ar com meia pirueta, não é correcto nem justo falarmos de temeridade, mas de coragem.   

Tanto os mergulhadores da Red Bull como os surfistas da Nazaré treinam para concorrer em competições (no caso dos mergulhos há uma avaliação), mas também em ambos os casos existe um elemento de perigo de vida a ter em conta. O fim, nos dois casos, é o de sobreviver à grande onda ou ao mergulho naquele local estreito. Fazê-lo em grande estilo é o que lhe dá «a aparência de coragem», como refere Aristóteles.[1] A distinção é importante porque não há nenhum valor em escapar à morte quando se cai de uma onda mal surfada. Podemos simplesmente perguntar, «mas para que é que se meteu nisto?». Há uma excitação de enfrentar o perigo que se confunde com coragem.[2] Mas não há coragem quando o fim é escapar à morte numa competição de mergulho num penhasco.

Para fazer um Axel triplo há que ter muita força física para iniciar o salto de frente, projectando-se no ar, aí aguentar durante a eternidade que demora a dar três piruetas e por fim aterrar com o pé direito no chão carregando o peso não sei quantas vezes superior àquele com o qual descolou. Tudo em cima de patins com lâminas que deslizam no gelo. A aterragem dos saltos na patinagem é um momento tão delicado que, em inglês, se diz que «Tonya landed a triple Axel», por ter conseguido realizar o salto sem falhas. Não é que tenha «saltado», mas que «aterrou» sem cair desamparada na arena, com o orgulho ferido, os olhares de desilusão nas costas e — o pior de tudo — a pena de todos os que a viram cair sem ter a oportunidade de repetir, desta vez bem. O risco está em deitar a perder em escassos segundos de competição uma vida inteira de dedicação, repetição e esforço. Cair na trave depois de uma rotação, cair num salto fácil, depois de ter aterrado em beleza de um Axel triplo, são coisas que não matam mas moem.

Na história turbulenta de Tonya Harding, o fracasso desempenha um papel tão ou mais importante do que a primeira apresentação perfeita em 1991, nos campeonatos nacionais de patinagem artística. Um mês depois desse momento alto ao som do tema do filme Batman, Tonya falha a medalha de ouro no Campeonato do Mundo, ao som de «People Are Still Having Sex», e acaba por ficar em segundo, porque cai no final da sua apresentação, num salto mais fácil, depois de ter repetido um Axel triplo perfeito. Em 1992, fica em quarto lugar nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Albertville, atrás de Nancy Kerrigan, que ocupa orgulhosamente o terceiro lugar no pódio. Em 1993, Tonya não consegue a classificação para participar no campeonato do mundo, e em 1994, nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Lillehammer, na Noruega, é o desastre total. Tonya não entra quando é chamada, chora porque os atacadores do patim não estão bem, nada está bem, problemas com o equipamento, técnicos, vários, sempre os vestidos foleiros feitos pela mãe, interrompe a apresentação, queixa-se aos juízes, olhem para isto, se alguma vez há condições para ser perfeita outra vez?

É raro termos a oportunidade de ver uma atleta que conseguiu um feito tão extraordinário a apontar defeitos à sua conquista. Numa entrevista em 1993, antes do episódio da perna partida da rival, Tonya critica o seu feito, menoriza-o. Faz questão de detalhar as imperfeições naquilo que nenhuma americana antes dela conseguira fazer: o início do salto é fraco, os braços estão demasiado afastados, as pernas não sei o quê. Parece que não sabe o que fez e comporta-se como se tivesse ganho a lotaria, um dia de sorte; como se nada do que conseguiu lhe pertencesse, como se não tivesse dedicado a vida inteira para chegar ali, sobretudo como se não merecesse continuar no que se esperava ser uma cadeia de sucessos. Continuar seria afinal de contas interromper uma vida marcada pelo abuso e pela violência, primeiro por uma mãe manipuladora, depois pela reincidência num casamento com um homem controlador e violento. Abusando de Freud, diria que Tonya matou a mãe (e a mãe com quem casou) quando fez aquele Axel triplo. Mas não se pode matar a mãe e arrepender-se logo a seguir. Alguém num documentário sobre Tonya Harding referiu que aquele momento poderia ter sido um final feliz. E prematuro, acrescento. Tonya tinha 21 anos. Poderia ter sido um início de uma vida completamente diferente.

Passemos, então, ao que definimos com ligeireza por «defeito». Não é certo que Tonya Harding tenha partido a perna à rival Nancy Kerrigan, em 1994, na Cobo Arena, em Detroit, enquanto treinava para as provas nacionais, das quais sairia a representante americana nos Jogos Olímpicos de Inverno que se realizariam nesse mesmo ano em Lillehammer, na Noruega. Ficou provado em tribunal que o ex-marido de Tonya, Jeff Gillooly, juntamente com o segurança, Shawn Eckhardt, e um condutor contratado para a fuga, Shane Stant, conspiraram para atacar Kerrigan com um bastão no joelho, afastando-a da competição nacional. Tonya nega na altura ter conhecimento do plano, mas declara-se culpada num acordo que prevê uma pena de três anos de pena suspensa, serviço comunitário e uma multa de 100 mil dólares. 

Quinze anos mais tarde, numa cena do filme I, Tonya, produzido pela actriz Margot Robbie, que é também uma Tonya tão vulnerável quanto agressiva, dramática nas suas actuações, dentro e fora do gelo, Jeff e Shawn conversam sobre o que tencionam fazer a Kerrigan. Tonya, que afirmara que não tinha conhecimento de nada, admitiu numa entrevista em Janeiro deste ano, pouco depois de o filme estrear, que ouviu uma conversa em que Jeff e Shawn diziam que não era má ideia «alguém ser afastado» para Harding ser classificada. Outra cena no filme coloca Tonya com um bastão na mão a atacar Kerrigan, e outra ainda mostra Tonya a dizer de cigarro na boca que seria impensável fazer isso a uma amiga. Tonya vinha de baixo, era asmática e fumava cigarros, gostava de carros e tivera uma infância difícil. Kerrigan não vinha de cima, mas era bonita, elegante, pertencia a um meio em que todas as raparigas eram assim.

Tonya teria os mesmos motivos que qualquer grande atleta para querer afastar os rivais mais directos da competição. A juntar à tensão própria da competição individual, Tonya tem uma mãe que lhe repete diariamente que nunca será nada na vida. E é a mesma mãe abusadora que leva Tonya pela mão e a entrega a uma treinadora de patinagem, Diane Rawlinson, aos quatro anos. Porque não optar pelo caminho mais fácil? Tonya venceu a medalha de ouro em Detroit nesse ano em que Kerrigan foi atacada, mas ficaria em oitavo lugar nos Jogos Olímpicos, a ver novamente Kerrigan no pódio a receber a medalha de prata.

De acordo com testemunhas dos treinos, Tonya Harding conseguia muitas vezes saltar o Axel triplo sem se espalhar ao comprido. Uma mistura de concentração, força, memória muscular e automatização pode explicar o fenómeno, embora não sejamos ingénuos ao ponto de acreditar que existe uma receita para realizar um feito. Há, porém, um ingrediente comum, tanto para o sucesso como para os fracassos repetidos depois, sendo o falhanço uma punição auto-infligida por ter contrariado a má opinião daquela que lhe deu vida e a iniciou na patinagem.

A Associação de Patinagem dos Estados Unidos não teve dúvidas em retirar-lhe a medalha de ouro nos campeonatos nacionais em 1994 e em bani-la das competições patrocinadas pela Associação, quer como atleta quer como treinadora. Tonya tentou sobreviver. Foi uma pugilista medíocre em 2003 e 2004. Em 2017, ficou em terceiro no concurso televisivo Dancing with the Stars.

Tonya foi reanimada por Margot Robbie, que nos lembrou a sua história. Não era aquela que partiu a perna à rival.

[1] Cf. Ética a Nicómaco, III, 8.

[2] Cf. Ética a Nicómaco, III, 8.10.

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