Na manhã do dia 12 de março, entrei na sala 4 e, como habitualmente, depois da acomodação dos alunos do 8ºH, olho, atentamente, os rostos e impera por instantes o silêncio. Espectei o olhar no rosto pálido e olhos lânguidos do Cristiano, perguntei-lhe como se sentia e disse-me que estava doente.

Fiz uma reflexão e pensei mais uma vez — Ser professor(a) é um ato de coragem, resistência e determinação. Abro a porta, não vejo ninguém no corredor, acompanho o aluno ao gabinete do coordenador que, seguidamente, o encaminhou para a sala de isolamento, onde constatou que tinha febre e estava medicado.

Regresso à aula, encontro a Gabi com apavoradas lágrimas que inquietavam os colegas e, ao mesmo tempo, diziam que estava muito ansiosa. Habituada a lidar com maleitas, fizemos momentos de inspiração e expiração, a fim de que todos encontrássemos mais tranquilidade. Porém, a Gabi continuava desconsolada, abeirei-me dela e acompanhei-a à sala de isolamento onde estava o Cristiano. Ambos foram para casa, após contactos do coordenador com os encarregados de educação.

Findos os 90 minutos, por onde perpassaram diferentes sentimentos, descia as escadas e já ouvia a voz — «Os alunos e a professora deviam estar em sala, até decisão da Autoridade de saúde local» e eu repetia para dentro — Ser professora é um ato de coragem, resistência e determinação. Foi a determinação que norteou os meus passos.

Vim para casa com os contactos do Cristiano e da Gabi, bem como o dos familiares. Nesse dia, terminou o ensino presencial. Receosa, tomei algumas precauções em família até saber do estado destes alunos (ao primeiro, foi diagnosticada uma amigdalite e à segunda um tipo de pneumonia que não inspirava preocupação.)

Parece distante a temática Ensino à distância, sobre a qual me propus escrever!....A partir de então, na caixa do correio, aportavam mensagens, mensagens que perturbavam, seriamente, os meus olhos e assoberbavam o cérebro e, numa delas, constava a formação acerca de ferramentas para apoio a este repentino e inesperado formato de ensino, no entanto tinha a consciência de que só um pedagogo presencial resolveria a minha angústia, perante a celeridade da adaptação.

 Lembrei Torga e senti um gigante desafio «O que importa é partir / não é chegar». Embarquei no Google Classroom e com o meu gigante marinheiro a bordo começámos a desbravar águas. O meu filho Eduardo explorava as possibilidades da ferramenta e eu colocava questões que ela tinha de resolver para ser eficaz à inovação, adequação do meu método de ensino e da minha pedagogia. Inesperadamente, aparece o manual do Classroom no correio eletrónico.

Assim, iniciei o caminho confiante, porque estava com o pedagogo, o meu filho Eduardo, por perto. Contudo, em determinados momentos, vociferava aqueles gritos de emergência, aos quais o meu Eduardo acudia com serenidade. Tinha perdido a imagem, não integrava o documento/vídeo pretendido, entre outros desencontros neste malfadado tempo, por vezes tão trágico. A perda, a 16 de abril, do escritor Luís Sepúlveda, que me ensinou a voar como a sua gaivota mesmo com asas feridas, acentuou ainda mais a tragicidade. Nestes momentos, parecia sentir também o desespero, o desânimo, a exaustão e a angústia de duas amigas que, solipsamente, enfrentavam a violência da adversidade que, com desalento, partilhavam telefonicamente. Esclarecíamos dúvidas, porém o confinamento!...

Nesta caminhada, como professora de português trabalhei arduamente como todos os colegas deste e de outros países. Desde o início, nem todos os alunos estiveram presentes nas aulas síncronas por diversas razões. Contudo, tive discentes que foram verdadeiros agentes ativos no processo de aprendizagem e aprofundaram, com orientações, competências intelectuais, sociais e emocionais, mas já demonstravam, no ensino presencial, a responsabilização e autonomia para conquistar e questionar o conhecimento. Todavia, para mim, a distância não é facilitadora de pedagogias e aprendizagens. A distância não promove a análise da expressão facial/ocular tão importante e diferenciadora, a fim de um(a) professor(a) discernir se o(a) aluno(a) está verdadeiramente motivado(a), se compreendeu a pergunta, a pesquisa, a leitura, o exercício, o poema, se está bem física ou psicologicamente.

Neste processo, foram incansáveis os diretores de turma que procuravam, junto dos encarregados de educação, com perseverança, as ovelhas tresmalhadas do rebanho e as traziam para as aulas síncronas, assim como os delegados, sempre disponíveis a contactar os atrasados ou ausentes.  Pessoalmente, considero que os pais, apesar de todas as contrariedades e sofrimento, não podem viver alheados da escola que está sempre aberta para os acolher e ajudar e têm de sentir  fascínio pelos  filhos e pela sua educação, embora o Estado tenha também um papel importante e congregador para promover o bem-estar das famílias, particularmente no que concerne à atividade laboral. No Agrupamento D. Maria II em Famalicão, penso que correu bem esta modalidade de ensino, graças a todos os professores e à Direção.

 Apesar de aspetos positivos, não creio num autêntico Ensino à distância. O autêntico ensino é sempre aquele que estimula a proximidade, a abertura dialógica, o espírito crítico, a argumentação, entre professor e aluno/formador e formando, abre espaços emocionais e faz de alguém confiante e, assim, teremos líderes que orientam, que apontam caminhos e não subjugam como os chefes ou as máquinas.

Na minha relação pedagógica, com as turmas que tive este ano pela primeira vez, senti saudade daquele espaço/momento da aula, em que colocava uma pergunta promotora de curiosidade e ousadia e, consequentemente, o silêncio imperava como reflexão!?.... Olhava, minuciosamente, os rostos introspetivos e pedia-lhes o provérbio sagrado das nossas aulas e um(a) aluno(a) de dedo no ar procedia com lucidez à sua repetição «Ninguém é tão sábio que não tenha nada para aprender, nem tão ignorante que não tenha nada para ensinar.».

 Fazer sentir o provérbio, no ato de ensinar, promoveu a confiança no errar, no saber, no aprender, e todos sentimos que somos frágeis e que mais do que máquinas, precisamos de crianças, jovens e adultos bem formados que vivam, dignamente, com as pegadas do fracasso e do sucesso. Portanto,  a técnica/a máquina é o suporte tecnológico, mas não veicula a metodologia e a pedagogia que cada professor imprime à sua capacidade de interação, inovação e adequação no processo de ensino e aprendizagem, bem como nas diferentes vertentes da educação e cidadania, ou seja, pode contribuir para a paixão e a felicidade, porém, dela não dependem estes nobres sentimentos. Por que razão adoro teatro, sigo todos os movimentos das personagens, perscruto os olhares, os silêncios, os espaços, o tom vocálico e indago na íntegra a expressão corporal!? Provavelmente, na peça, lembro Camões: «Vi claramente visto…» a humanidade; no cinema adormeço. Certamente, a imagem aparece ao meu olhar como algo mais manipulado e não tão genuíno.

No Ensino à distância, a minha linha orientadora foi sobretudo manter a motivação, o envolvimento e responsabilidade dos meus alunos, pois a autonomia e as aprendizagens eram para mim fatores diferenciadores, mas subsequentes.

De uma forma global, foi uma experiência positiva, apesar de todas as adversidades e arrepios. O Google Classroom, por exemplo, permitia organização de informação e de orientações, correção de alguns trabalhos, cujo resultado os alunos sabiam de imediato, o que evitava o trabalho de correção do docente. O agendamento de esclarecimento de dúvidas individual ou em grupo, assim como a apresentação de dados, através dos gráficos, também foram interessantes. Contudo, as correções indeferidas na escrita não dispensam as aulas presenciais.

Além disso, as competências de alguns alunos não correspondiam aos trabalhos apresentados e, indubitavelmente, não eram feitos por eles. Perante isto, a minha tarefa duplicava, pois tinha de, subtilmente, sensibilizar o aluno para o trabalho pessoal e os frutos desse esforço e ainda recorria a José Régio para abrir horizontes com a explicação dos versos «E vós amais o que é fácil / Eu amo o longe e a miragem».

 Também, não posso ignorar que há «ilustres» que se apropriam do esforço dos outros e não hão de os adolescentes aproveitar as capacidades e a presença dos irmãos e pais, a fim de aperfeiçoar a sua atividade!? Com esta ironia, não quero desculpar os meus alunos, pois têm a seu favor a ruralidade e apenas aquilo que aprendem na escola e com os seus professores, enquanto «os ilustres» vivem em ambientes culturais e com ótimos recursos.

Desta oportunidade imprevista, levo comigo uma ferramenta para o futuro, a fim de desenvolver aprendizagens específicas de Português e competências emocionais, para que os alunos sejam bem-sucedidos na vida pessoal, escolar e profissional. Todavia, defendo o Ensino à distância como um complemento do ensino presencial, criteriosa e pontualmente definido pelo professor, agente e gestor de um programa, com o objetivo de promover experiências de aprendizagens abrangentes e enriquecedoras. É óbvio que o Ensino à distância tem um inegável valor quando há necessidade de apoiar alunos por razões de saúde e a deslocação dos docentes não seja fácil ou viável.

Mergulhados nesta premente realidade quotidiana, ficam de uma pobre professora as pobres e sentidas palavras que de manuscritas passaram a digitais e, certamente, também elas foram lidas com a paciência que fruíram. Sou uma professora num tempo em que o tempo fez do tempo outro tempo que interrogou profissionais de diferentes áreas e famílias das quais precisamos junto dos seus filhos, com dedicação e qualidade, pois oferecem máquinas, mas os filhos persistem alheados do conhecimento, da curiosidade e ficam siderados em imagens que os alienam e, facilmente, vulneráveis a predadores invisíveis.

Espero que, neste tempo inóspito, os pais e a sociedade reconheçam, profundamente, a dignidade da função docente e a importância dos professores na presença dos seus filhos e que ganhem tempo a comovê-los com os sentimentos e a explicar-lhes a importância dos telemóveis ou computadores.

Ofereci aos meus filhos computadores, todavia o livro e eu, desde o berço, fomos os obreiros do dom de aprenderem a escrever e reescrever a história da vida. Portanto, a máquina não liberta, aprisiona, não me deixa ver o rosto pálido e olhos lânguidos do Cristiano e da Gabi com apavoradas lágrimas do 8ºH.

Quero voltar, quero voltar à casa das minhas aulas presenciais!

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