O Orto do Esposo foi escrito na transição do século XIV para o XV em ambiente monástico, provavelmente no Mosteiro de Alcobaça. Na época em que foi escrito, os textos circulavam pelos reinos europeus utilizando o latim como língua franca e, sobretudo em ambiente monástico, os autores não faziam questão de ver o seu nome no incipit das obras que compunham. Escrevia-se frequentemente com objectivos modestos e sempre a pedido de outrem e para benefício de outrem, a fim de evitar o orgulho intelectual. Pelo menos era assim que se apresentava a motivação para a escrita em paratextos, sem que possamos hoje ajuizar a sinceridade de tais declarações. No prólogo, o autor do Orto do Esposo afirma que escreve a pedido de uma sua irmã e companheira «da casa duinal e hũanal», a qual desejava um livro de histórias para ocupar os seus tempos de lazer. Receberá mais do que isso: as histórias lá estão, mas são exempla, entretecidas num discurso filosófico-didáctico. Para isto, o monge recorreu a grande quantidade de fontes, que seleccionou, recortou, coseu e ajeitou para que se moldassem aos seus propósitos.
O editor crítico do texto, Bertil Maler, identificou as fontes de muitos dos exempla mas nalguns casos não foi bem sucedido. Assim aconteceu com o exemplum do rei da Hungria que edita nas pp. 279-282 do 2º volume da sua edição. Parte da narrativa (até à morte dos pais do jovem rei) encontra-se nos Gesta Romanorum (Oesterley 1872, cap. 244, 641-645), colecção de exempla, anónima, composta provavelmente no séc. XIV em ambiente franciscano anglo-alemão. Foi esta a fonte identificada por Maler mas não foi certamente a fonte usada pelo autor do Orto, porque na obra portuguesa encontramos a história completa e com certos detalhes textuais que não se encontram naquela compilação. Trata-se da Vida de Santo Albano da Hungria, santo fictício, criado por autor desconhecido, não anterior ao séc. XIII, cuja legenda se difundiu em Itália, entre a cúria papal e Monte-Cassino, e em França, sobretudo em ambiente cisterciense. O texto foi atribuído ao monge Transmundo mas S. J. Heathcote (Heathcote 1965, 67, 78, 79, 235-236) defende, com bons argumentos, que foi acrescentado, com vários outros, numa versão da obra do monge cisterciense da segunda metade do séc. XIII, posterior à sua morte.[1]
A história parte de um tema que poderíamos considerar impróprio para os ouvidos da irmã a quem se dirige o Orto do Esposo: o tema do incesto. Porém, no tempo do Orto, o Concílio de Trento não tinha ainda imposto o decoro nas artes nem mandado que, nas representações dos santos, se evitasse toda a lascívia, se proibisse a formusura dissoluta, se não desse a ver nada desordenado, transtornado, posto em confusão, profano ou desonesto (O Sacrosanto, e Ecumenico Concilio de Trento 1781, II, 353-354). A lascívia podia, portanto, ser representada, desde que com didácticos propósitos. No séc. XIII, o tema do incesto não era estranho à literatura europeia: a lenda de Édipo divulgava-se tanto em narrativas populares (Constans 1880, 104-110) como em obras literárias de matéria clássica como o Romance de Tebas (Constans 1880, 131-374; Constans 1890, 2, xxiv-xxv). O tema era apreciado ao ponto de ser usado para compor vidas de santos ou de personagens correlatas. Fazem parte deste corpus hagiográfico edipiano a lenda de Judas,[2] amplamente divulgada, a partir do último quartel do séc. XIII, através da Vida de S. Matias que Jacopo de Varazze incluiu na sua Legenda Aurea (Varazze 2000, I, 277-284), mas de formação anterior. S. Matias foi escolhido pelos apóstolos para substituir Judas depois do seu enforcamento e assim se propicia a interpolação na Vida daquele de uma narrativa sobre um anti-herói, cujo funesto destino esteve sempre previsto, começando por ser abandonado pelos pais para escapar à profecia que o condenava a matar o pai e casar com a mãe, o que vem a fazer sem de tal ter conhecimento. Ao mesmo corpus pertencem as legendas edipianas de S. Gregório[3] e de S. Julião Hospitalário,[4] esta última divulgada também por Jacopo de Varazze (Varazze 2000, I, 212-214). Ambos continuaram a alimentar a literatura, pelas mãos de Thomas Mann (The Holy Sinner, 1951) e de Gustave Flaubert (Saint Julien l'Hospitalier, 1877). Santo Albano da Hungria faz parte desta cadeia de histórias, desenvolvidas em França ao longo do séc. XIII.
A acção decorre entre um reino sem nome que fica nas «partes do aguiam», ou seja, indefinidamente no Norte, e que confina com o reino da Hungria. A narrativa do Orto abrevia o texto latino (Catalogus codicum hagiographicorum 1889, 444-56) e o protagonista não tem nome próprio, sendo apenas o infante, o mancebo. A acção apresenta-se em duas macro-sequências: a mais extensa, nitidamente trágica e edipiana, deriva do tema inicial do incesto («Este enperador tiinha hũa sua filha e pagou-se della de maao amor e ouue della hũũ filho») e termina com a reparação definitiva do mal praticado e a dedicação do protagonista à vida eremítica («e leixarõ-no ẽno apartamẽto do hermo e elle ficou ledo»). A segunda remata a primeira com sintagmas indispensáveis numa narrativa hagiográfica: a morte e a glorificação. Temos, assim, uma história em dois andamentos: um trágico e edipiano, onde predominam as peripécias, e outro, estritamente hagiográfico, que justifica a santidade da personagem.
A iteração estrutura a narrativa: são três incestos. Primeiro o pai enamora-se da filha, que dá à luz um menino. Para esconder este mau feito, os dois entregam a criança a servidores para que a exponham fora do reino. Os servidores abandonam o menino numa estrada, na Hungria, e aí é encontrado por viajantes que, vendo a sua beleza e a forma como estava vestido, decidem entregá-lo ao rei. O rei húngaro não podia ter filhos e criou a criança como sua. Mais tarde casou-o com a filha do rei seu vizinho, isto é, com a própria mãe do jovem. São dois reis: o primeiro comete o pior pecado possível e gera um filho indesejado; o segundo cria como desejado um filho que não gerou. Mas o mal não é reparado, antes gera um novo mal, um segundo incesto. O primeiro incesto é culposo porque ao rei não faltava idade nem discernimento. Embora soubesse o que fazia, a filha não tinha autonomia para evitar o pecado. É, portanto, uma vítima da concupiscência do pai. O segundo incesto não é culposo, porque nenhum dos dois envolvidos conhecia o grau de parentesco que os unia.
O pai adoptivo, no seu leito de morte, conta ao infante o segredo da sua adopção e manda mostrar-lhe o manto e a bolsa que trazia, os quais ele mostra por sua vez à esposa, enquanto, desgostoso, lhe conta o que acabou de saber. Esse é o momento terrível da anagnórise. Morto o pai adoptivo, o jovem deve suceder-lhe no trono mas, em vez disso, viaja com a mãe/esposa para o seu reino de origem e ambos convencem o pai da necessidade de fazer penitência.
Entram em cena duas personagens religiosas. Os três pecadores procuram um bispo para que lhes atribua a penitência necessária mas o bispo manda-os procurar um eremita na floresta e obedecer às suas instruções. O eremita manda-os fazer sete anos de penitência, vivendo cada um por si na floresta. Ao fim desses sete anos, os três penitentes reencontram-se para se dirigirem juntos à cabana do eremita. Porém, perdem-se no caminho e são surpreendidos pela noite.[5] O filho, solícito, prepara com folhas e ramos camas onde os pais passem a noite e ele sobe a uma árvore «pera os uellar e guardar». E, inesperadamente, quando a remissão do pecado já tinha sido alcançada, eis que «esquẽẽtou-se a cama da maa deleitaçom ẽnos uelhos» e voltaram a cometer o incesto inicial. O terceiro incesto é o pior, porque é culposo da parte de ambos, já que agora a filha é uma mulher madura e o seu estatuto não a subordina ao pai, pois os três estão nivelados pela condição de penitentes. A reincidência é sempre agravante. Além disso, a consciência do mal, depois da penitência, é maior, porque esta constitui uma experiência de proximidade com Deus, tornando indesculpável o acto praticado. Do cimo da árvore, o filho ouve e entende o que os pais estão a fazer. Édipo mata Laio num momento de ausência de consciência, «arrebatado pela ira» (Sófocles 1995, 107, vv. 805-806). O jovem penitente mata os seus próprios pais «cõ zeo da uj̃gança de deus». O duplo crime, de parricídio e de matricídio, é atribuído a zelo de Deus, o que evoca a questão da legitimidade da ira, tal como Lactâncio a colocou no De Ira Dei, defendendo que a ira de Deus perante o mal é correlativa do seu amor pelo bem e, assim, ao homem justo, que ama o bem e odeia o mal, é legítima a ira para castigar o pecador, mesmo com extrema violência («malum vero maledictis, verberibus, nuditate, fame, siti, compedibus punit», Migne 1844, 7, 91). Ainda assim, Lactâncio não contesta que a ira, como dizem os estóicos, é uma comoção e uma perturbação da mente («Ira enim, commotionem mentis esse ac perturbationem...», Migne 1844, 7, 89). A momentânea perda de racionalidade, ao contrário do que sucede com Édipo na morte de Laio, é devida ao amor pelo bem e deveria ilibar o jovem deste crime, porém ele mesmo logo em seguida «esteue alongado delles toda a noyte fazendo grande planto» e no outro dia de manhã chegou ao ermitão «muy triste e cõ grande coyta», o que mostra que tinha consciência de que o acto que praticara era um mal em si mesmo. Assim, nem o desconhecimento do incesto o dispensou da primeira penitência nem o zelo de Deus o dispensará da segunda: seguindo as instruções do eremita, passará outros sete anos de vida ascética na floresta.
Temos, assim, três pecadores e três incestos. Mas, por enquanto, apenas duas penitências.
Findos mais sete anos, o mancebo regressa a casa do eremita. Chamado o bispo, o jovem é informado de que pode regressar ao seu reino e regê-lo em paz. Mas ele exige saber primeiro se o seu pecado foi perdoado por Deus. O eremita põe então o seu cajado sobre a sepultura dos pais do jovem e diz-lhe, a ele e ao bispo: «Qualquer de uos que me trouuer aquelle cajado, sayba que he liure do ẽcarrgo de seus peccados». O bispo tentou tirar o cajado e não conseguiu, o jovem trouxe-o facilmente. O bispo já antes reconhecera a superioridade espiritual do eremita, que aqui é confirmada. Tal superioridade é de esperar em textos nascidos em ambiente monástico, onde a vida secular, dos bispos e do seu clero, não goza do prestígio da vida ascética, a única que pode colocar o Homem em verdadeira comunhão com Deus. Está assim bem estabelecida a hierarquia da autoridade espiritual: Deus, o único que pode perdoar, o eremita, cuja virtude lhe concede o estatuto de intermediário e só depois o bispo, que não consegue desligar-se totalmente das tentações do mundo. Nesta revelação da sentença divina através do cajado que só pode ser movido por um eleito não podemos deixar de ver um cruzamento da justiça ordálica com a espada na pedra com que Robert de Boron, no Merlim, atribuiu a Artur a sua legitimidade real. Os textos procuram os seus fios em várias teias.
O leitor pode prever então o que se seguirá, já que Deus manifestou a eleição do jovem infante e o declarou sem pecado: já não se trata de um homem como os outros mas de um santo. A sua escolha é esperada: «E entõ o bispo e o hirmitã quiseram que se tornase a seu senhorio, mas elle disse: Sabede por certo que eu ey tan grande desejo do regno celestrial, que desprezo os regnos terreaes e faço-me morador deste hermo ẽ toda minha vida». Esta é a terceira penitência. Tal como o assassínio é um mal em si mesmo, também a penitência é um bem em si mesma e não é necessariamente expiatória.[6] A penitência é uma experiência anagógica, dá a conhecer a verdade sobre a natureza dos dois reinos, porque ela é, em si mesma, a antecâmara do reino celestial. O jovem rei, ao contrário dos seus pais, adquiriu a sabedoria que ela proporciona. Por isso é que, mesmo não sendo culpado do seu incesto e mesmo matando com zelo de Deus, é conduzido a penitências cuja completude enquanto experiência sobre a verdade fica patente no simbolismo da duplicação do número sete, o número da criação. As duas primeiras penitências são as da aprendizagem, a terceira é a da liberdade, a do exercício do livre arbítrio, de quem escolhe conscientemente o melhor caminho, sabendo finalmente o que faz.
As duas últimas sequências da narrativa atribuem ao santo uma morte martirial, colocando-o no podium da santidade: pela vida ascética seria confessor, pelo martírio alcança a perfeição da sequela Dei. Sofre, porém, um martírio que não cumpre os requisitos tradicionais: é assaltado e morto por malfeitores que lhe roubam os três pães de orjo que o eremita lhe dera para se alimentar na floresta. O motivo da morte é, aparentemente, fútil e não resulta da defesa da verdade cristã contra os seus opositores. Tampouco é dada a este mártir a oportunidade de voluntariamente aceitar a morte em defesa da fé e assim abraçar a espiritualidade do martírio.[7] Estes inconvenientes, que só poderiam ser solucionados estendendo a narrativa por muitas outras sequências, resolvem-se de forma simbólica: os três pães de orjo, metáfora da Santíssima Trindade, são o alimento espiritual pelo qual o santo é condenado à morte e cujo benefício, equivalente da Eucaristia, os malfeitores pretendem subtrair-lhe.
Finalmente, na última sequência, temos a inventio das relíquias, envolvida em sinais maravilhosos que asseguram a glorificação do santo. Seguem-se os topoi habituais: a descoberta do corpo é feita por uma criança, a água, pelo contacto com o corpo, adquire poderes curativos que sublinham a sua função purificadora, curando a lepra, doença que a Idade Média acreditava ser consequência directa e irreparável do pecado (Béniac 1997,133-135).
A vida do jovem rei da Hungria (Santo Albano na versão latina do texto) coloca em cena três problemas. Em primeiro lugar, o problema dos limites do humano, inerente ao tabu do incesto, que é situado em terras do Norte e na Hungria. Para meridionais como o anónimo autor da Vita e como o autor do Orto, são territórios que pertencem a um outro espaço civilizacional, não latino, tardiamente convertido ao cristianismo, já no segundo milénio depois de Cristo.[8] Situam-se no limiar da Cristandade, ainda próximos da barbárie e, por isso, ainda necessitados de instrução, ou seja, de santos que ilustrem claramente a vitória do humano racional sobre os instintos básicos. A alienação espacial é tranquilizadora, visto que a história narrada e o que ela contém de terrível não diz directamente respeito ao leitor, passa-se na terra de outros. Apesar de triplamente indecorosa, a exibição do tema obedece a uma estratégia didáctica que não deixa de ser explicitada no texto: «Oo, Jhesu bõõ, que faremos?», exclama o narrador quando se prepara para relatar o terceiro incesto, «Pessa-me escrepuer o que se segue, mas todo serue ao teu louuor». O narrador prepara o leitor para o momento de horror que se segue mas convida-o a sublimá-lo catarticamente. Os limites do humano ficam claramente traçados e a função didáctica do exemplo explicitada.
O segundo problema é o da culpa, que já a tragédia de Sófocles colocava. O autor da Vita Albani coloca-o de forma diferente. Édipo é vítima de uma profecia a que não pode escapar e comete um incesto não culposo, porque desconhece as circunstâncias do seu nascimento. A culpa, em Édipo, não resulta do livre arbítrio e o castigo que se autoimpõe, arrancando os próprios olhos, responde ao conceito antigo de miasma, isto é, de poluição que atinge o indivíduo pela prática de um crime independentemente da sua culpa objectiva: o parricídio e o incesto são males em si mesmos e angustiam quem os pratica. Na Vita Albani, os dois crimes têm, como vimos, o mesmo estatuto mas a forma como são perspectivados beneficia da comparação dos crimes de Albano com os praticados pelos seus pais, especialmente os do pai, estes sim crimes praticados no pleno uso do livre arbítrio. Além disso, na narrativa hagiográfica não há profecia, pelo que todas as acções se situam no plano humano da consciência e da responsabilidade pelos actos praticados. O séc. XIII favorece esta visão, com a emergência da filosofia tomista e o desenvolvimento da consciência e da autonomia individuais baseadas na razão (Ullman 1966, 106-7).
O terceiro problema decorre do segundo e é especificamente cristão: é o da redenção do mal. Toda a culpa é remissível pela confissão e pela penitência. Albano é capaz de vencer as suas circunstâncias desfavoráveis, de aprender as lições da penitência e de escolher, conscientemente, o verdadeiro caminho para a verdade e para a vida. Em notório contraponto, os seus pais, a quem foi dada a mesma oportunidade, perdem essa batalha, permitindo que os instintos não-humanos prevaleçam sobre a razão. O contraste aponta para o valor exemplar e anagógico da experiência de Albano, sublinhado pela iteração e pela simbologia numérica (três pecadores, três incestos, três autoridades espirituais, sete anos de penitência, três pães de orjo).
Apesar do evidente enquadramento edipiano desta narrativa, sublinhemos as diferenças. A primeira é precisamente a que acabei de notar: o final da história é antropologicamente optimista e oferece aos seus leitores um modelo espiritual e pedagógico. A marca do Cristianismo nota-se ainda noutros aspectos. Ao contrário do que sucede a Édipo, entregue para ser morto com sofrimento, pendurado pelos pés furados, este infante é exposto em condições protectoras, que garantem que sobrevive e que nada sofre: acompanhou o servidor que o levava uma ama do menino e «ẽuoluerõ-no ẽ hũũ manto muy nobre e poseron-lhe ao collo hũa borssa cõ muytos dinheyros e meterã ẽ ella hũũ anel». O infanticídio não vem juntar-se aos restantes crimes. Do casamento do filho com a mãe não há descendência, o que circunscreve o mal a três pessoas e permite que a penitência de Albano seja verdadeiramente cauterizadora.
No Orto do Esposo, o exemplum do jovem rei da Hungria serve para argumentar que de tudo o que é terreno deve o homem desligar-se, pois nada lhe é de proveito. Entre os laços terrenos que não merecem apreço estão precisamente os filhos, os quais, mesmo sendo santos como este jovem rei, podem chegar a matar os seus pais («E por esto, pellos grandes cuydados que se seguẽ dos filhos bõõs ou maaos, nõ se deue homẽ teer por bemauẽturado por auer filhos»). Assim se encadeia o monge do mosteiro de Alcobaça na complexa teia de textos e de temas constituintes da literatura medieval europeia, que releu os heróis da Antiguidade, reinterpretando-os à luz de novas concepções antropológicas e dando-lhes múltiplas faces, como Albano ou Gregório ou Judas ou Julião. O latim permitia esta circulação de histórias, que recontam sempre de forma diferente uma história contínua sobre a natureza do Homem e sobre a sua relação com o mundo e com o que o transcende.
[1] Transmundo foi notário papal até 1186 e monge cisterciense em Claraval desde pouco mais do que essa data até depois de 1216. Escreveu um manual de retórica epistolar, intitulado De arte dictandi, ao qual juntou uma colecção de cartas que lhe serviam de exemplos. A Vita Albani foi acrescentada entre essas cartas.
[2] Sobre a lenda de Judas, a sua difusão na Europa, particularmente em França, v. Baum 1916; Lafran 2013. Baum identificou 42 manuscritos latinos contendo a lenda de Judas, em cinco versões diferentes.
[3] Sobre esta legenda hagiográfica ver a Introdução a von Aue 1955.
[4] Sobre as origens e formação da legenda v. De Gaiffier 1945 e Bart e Cook 1977.
[5] O texto latino inclui aqui um cavaleiro que aparece e os convida a passar a noite no seu castelo, razão pela qual no dia seguinte não são capazes de encontrar o caminho. O autor do Orto compreendeu que este pequeno episódio é acessório e dilatório do essencial, por isso omite-o.
[6] Há muitos outros casos em hagiografia; destaque-se o mais conhecido: Maria Madalena, cuja legenda se divulgou sobretudo a partir do séc. XIII, graças à Legenda Aurea, depois de já ter alcançado a santidade, ainda assim passará os últimos 30 anos da sua vida em penitência, no ermo. (Varazze 2000, I, 6636-637).
[7] Note-se que estas exigências foram deixando de ser, ao longo dos séculos, rigorosas, aceitando-se como martírio alguns casos de morte de um inocente por razões políticas, como sucedera, por exemplo, com a canonização de Tomás Becket, Arcebispo de Cantuária, em 1173.
[8] Os magiares foram convertidos ao Cristianismo pelo rei Santo Estêvão I, que subiu ao trono no ano 1000 e foi canonizado em 1083.
Bibliografia
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