Introdução
A Edda em prosa, texto islandês do início do século XIII, legou-nos a mais completa colecção de informação sobre mitologia escandinava pré-cristã ― ou, pelo menos, sobre uma expressão desta mitologia, que não terá sido homogénea ao longo de toda a cronologia e área geográfica onde as religiões pagãs escandinavas foram praticadas. Trata-se de uma representação elaborada por um autor cristão na Islândia, passados mais de duzentos anos desde que o povo da ilha decidiu em assembleia nacional (o Alþing), no ano 1000, converter-se ao Cristianismo. A sua composição é atribuída a Snorri Sturluson (1178/9-1241), escritor e político pertencente a uma das mais poderosas famílias islandesas do seu tempo, os Sturlungar.
Na sua essência, a Edda em prosa é um tratado medieval sobre poesia, divido em quatro partes: «Prólogo», Gylfaginning («O Dolo de Gylfi»), Skáldskaparmál («A Linguagem da Poesia») e Háttatal («Lista de Métricas»). A poesia nórdica antiga, especialmente a poesia skáldica, composta nos séculos antecedentes por islandeses e noruegueses nas cortes de reis escandinavos, era transmitida através das gerações, garantindo assim que a memória dos seus afamados autores fosse preservada. Era, também, utilizada como autoridade em assuntos históricos ― pelo seu formato rígido, governado por aliteração interna e métricas elaboradas, julgava-se que era sempre preservada de forma intacta e constituía um testemunho directo do passado. Além disso, a poesia skáldica é caracterizada pelo uso de uma linguagem obscura e pelo recurso abundante às kenningar (sg. kenning), metáforas construídas com descrições perifrásticas. Frequentemente, as kenningar exigem ao leitor um vasto conhecimento de mitologia nórdica para a sua interpretação
É sugestivo que Snorri tenha composto ostensivamente a sua Edda como uma ferramenta para ensinar jovens poetas a compor e entender poesia skáldica, no seu estilo críptico e intrincado. Tal sugere que, nos anos 20 ou 30 do século XIII, este género poético estaria a cair em desuso, talvez por contraste com a abertura a novas formas literárias neste período, que conheceu a composição das primeiras sagas nas formas em que as conhecemos, assim como o início da tradução de literatura cortês europeia na Escandinávia. O progressivo esquecimento do conhecimento mitológico após a conversão poderá ter sido uma das razões de este estilo poético se ter tornado menos acessível. Assim, na Gylfaginning, dentro de uma moldura narrativa na qual um rei chamado Gylfi entra em diálogo com três dos Æsir (os deuses), Snorri expõe metodicamente a sua concepção das principais lendas e narrativas da mitologia nórdica. Apesar de ter utilizado material mais antigo do que a sua obra, tal como os poemas éddicos, é evidente que se empenhou em organizar e tentar dar coerência a um conjunto de informações contraditórias, incompletas e díspares ao nível do detalhe (e.g. para dados sobre alguns dos deuses, Snorri é a única fonte, sugerindo que se entregou a alguma liberdade criativa). O Skáldskaparmál, também em forma de diálogo (desta feita entre Bragi, deus da poesia, e Ægir, deus do mar), relata episódios mitológicos adicionais, com o objectivo de explicar a origem de vários kenningar e heiti, agrupados por significado. No Háttatal, Snorri dedica-se a demonstrar a utilização de várias métricas skáldicas e formas de verso possíveis, acompanhadas por um comentário em prosa, ao mesmo tempo que faz um panegírico ao rei norueguês Hákon Hákonarson e ao jarl Skúli Bárðarson.
O «Prólogo» da Edda, apresentado aqui em tradução, assume a forma de uma explicação evemerista dos eventos relatados na Gylfaginning, que se lhe segue no texto. Com recurso a etimologia popular (segundo a tradição medieval, na senda de Isidoro de Sevilha nas Etymologiae, por exemplo), Snorri localiza a pátria dos Æsir na Ásia, procurando racionalizar a origem das divindades pagãs e da veneração destas pelos escandinavos. Segundo o «Prólogo», os «deuses» seriam, na verdade, meros homens, descendentes do rei Príamo, que habitavam na Ásia Menor. Apresentam-se supostas figuras históricas que correspondem a certos deuses (e.g. a profetisa Sibila e a deusa Sif), assim como alguns locais reais correspondem aos lugares mitológicos. O seu chefe Óðinn migrou para os territórios germânicos, onde ele e os outros Æsir ganharam reputação divina entre os habitantes locais. Como uma consequência prática desta explicação, Snorri apresentará depois a Gylfaginning, em que Gylfi entra em contacto com descendentes dos Æsir, convencidos da divindade dos seus antepassados, que lhe contam histórias sobre eles. Gylfi irá espalhá-las entre os suecos, que passarão, por seu turno, a venerá-los. Óðinn espalha também os seus descendentes pela Escandinávia, onde eles se tornarão reis e darão origem às famílias a que pertencem os reis do tempo de Snorri.
O «Prólogo» afigura-se, então, quase como uma apologia deste autor cristão: de si próprio, explicando que não acredita na divindade das figuras sobre as quais falará em detalhe; e dos seus antepassados, explicando racionalmente como chegaram àquelas conclusões sobre os deuses pagãos, e dando pistas de que se encontravam no caminho para a iluminação cristã. Apesar de tratar uma matéria nativa e referente ao passado pré-cristão, a Edda é, sem dúvida, um trabalho influenciado pela literatura cristã continental ― Snorri foi educado em Oddi, a base de poder da família Oddaverjar, onde vários bispos islandeses iniciaram também a sua educação ―, e o «Prólogo» é um excelente exemplo da sua inserção na vasta tradição erudita europeia. Esta atitude evemerista contém paralelos com a Ynglinga saga, o primeiro texto da vasta compilação de sagas de reis chamada Heimskringla, também da autoria de Snorri; mas tem-nos igualmente com a obra latina Gesta Danorum («Feitos dos Dinamarqueses»), do historiador dinamarquês Saxão Gramático (c. 1150-1220), assim como em outros textos de origem geográfica variada, pela Europa cristã fora.
Bibliografia
Faulkes, Anthony. «Snorra Edda». In Medieval Scandinavia – An Encyclopedia, editado por Phillip Pulsiano e Kirsten Wolf, 600-602. Nova Iorque: Routledge, 1993.
_______. «What was viking poetry for?» Palestra inaugural apresentada a 27 de Abril de 1993 na Universidade de Birmingham. Birmingham: University of Birmingham/School of English, 1993. Disponível em http://www.vsnrweb-publications.org.uk/Inaugural.pdf.
_______. «Introduction.» In Edda. Prologue and Gylfaginning, 2ª edição, editado por Anthony Faulkes, xi-xxxii. Exeter: Viking Society for Northern Research/University College London, 2005.
[Prólogo]
Deus omnipotente criou o céu e a terra e todas as coisas que lhes pertencem, e, por fim, dois seres humanos, Adão e Eva, dos quais descendem as gerações, e a descendência deles multiplicou-se e espalhou-se sobre o mundo inteiro. Mas, quando passaram eras, a humanidade dividiu-se: alguns eram bons e ortodoxos; mas muitos mais viraram-se para os desejos do mundo e ignoraram os mandamentos de Deus; e, por isso, Deus submergiu num aumento do mar o mundo e todos os seres vivos, excepto aqueles que estavam na arca com Noé. Depois do dilúvio de Noé, viveram aqueles oito homens que povoaram o mundo e de quem vieram as gerações; e aconteceu de novo como dantes, que, quando o mundo estava povoado e habitado, a maior parte da humanidade amava a avidez de riqueza e de glória, mas negligenciava a obediência a Deus, e isto foi tão longe ao ponto de eles não quererem nomear Deus. Então quem falaria aos filhos deles sobre os mistérios de Deus? Assim, aconteceu que eles esqueceram o nome de Deus e, na maior parte dos lugares pelo mundo fora, não se encontrava um homem que conhecesse pormenores acerca do seu criador. Mas, ainda assim, Deus deu-lhes dons terrenos, riqueza e prosperidade, de que eles pudessem desfrutar no mundo. Distribuiu também a sabedoria, para que eles compreendessem todas as coisas terrenas e todos os pormenores do ar e da terra que podiam ver. Uma coisa consideraram eles e com ela se admiraram: o que significaria o facto de a terra, os animais e as aves terem em alguns aspectos uma natureza comum, e ainda assim existir diferença no que diz respeito ao modo de vida. Uma característica era a terra ser esculpida em altos cumes de montanhas, e ali jorrar água e não ser necessário ir mais longe do que os vales profundos para escavar até à água. Assim também são os animais e as aves: para o sangue é igual a distância na cabeça e nos pés. Esta é outra característica da terra: em cada ano crescem na terra erva e flores, e no mesmo ano tudo isso cai e murcha. Assim são também os animais e as aves: pêlos e penas crescem-lhes e caem em cada ano. Esta é a terceira característica da terra: quando ela é aberta e escavada, cresce depois erva naquele solo que na terra fica por cima. Rochas e pedras interpretavam-nas eles como dentes e ossos de seres vivos. Por isso, eles julgavam que a terra fosse animada e tivesse de alguma forma vida, e sabiam que ela era extremamente antiga em idade e poderosa na sua natureza. Ela alimentava todos os seres vivos e apoderava-se de tudo o que morria. Por esse motivo, eles deram-lhe nome e fizeram remontar até ela as suas linhagens. E ficaram igualmente a saber a partir dos seus parentes anciãos que, depois de muitas centenas de anos, a terra, o sol e os corpos celestes eram os mesmos. Por tais coisas, pensou-se que existiria algum governante dos corpos celeste, tal que pudesse regular o movimento deles segundo a sua vontade, e que seria poderoso e potente. E eles achavam que, se ele tinha controlo sobre os elementos, então teria existido primeiro que os corpos celestes; e viram que, se ele controlava o movimento dos astros, então ele podia controlar o brilho do sol, o orvalho do ar e o produto da terra que deles depende, e igualmente o vento do ar, bem como a tempestade do mar. Por isso, eles acreditavam que ele controlava todas as coisas na terra e no ar, os astros do céu e os ventos do mar. Então, para que pudessem falar melhor sobre estas coias e fixá-las na memória, eles deram nomes a todas coisas entre si mesmos; e esta crença mudou de muitas maneiras, à medida que os povos se dispersavam e as línguas se dividiram. Mas eles compreendiam todas as coisas com um entendimento terreno, porque não lhes tinha sido dada sabedoria divina. Assim, eles julgavam que todas as coisas eram formadas a partir de alguma matéria.
O mundo estava dividido em três regiões. A parte que do sul se estendia para ocidente e até ao mar Mediterrâneo chamava-se África. A zona mais meridional desta parte é quente e queimada pelo sol. A segunda parte, desde o ocidente até ao norte e até ao oceano, chama-se Europa ou Enea. A parte mais setentrional é tão fria que lá não cresce vegetação e não pode ser habitada. O que se estende desde o norte e para este até ao sul chama-se Ásia. Naquela parte do mundo há toda a beleza, glória e riqueza do produto da terra, ouro e pedras preciosas. Ali fica também o centro do mundo. E na mesma medida em que lá a terra é mais bela e melhor em todas as qualidades do que em outro lugar, assim também o povo era deveras honrado com todos os dons, sabedoria, força e todos os tipos de conhecimento.
Perto do centro do mundo, foi feita a casa e morada mais eminente que já existiu, que se chamava Tróia e a que nós chamamos Tyrkland. Esse lugar foi feito muito maior do que os outros e com mais engenho de muitas formas, com a riqueza e os recursos que estavam disponíveis. Havia doze reinos e um rei supremo, e muitas terras estavam sujeitas a cada reino. Na cidade existiam doze soberanos. Estes soberanos eram, em todas as coisas humanas, superiores aos outros homens que existiram no mundo.
Havia um rei que se chamava Munon ou Mennon. Ele era casado com uma filha do rei supremo Príamo, chamada Troon. Eles tiveram um filho chamado Tror, a que nós chamamos Þórr. Ele foi criado na Trácia por um general de nome Lórico. Então, quando tinha dez invernos, tomou as armas do seu pai. Ele era tão belo de aparência, que aparecia no meio dos demais homens da mesma maneira que quando marfim é embutido em carvalho. O seu cabelo era mais belo do que ouro. Quando tinha doze invernos, estava na plenitude da sua força. Então, ergueu do chão dez peles de urso ao mesmo tempo, e depois matou o seu pai adoptivo, Lórico, e a mulher dele, Lora ou Glora, tomando para si o reino da Trácia, a que nós chamamos Þrúðheim. Depois viajou por muitos lugares ao longo terra, explorou todas as regiões do mundo e derrotou todos os guerreiros e gigantes e o maior dos dragões, e também muitos animais selvagens. Na região norte do mundo, encontrou uma vidente chamada Sibila, a quem nós chamamos Sif, e desposou-a. Ninguém sabe dizer qual a linhagem de Sif. Ela era a mais bela de todas as mulheres, o seu cabelo era como ouro. O filho deles foi Loriði, que era semelhante ao pai; foi filho dele Einriði, cujo filho foi Vingeþórr, cujo filho foi Vingenir, cujo filho foi Moða, cujo filho foi Magi, cujo filho foi Sescef, cujo filho foi Beðvig, cujo filho foi Athra, a quem nós chamamos Anna, cujo filho foi Ítamann, cujo filho foi Heremóð, cujo filho foi Scialdun, a quem nós chamamos Skjǫld, cujo filho foi Biaf, a quem nós chamamos Bjár, cujo filho foi Jat, cujo filho foi Guðólfr, cujo filho foi Finn, cujo filho foi Friallaf, a quem nós chamamos Friðleif. Ele teve um filho de nome Voden, a quem nós chamamos Óðinn. Ele era um homem excelente em sabedoria e em todos os méritos. A sua mulher chamava-se Frígida, a quem nós chamamos Frigg. Óðinn tinha o dom da profecia e a sua mulher também, e a partir desse conhecimento ele descobriu que o seu nome seria famoso na região norte do mundo e que seria mais honrado do que todos os reis. Por esse motivo, desejou partir de Tyrkland. Levou consigo uma grande multidão de gente, homens novos e velhos, homens e mulheres, que tinham consigo muitas coisas preciosas. E onde quer que eles fossem sobre a terra, corria uma fama gloriosa a respeito deles, de tal modo que eram considerados mais semelhantes a deuses do que a homens. E eles não puseram termo à viagem antes de chegarem ao norte, à terra que agora se chama Saxland. Ali se demorou Óðinn por longo tempo e tomou para si grande parte daquela terra.
Ali Óðinn estabeleceu três filhos seus na guarda da terra. Um chamava-se Veggdegg e era um poderoso rei, que governava sobre a Saxland Oriental. O seu filho era Vitrgils, cujos filhos eram Vitta, pai de Heingest, e Sigarr, pai de Svebdegg, a quem nós chamamos Svipdag. Outro filho de Óðinn chamava-se Beldegg, a quem nós chamamos Baldr. Ele detinha a terra que agora se chama Vestfal. O seu filho era Brandr, cujo filho era Frioðigar, a quem nós chamamos Fróða, cujo filho era Freovin, cujo filho era Wigg, cujo filho era Gevis, a quem nós chamamos Gavi. O terceiro filho de Óðinn chamava-se Siggi, cujo filho era Rerir. A descendência deles governou sobre o que agora se chama Frakland, e deles veio a linhagem que se chama Vǫlsungar. De todos eles vieram eminentes e numerosas linhagens. Então Óðinn deu início à sua viagem para norte e chegou à terra a que eles chamavam Reiðgotaland, tomando para si naquela terra tudo o que quis. Estabeleceu no poder sobre as terras o seu filho chamado Skjǫldr, cujo filho se chamava Friðleifir. Dele veio a linhagem dos que se chamam Skǫldungar, que eram reis dos Danos. E o que agora se chama Jótland chamava-se então Reiðgotaland.
Depois disso viajou para norte, até ao que agora se chama Svíþjód.[1] Ali estava um rei chamado Gylfi. Quando este tomou conhecimento da viagem daqueles asiáticos chamados Æsir, foi ao encontro deles e concedeu que Óðinn tivesse tanto poder no seu reino quanto ele próprio desejasse. E tal era a ventura que acompanhava a viagem deles, que onde quer que se demorassem havia prosperidade e boa paz; e todos acreditavam que eles fossem os responsáveis porque os soberanos viram que eles eram diferentes de todos os outros homens que já tinham visto, tanto em beleza como em sabedoria. Ali, as qualidades da terra pareceram excelentes a Ócinn, e ele escolheu para si o lugar que agora se chama Sigtúnir. Ele estabeleceu ali chefes, à semelhança de como havia sido em Tróia. Na cidade, nomeou doze homens responsáveis por aplicar a lei da terra. Desde modo ele fixou todas as leis que existiam em Tróia e a que os Turcos estavam acostumados.
Depois disso, foi para norte até que o mar o deteve, de tal modo que eles pensaram que rodeasse toda a terra. Então Óðinn deu a um filho seu o poder sobre o reino que agora se chama Nóregr.[2] Ele chamava-se Sæmingr, e os reis da Noruega fazem remontar as suas linhagens até ele, assim como os jarlar e outros homens nobres, tal como se diz no Háleygjatali.[3] Os Æsir tomaram para si esposas daquela terra, e alguns tomaram-nas para os seus filhos. Estas linhagens tornaram-se tão numerosas que se espalharam por Saxland, e de lá por toda a região norte, de tal modo que a língua daqueles Asiáticos se tornou a língua nativa em todas aquelas terras. Os homens julgam poder deduzir dos nomes dos seus antepassados que foram escritos, que esses nomes pertenciam àquela língua, e que os Æsir a trouxeram para aqui para o norte do mundo, para a Noruega e para a Suécia, para a Dinamarca e para a Saxónia. Mas em Inglaterra há nomes antigos de terras e de cidades que deixam entender que vieram de uma língua diferente daquela.
O dolo de Gylfi
[1] O rei Gylfi governava as terras que agora se chamam Suécia. Sobre ele conta-se que deu a uma mulher viajante, como recompensa por ela o ter entretido, a terra arável que, no seu reino, quatro bois conseguissem lavrar num dia e numa noite. Mas aquela mulher era da estirpe dos Æsir. O seu nome era Gefjun. Ela trouxe quatro bois de Jǫtunheimar,[4] no Norte, que eram filhos dela e de um gigante, e pô-los à frente de um arado. Mas o arado avançou com tanta força e tão fundo, que desarreigou a terra, e os bois arrastaram-na para o mar, para oeste, até pararem num estreito. Ali fixou Gefjun a terra e chamou-lhe Selund.[5] E no lugar de onde aquela terra se tinha erguido, passou a estar água. É o que agora se chama Lǫgrinn, na Suécia.[6] E o que em Lǫgrinn é uma baía, em Selund corresponde a um promontório. Assim diz Bragi, o antigo poeta:
Gefjun arrancou a Gylfi,
alegremente, o profundo halo da terra paterna,
até as bestas em corrida
fumegarem[7]: um acrescento à Dinamarca.[8]
E levavam os bois oito
luas da fronte,[9] quando avançavam
à frente da vasta ilha dos prados
saqueada, quatro cabeças.[10]
[2] O rei Gylfi era um homem sábio e perito em magia. Muito se admirou ele que o povo dos Æsir detivesse conhecimentos tais, ao ponto de todas as coisas acontecerem segundo a sua vontade. Perguntava-se se isto seria graças à própria natureza deles, ou se seria por causa dos poderes divinos aos quais eles prestavam culto. Ele pôs-se a caminho de Ásgarðr, indo em segredo e assumindo a aparência de um velho para se disfarçar. Mas os Æsir eram mais sábios por terem o dom da profecia. Assim, viram a viagem antes de ele vir e prepararam ilusões para o receber. Quando entrou na fortaleza, viu um salão tão alto que a custo lhe conseguia ver o topo. O tecto era coberto por escudos dourados, à semelhança de um telhado de ripas. Assim disse Þjóðólfr de Hvinir[11] que Valhǫll era revestida com escudos:
Nas costas faziam refulgir,
sendo atingidas por pedras,
as ripas do palácio de Sváfnir,
os varões hesitantes.[12]
Gylfi viu um homem à entrada do salão a fazer malabarismos com facas, e tinha sete no ar ao mesmo tempo. O homem começou por lhe perguntar o nome. Ele disse chamar-se Gangleri e ter vindo por caminhos secretos. Pediu-lhe um sítio onde pernoitar e perguntou de quem era aquele salão. O homem respondeu que era do rei deles.
«Mas eu posso levar-te a vê-lo. Então poderás perguntar-lhe tu próprio o nome.»
E o homem voltou a entrar no salão à frente dele. Ele seguiu-o e a porta fechou-se de imediato atrás dele. Ali viu muitas divisões e muita gente, uns entretidos com jogo, outros a beber, outros a lutar com armas. Olhou em volta e achou incríveis muitas das coisas que via. Então ele disse:
Todas as portas
antes de as passarmos
devem ser examinadas
pois é difícil saber
onde os inimigos
se sentam no banco em frente.
Ele viu três tronos, cada um deles acima do outro, e neles estavam sentados três homens, um em cada trono. Então, perguntou qual era o nome daqueles soberanos. O homem que o guiara para dentro do salão respondeu que aquele que estava sentado no trono mais baixo era o rei e chamava-se Hár, que o que estava a seguir se chamava Jafnhár, e que o que estava mais acima se chamava Þriði.[13] Então Hár perguntou ao recém-chegado se desejava algo mais, e disse-lhe que havia comida e bebida à disposição dele, tal como para todos ali no salão de Hár. Ele disse que primeiro queria perguntar se havia ali um homem sábio. Hár disse que ele não sairia dali são e salvo a menos que fosse mais sábio, e disse:
«Fica em pé enquanto perguntas,
ficará sentado aquele que responde.»
[3] Gangleri começou por dizer assim:
«Quem é o maior e o mais velho de todos os deuses?»
Hár respondeu:
«Na nossa língua, ele chama-se Alfǫðr, mas em Ásgarðr, o Antigo, ele tinha doze nomes. O primeiro é Alfǫðr,[14] o segundo Herran ou Herjan,[15] o terceiro Nikarr ou Hnikarr, o quarto Nikuz ou Hnikuðr, o quinta Fjǫlnir, o sexto Óski, o sétimo Ómi, o oitavo Bifliði ou Biflindi, ou nono Sviðarr, o décimo Sviðrir, o décimo primeiro Viðrir, o décimo segundo Jálg ou Jálkr.»
Então Gangleri perguntou:
«Onde está esse deus? Que poder tem ele e que feitos realizou?»
Hár disse:
«Ele vive através de todos os tempos, governa todo o seu reino e controla todas as coisas, grandes e pequenas.»
Em seguida, Jafnhár disse:
«Ele criou o céu e a terra e o ar e todas as coisas neles.»
Depois Þriði disse:
«O mais importante é ele ter feito o homem e ter-lhe dado a alma que há-de viver e nunca perecer, ainda que o corpo se decomponha até se tornar terra ou arda até se tornar cinza. E todos os homens que são justos hão-de viver e estar com ele no lugar chamado Gimlé ou Vingólf; mas os homens maus vão para Hel, e dali para Niflhel, que fica por baixo no nono mundo.»
Então Gangleri disse:
«O que fazia ele antes de o céu e a terra terem sido criados?»
E Hár respondeu:
«Nessa altura, ele estava com os Gigantes de Gelo.»
[4] Gangleri disse:
«Qual foi o início? Ou como começou? Ou que existia antes?»
Hár respondeu:
«Assim se diz na Vǫluspá:
Era o princípio dos tempos
quando nada existia,
não existia areia, nem mar,
nem as frias ondas.
Não havia terra à vista,
nem por cima o céu,
existia um grande vazio,
mas erva não.»
Em seguida, Jafnhár disse:
«Foi muitas eras antes de a terra ser criada, que Niflheimr foi feito, e no meio dele está a nascente chamada Hvergelmir, de onde correm os rios que se chamam assim: Svǫl, Gunnþrá, Fjǫrm, Fimbulþul, Slíðr e Hríð, Sylgr e Ylgr, Víð, Leiptr; e Gjǫll, que passa junto aos Portões de Hel.»[16]
Então disse Þriði:
«Porém, primeiro existiu no Sul um mundo chamado Muspell. É luminoso e quente. Aquela região está arder e em chamas, sendo intransponível para aqueles que são estrangeiros e não têm ali a sua pátria. Chama-se Sutr aquele que reside nos confins daquela terra para a defender. Ele tem uma espada flamejante, e no fim do mundo avançará e vencerá todos os deuses, e porá o mundo a arder com fogo. Assim se diz na Vǫluspá:
Surtr vem do sul
com o destruidor de ramos.[17]
Da espada brilha
o sol do deus dos caídos.[18]
Penhascos chocam
e trolls tombam.Varões percorrem o caminho de Hel
e fende-se o céu.»
[5] Gangleri disse: «Como era antes de existirem as linhagens dos homens e de a humanidade se multiplicar?»
Então Hár disse: «Aqueles rios chamados Élivágar vinham de tão longe desde a nascente, que a espuma venenosa que traziam consigo endureceu como a escória que escorre do fogo, e depois transformou-se em gelo. O gelo imobilizou-se deixando de escorrer, e sobre ele caiu o vapor que saía do veneno e que congelou em geada. A geada acumulou-se toda uma sobre a outra no Ginnungagap.»
Em seguida Jafnhár disse: «O Ginnungagap, na parte virada para as regiões do norte, encheu-se de uma pesada massa de gelo e de geada, e do interior vinham neblina e rajadas de vento. Mas a região sul do Ginnungagap desanuviava-se exposta às centelhas e fagulhas que voavam de Muspellsheimr.»
Depois Þriði disse: «Na mesma medida em que de Niflheimr vinha frio, o que estava virado para Muspell era quente e luminoso; mas o Ginnungagap era ameno como ar sem vento. E quando a geada se encontrou com a corrente de ar quente até derreter e gotejar, das gotas, com o poder daquele que enviara o calor, gerou-se vida, que tomou a forma de um homem e se chamava Ymir. Mas os Gigantes de Gelo chamam-lhe Aurgelmi, e dele descendem as gerações dos Gigantes de Gelo, tal como se diz no Vǫluspá Breve:
Todas as profetizas descendem
de Viðólfr,
todos os feiticeiros
de Vilmeiðr,
e todos os bruxos
de Svarthǫfði,
todos os gigantes
de Ymir.
E aqui diz assim o gigante Vafðnir:
de onde primeiro Aurgelmir veio
com os filhos dos gigantes,
gigante sábio:
Quando dos Élivágar
saltaram gotas de veneno
e cresceram até delas surgir um gigante,
nesse momento as nossas linhagens
tiveram todas a sua origem;
pelo que serão sempre tão ferozes.»[19]
Então Gangleri disse: «Como é que dele cresceram as estirpes e como é que aconteceu que mais homens viessem ao mundo? Acreditas ser um deus aquele de quem agora falaste?»
Hár respondeu: «Nós de modo algum o consideramos um deus. Ele e todos os seus descendentes eram malvados. Nós chamamos-lhes gigantes de gelo. Ora, diz-se que quando ele estava a dormir transpirou. Então debaixo do seu braço esquerdo cresceram um homem e uma mulher, e um dos seus pés teve um filho com o outro. E daí vêm as estirpes. Estes são os gigantes de gelo. Ao velho gigante de gelo chamamos-lhe nós Ymir.»
[6] Então Gangleri disse: «Onde habitava Ymir e de que vivia ele?»
«Assim que a geada gotejou, aconteceu que dela nasceu uma vaca chamada Auðhumla, e das tetas dela corriam quatro rios de leite. Ela alimentava Ymir.»
E Gangleri disse: «De que se alimentava a vaca?»
Hár disse: «Ela lambia as pedras cobertas de geada, que eram salgadas. E no primeiro dia em que ela lambeu as pedras, ao entardecer saiu de uma pedra o cabelo de um homem; no segundo dia, a cabeça de um homem; no terceiro dia, estava lá um homem inteiro, chamado Búri. Ele era belo de aspecto, eminente e poderoso. Teve um filho que se chamava Borr. Borr desposou uma mulher chamada Bestla, filha do gigante BǫlÞorn, e tiveram três filhos. Um chamava-se Óðinn, o outro Vili, o terceiro Vé. E eu acredito que Óðinn e os seus irmãos devem ser os senhores do céu e da terra; nós pensamos que Óðinn deve ser assim chamado. Assim se chama o homem que nós sabemos ser o mais eminente e o mais excelente, e vocês bem podem chamá-lo assim.»
[7] Então Gangleri disse: «Que acordo existia entre eles, e quais eram mais poderosos?»
Hár respondeu: «Os filhos de Borr mataram o gigante Ymir. Quando ele caiu, das suas feridas correu tanto sangue que com ele eles afogaram toda a raça dos gigantes de gelo, à excepção de um que escapou com a sua família. Os gigantes chamam-lhe Bergelmi. Ele subiu para a sua arca[20] com a mulher e ali ficaram a salvo. Deles descendem as linhagens dos gigantes de gelo. Assim se diz aqui:
Há muitos e muitos invernos
antes de a terra ser criada,
nasceu Bergelmir;
disto primeiro me lembro:
de aquele sábio gigante
ser colocado numa arca.[21]
[8] Gangleri retorquiu: «Então, se acreditas que eles sejam deuses, que fizeram os filhos de Borr?»
Hár disse: «Sobre isso não é pouco o que há para dizer. Eles pegaram em Ymir e levaram-no para o meio do Ginnungagap, e a partir dele fizeram a terra; do sangue, o mar e os lagos. A terra foi feita a partir da carne, mas as rochas a partir dos ossos: dos dentes e dos molares, e daqueles ossos que estavam partidos, fizeram eles as pedras e o cascalho.»
Depois Jafnhár disse: «Do sangue que correu das feridas, jorrando incessantemente, eles fizeram o mar, que dispuseram em círculo em torno do exterior da terra, depois de a terem feito e unido firmemente. Para a maioria dos homens, esse mar parecerá impossível de atravessar.»
Depois Þriði disse: «Eles pegaram também no crânio dele e com ele fizeram o céu, que puseram por cima da terra, com quatro cantos. Sob cada extremidade puseram um anão. Os anões chamavam-se assim: Austri, Vestri, Norðri, Suðri.[22] Depois, eles pegaram em faúlhas e centelhas que eram incessantemente expelidas de Muspellsheimr e puseram-nas no meio de Ginnungahiminn,[23] tanto por cima como por baixo, para iluminar o céu e a terra. Eles estabeleceram posições para todos os corpos ígneos, uns no céu, enquanto outros se moviam livres sob ele, ainda que eles tenham estabelecido a sua posição e determinado o seu curso. É dito nas tradições antigas que a partir deles se contaram os dias e o número dos anos, tal como se diz no Vǫluspá:
O Sol não sabia
onde tinha os seus aposentos,
a Lua não sabia
quanta força tinha.
As estrelas não sabiam
onde tinham os seus lugares.[24]
Assim era antes de isto existir sobre a terra.»[25]
Então Gangleri disse: «São grandes os acontecimentos de que agora ouço falar. É uma obra grandiosa e feita com perícia. Como foi disposta a terra?»
E Hár respondeu: «Ela é circular por fora e em torno do seu exterior estende-se o mar profundo. Ao longo da margem do mar, eles deram terras às estirpes dos gigantes para que nelas habitassem. Mas, no interior da terra, eles fizeram uma fortificação em redor do mundo, usando as pestanas do gigante Ymir. Àquela cidadela chamaram Miðgarð.
Eles pegaram também no cérebro dele, atiraram-no para o ar e dele fizeram as nuvens, tal como se diz aqui:
Da carne de Ymir
foi a terra criada,
e do sangue[26] o mar,
as montanhas, dos ossos,
as árvores, do cabelo,
e do crânio o céu.
E das pestanas dele
os benevolentes poderes fizeram
Miðgarð para os filhos dos homens,
e do cérebro dele
foram todas as severas
nuvens criadas.[27]
[9] Então Gangleri disse: «Parece-me uma grande obra a que eles fizeram, ao criarem a terra e o céu, ao fixarem o sol e os corpos celestes e ao ordenarem os dias. E de onde vieram os homens que povoam o mundo?»
Hár respondeu: «Quando eles, os filhos de Borr, andavam ao longo da orla do mar, encontraram duas árvores. Nelas pegaram e a partir delas moldaram homens. O primeiro[28] deu-lhes sopro e vida, o segundo, inteligência e movimento, o terceiro, semblante, fala, audição e visão. Deram-lhes vestes e nomes. O homem chamava-se Askr e a mulher Embla, e deles nasceu a raça humana, à qual foi dada morada sob Miðgarðr. Em seguida, no centro do mundo construíram eles para si um forte chamado Ásgarðr. Nós chamamos-lhe Tróia. Ali viviam os deuses e os seus descendentes, e desde então tiveram lugar muitos acontecimentos e vicissitudes tanto na terra como o céu. Há lá um lugar chamado Hliðskjálf, e quando Óðinn ali se sentava num trono, contemplava o mundo inteiro e as acções de todos os homens, compreendendo tudo aquilo que via. A sua mulher chamava-se Frigg, filha de Fjǫrgvinn. Deles nasceu a progénie a que nós chamamos as linhagens dos Æsir, que habitaram o antigo Ásgarðr e os reinos que lhe pertenciam. Essa é a raça divina. É, pois, por ele ser pai de todos os deuses e homens, e de tudo aquilo que por ele e pela sua força foi gerado, que pode ser chamado Alfǫðr. A Terra era sua filha e sua mulher. Com ela teve o primeiro filho, Ásaþórr. Ele era dotado de força e de vigor. Por isso vencia todos os seres vivos.
[10] Havia um gigante chamado Nǫrfi ou Narfi, que vivia em Jǫtunheimar. Ele tinha uma filha chamada Nótt.[29] Ela era negra e tinha cabelos escuros, tal como era próprio da sua estirpe. Foi dada em casamento a um homem chamado Naglfari. O filho deles chamava-se Auðr. Depois, ela foi dada em casamento a um homem chamado Annarr. A filha deles chamava-se Jǫrð. Por fim, foi desposada por Dellingr, da estirpe dos Æsir. O filho deles era Dagr.[30] Ele era luminoso e belo como o seu pai. Então Alfǫðr tomou Nótt e Dagr, o filho dela, deu-lhes dois cavalos e dois carros, e pô-los no céu, para que cavalgassem à volta da terra em cada duas metades de um dia. Nótt cavalga à frente com o cavalo chamado Hrímfaxi,[31] que todas as manhãs orvalha a terra com as gotas do seu freio. O cavalo que Dagr tem chama-se Skinfaxi,[32] e com a sua crina ilumina o céu inteiro e a terra.»
[11] Então Gangleri disse: «Como controla ele o movimento do sol e da lua?»
Hár disse: «Havia um homem chamado Mundilfœri, que tinha dois filhos. Eles eram tão belos e graciosos que ele chamou ao filho Máni e à filha Sól,[33] e deu-a em casamento a um homem chamado Glenr. Mas os deuses encolerizaram-se com esta insolência e tomaram os irmãos e puseram-nos no céu. Fizeram Sól montar os cavalos que puxam o sol, que, para iluminar o mundo, os deuses criaram a partir da matéria incandescente que voava de Muspellsheimr. Aqueles cavalos chamam-se assim: Árvakr e Alsviðr. E sob os ombros dos cavalos, para arrefecê-los, os deuses puseram dois foles, que em algumas fontes são chamados ísarnkol.[34] Máni dirige o curso da lua e controla os crescentes e os minguantes. Da terra ele tomou duas crianças, que se chamavam assim: Bil e Hjúki. Elas vieram da fonte chamada Byrgir e levavam aos ombros o balde chamado Sœgr e a vara chamada Simul. O nome do pai deles era Viðfinnr. Estas crianças seguem Máni, tal como se pode ver a partir da terra.»
[12] Então Gangleri disse: «O sol avança depressa, quase como se tivesse medo, e não se apressaria mais se temesse a sua morte.»
Hár respondeu: «Não é estranho que ela avance apressada: perto vai aquele que a persegue. E ela não tem como escapar a não ser fugindo.»
Então Gangleri disse: «Quem lhe causa essa moléstia?»
Hár disse: «São dois lobos, e o que a persegue chama-se Skǫll. Ela teme-o e ele há-de apanhá-la. Chama-se Hati Hróðvitnisson aquele que corre à frente dela e que quer apanhar a lua. E assim há-de acontecer.»
Então Gangleri disse: «Qual é a linhagem dos lobos?»
Hár disse: «A este de Miðgarðr, na floresta chamada Járnviðr,[35] vivia uma giganta. Naquela floresta, viviam mulheres trolls chamadas Járnviðjur. A velha giganta deu à luz como filhos muitos gigantes, e todos eles em corpos de lobo. Daí vieram os lobos. E diz-se que desta estirpe virá um que será o mais poderoso, e que se chama Mánagarmr.[36] Ele encher-se-á com a carne de todos os homens que morrerem e engolirá a lua, salpicando de sangue o céu e todo o ar. Por isso perderá o sol o seu brilho, e então os ventos estarão agitados e rugirão de um lado para o outro. Assim é dito no Vǫluspá:
No leste mora a velha
em Járnviðr
e ali criou
a prole de Fenrir;
de entre todos eles virá
aquele que será
o arrebatador da lua
na pele de um troll.
Enche-se da vida
de homens perdidos,
tinge de vermelho a sede dos poderes
com encarnado cruor;
negros se tornam os raios de sol
durante os verões seguintes,
o tempo, todo ele ameaçador.
Quereis saber mais? E o quê?»
[13] Então Gangleri disse: «Qual é o caminho da terra para o céu?»
Ao que Hár respondeu, rindo-se: «Agora não foi com inteligência que perguntaste. Não te disseram que os deuses fizeram uma ponte para o céu e que se chama Bifrǫst? Já a deves ter visto. É possível que lhe chames arco-íris. Ela tem três cores, é resistente e feita com mais arte e engenho do que as demais construções. Mas por muito resistente que seja, ainda assim quebrar-se-á quando os filhos de Muspell vierem e cavalgarem sobre ela. E os cavalos deles nadarão sobre grandes rios. Assim avançarão eles.»
Então Gangleri disse: «Não me parece que os deuses tenham construído a ponte com boa-fé, uma vez que ela se poderá quebrar e que eles a podem construir como quiserem.»
Hár retorquiu: «Os deuses não merecem ser censurados por esta obra. Bifrǫst é uma boa ponte, mas nada do que existe neste mundo poderá estar a salvo quando os filhos de Muspell espalharem devastação.»
[14] Gangleri perguntou: «O que fez Alfǫðr quando Ásgarðr foi construído?»
Hár respondeu: «No princípio, ele designou governantes e ordenou-lhes que com ele decidissem sobre os destinos dos homens e deliberassem sobre a disposição da cidade. Isto passou-se no lugar chamado Iðavǫllr, no centro da cidade. A sua primeira obra foi a construção do templo no interior do qual ficavam os seus assentos, doze para além do trono que Alfǫðr detinha. Aquele é o maior e mais bem construído edifício do mundo. Por dentro e por fora, é como se fosse um único bloco de ouro. Os homens chamam-lhe Glaðsheim. Um outro salão fizeram eles, um santuário que as deusas detinham, esplêndido. Àquele edifício os homens chamavam Vingólf. Logo a seguir, construíram o lugar onde puseram a forja, e fizeram ainda um martelo, tenazes e uma bigorna, e com estas fizeram todas as outras ferramentas. Depois disto, trabalharam metal, pedra e madeira. E aquele metal chamado ouro era tão abundante, que todos os utensílios domésticos e todos os equipamentos de montar que eles possuíam eram de ouro; e àquele tempo deu-se o nome de Idade do Ouro, antes de ter sido arruinado pela chegada das mulheres que vieram de Jǫtunheimr. Depois, os deuses sentaram-se nos seus assentos, reuniram-se em consílio e relembraram de que modo os anões tinham sido gerados no solo e debaixo da terra, como larvas em carne. Os anões tinham sido primeiro moldados e tomado vida na carne de Ymir, e eram então larvas. Mas por decreto dos deuses tornaram-se conscientes com inteligência humana e tinham a forma de homens. Viviam, contudo, na terra e nas pedras. Moðsognir era um anão e Durinn outro.»