Conservação e Restauro de Património Científico: uma área emergente no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Universidade de Lisboa

 

A definição de património científico é demasiado complexa para a podermos contextualizar de uma forma simples no âmbito deste artigo. Basta-nos, para o efeito, observar o vasto número de áreas disciplinares, diversidade de tipologias e artefactos científicos, espécimes biológicos, geológicos e espaços históricos dedicados à produção de conhecimento científico que podem integrar a definição. Alguns dos desafios mais importantes no dia a dia de um conservador-restaurador numa instituição com património científico incluem coleções de sementes, tecidos e ADN, herbários, peças anatómicas humanas, antropológicas, osteológicas, instrumentos científicos, computadores, reagentes históricos, matéria médica, exemplares zoológicos naturalizados, fósseis e minerais, plantas em jardins botânicos. Todas estas coleções encerram em si inúmeras questões para a Conservação e Restauro responder, requerendo um aprofundamento permanente de novas práticas e cruzamento pluridisciplinar (e.g. técnicas de preparação, taxidermia, curadoria das coleções, física, química, entre outras).

Esta é uma das primeiras questões para um conservador-restaurador: o que é o património científico e o que são coleções científicas? A segunda é, precisamente, como os podemos interpretar e preservar? Neste sentido, são já recorrentes os contactos de conservadores-restauradores com dúvidas sobre objetos «diferentes» que lhes chegam aos ateliers.

A terceira questão que nos surge é a inevitável percepção de que se trata de uma realidade patrimonial distinta da que conhecemos habitualmente e para a qual somos treinados. O grosso do ensino da conservação e restauro, incluindo o nível superior, assenta ainda maioritariamente nas artes ditas convencionais, como a pintura sobre tela, a escultura em madeira ou pedra, os documentos gráficos, a cerâmica ou o azulejo, entre outras. Neste sentido, a inclusão de património científico nos curricula dos cursos superiores de conservação e restauro em Portugal é ainda tímida, em comparação com países como a Inglaterra e a Suíça, em que escolas congéneres promovem a formação na conservação e restauro de instrumentos científicos, técnicos, relógios, bens etnográficos, espécimes de história natural, entre outros. Em Portugal, este cenário poderá também vir a alterar-se nos próximos anos, face ao número crescente de alunos e profissionais que se têm vindo a interessar e a especializar nestas coleções.

No Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC), nos últimos anos, tem-se verificado uma crescente procura das coleções científicas como especialidade por parte de jovens conservadores-restauradores. Em consequência, o Museu tem vindo a assumir desde 2007 um papel preponderante na formação de profissionais e na consolidação de práticas de conservação e restauro de património científico em Portugal. São exemplos a intervenção realizada no seu Laboratorio Chimico e Anfiteatro (1998-2007), que abriu o mote para a reflexão interdisciplinar entre historiadores da ciência, museólogos, arquivistas e conservadores-restauradores sobre a preservação de um espaço de ciência oitocentista — o primeiro dos três laboratórios históricos de química existentes no país a ser restaurado. A intervenção consistiu ainda numa primeira oportunidade, igualmente interdisciplinar, para a realização do restauro de um conjunto de instrumentos científicos do Laboratorio — sobretudo ao nível do restauro dos metais — pelos conservadores-restauradores Isabel Tissot e Manuel Lemos (Archeofactu). Por outro lado, ao nível institucional, o MUHNAC colabora desde 2006 com diversas instituições de ensino, de investigação e outras, com vista ao apoio na preservação dos seus patrimónios da ciência, técnica e medicina. Destacam-se as parcerias com o Instituto de Orientação Profissional, o Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, a Faculdade de Medicina e os Museus do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa; o Instituto de Investigação Científica de Bento da Rocha Cabral; a Escola Secundária Sebastião e Silva em Oeiras; a Escola Secundária Passos Manuel; o Colégio das Doroteias; o Aquário Vasco da Gama; o Palácio Nacional da Ajuda, entre muitas outras.

No campo da formação específica em conservação de coleções científicas, o MUHNAC tem acolhido diversos estágios das licenciaturas em conservação e restauro dos cursos da Universidade Nova de Lisboa, do Instituto Politécnico de Tomar e da Universidade Católica do Porto, e mais recentemente do 2.º ciclo e de Erasmus, destacando-se neste último a colaboração com a Escola Superior de Conservación e Restauración de Bens Culturais de Galicia, Pontevedra. A procura tem aumentado significativamente, tendo já sido mais de 20 os alunos destas instituições que passaram pelo Museu nos últimos três anos. Por norma, o interesse tem variado, incidindo na formação em conservação preventiva, na preparação e conservação de espécimes taxidermizados e fósseis, e mais recentemente nos polímeros e vidro.

Em 2013, o MUHNAC submeteu uma candidatura para liderar uma infraestrutura nacional de coleções científicas — o PRISC, Portuguese Research Infrastructure of Scientific Collections — de que fazem também parte o Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto e o Museu de Ciência e Jardim Botânico da Universidade de Coimbra.[1] Um dos objetivos do PRISC consiste na implementação de três laboratórios de charneira na área da conservação e restauro de coleções científicas: um Advanced Garden Lab, um Advanced Hazardous Lab e um Advanced Taxidermy Lab. Estes laboratórios constituirão uma novidade no panorama nacional da conservação do património científico. Sendo únicos no país, terão como missão a formação e a prestação de serviços especializados na conservação de coleções com materiais perigosos (e.g radioativos) e ou tóxicos (químicos, entre outros); a formação e a conservação e restauro de espécimes naturais (e.g naturalizados, exemplares em meio líquido, herbários, objetos naturais, etc.) e de artefactos científicos (instrumentos, reagentes históricos, etc.).

O Advanced Garden Lab, que ficará localizado no Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, especializar-se-á em questões relacionadas com a conservação de coleções vivas de plantas, particularmente em jardins botânicos, destacando-se a recém iniciativa da criação do consultório botânico que possibilita ao público em geral a identificação de espécies de plantas. [2] O Advanced Taxidermy Lab será igualmente especializado na preparação e taxidermização de espécimes de história natural, modelagem e construção de dioramas. Estes laboratórios funcionarão como um cluster de profissionais especializados, com vista ao aperfeiçoamento e à consolidação de práticas de conservação, restauro e de preparação, bem como para o desenvolvimento de protocolos de referência na conservação e restauro do património científico, preparação de protocolos de referência e formação contínua de alunos e profissionais. Os laboratórios estarão em pleno funcionamento em meados de 2020.

A área de conservação e restauro do MUHNAC conta atualmente com a expertise de três conservadoras-restauradoras: eu própria, com formação de base em conservação e restauro de papel e experiência profissional em bens etnográficos, sendo a minha área de especialização desde 2011 as práticas de preparação e usos das coleções científicas e os materiais perigosos; Catarina Mateus e Laura Moura, ambas bolseiras FCT desde 2015, com formação de base e especialização em conservação e restauro de fotografia e documentos gráficos, respetivamente, e com experiência consolidada nas coleções científicas do Instituto de Investigação Científica e Tropical (IICT).[3]  No apoio às exposições, o MUHNAC conta ainda com a colaboração pontual de Catarina Gonçalves, também ela conservadora-restauradora de documentos gráficos com experiência nos acervos do IICT.

Enquanto conservadora-restauradora de coleções científicas, as experiências que tenho vindo a adquirir nesta área do património e no MUHNAC foram desde o início decisivas para a minha especialização. Como referido, para nos enquadrarmos na diversidade e em muitas das questões da conservação das coleções e do património científico, é necessário cruzarmo-nos com vários tipos de exemplares e de artefactos, ir aos locais onde foram produzidos, perceber as dinâmicas de uso, como são preservados e até mesmo descartados.

Algumas das principais experiências no meu percurso recente na conservação do património da ciência incluíram a participação nos dois primeiros levantamentos sistemáticos do Património Cultural da Universidade de Lisboa (2011 e 2016), com enfoque nas coleções científicas, bem como na avaliação das coleções biológicas e geológicas do MUHNAC (2014). Estes levantamentos proporcionaram-me uma visão mais alargada do património gerado na ciência, desde as ciências exatas às ciências naturais, e das questões primordiais para a conservação, tais como: a necessidade de maior preparação dos profissionais, maior interdisciplinaridade e a adequação dos conhecimentos teórico-práticos da conservação e restauro a objetos e materiais completamente distintos (e.g. acessórios em borrachas, reagentes históricos, comprimidos, amostras de sangue, entre outros).

Os desafios com que me deparei inicialmente e a necessidade de conhecer novas práticas de conservação incentivaram-me a procurar formação junto de escolas, museus e outros profissionais da conservação e restauro de património científico, nomeadamente, no Museu de Astronomia e Ciências Afins e no Museu Nacional, ambos no Rio de Janeiro; no Natural History Museum e na Natural History Conservation Specialists, em Londres, e na Haute-école de Conservation-restauration, em Neuchâtel, na Suíça. Este processo de formação foi iniciado em 2012, e desde essa altura tenho assumido também a coordenação da conservação do acervo museológico do MUHNAC e do apoio que o Museu presta à conservação do património cultural e científico da Universidade de Lisboa e de outras instituições em protocolo.

Em junho de 2018, o MUHNAC organizará o I Seminário Nacional de Conservação de Coleções Científicas, a primeira edição de uma iniciativa aberta à comunidade académica e profissional da área da Conservação e Restauro, e que se pretende realizar anualmente. O I Seminário contará com várias comunicações de profissionais que intervêm em património científico e também um debate com responsáveis científicos dos três principais cursos de licenciatura, mestrado e de doutoramento em conservação e restauro no país sobre a formação necessária para trabalhar nesta franja do património, que é emergente e cuja massa crítica em Portugal é ainda insuficiente.

Ao longo destes últimos 12 anos foram dados passos muito importantes na preservação do património científico do MUHNAC, que permitiram também o início da constituição de um corpo de profissionais que se tem vindo a especializar em diferentes vertentes deste património e, por sua vez, a formar mais jovens nesta área. A futura implementação dos laboratórios de conservação e restauro constituirá uma viragem significativa no papel que o Museu poderá assumir neste domínio, enquanto espaço de formação e de reflexão inovadoras ao nível da conservação e restauro do património científico, em parceria com outros museus, universidades e laboratórios.

 

[1] POCI-01-0145FEDER-022168.

[2] https://www.uc.pt/jardimbotanico, acesso a 16 de abril de 2018.

[3] Integrado na Universidade de Lisboa pelo Decreto-Lei n.o 141/2015 de 31 de julho, o acervo do IICT inclui coleções de instrumentos científicos, etnográficas, antropológicas, arqueológicas, zoológicas, mineralógicas e geológicas, xiloteca e herbário, coleções de arquivo, de fotografia e um Jardim  Botânico Tropical, referentes, na sua maioria, à recolha e à investigação produzida nos antigos territórios coloniais.

 

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