Alguns especialistas em bioacústica defendem que foram as aves canoras que inspiraram os seres humanos, nos seus primórdios, a produzir sons mais melódicos do que berros, uivos e pancadas. Ajudar a organizar um número da Forma de Vida dedicado aos pássaros foi uma oportunidade para procurar ensaios e outros textos mais próximos do interesse pela melodia e pelo prazer que esta suscita do que pela fase anterior da humanidade.
Os pássaros parecem, sem dúvida, um tema com grande potencial para suscitar prazer e divertimento. Quando se ousa falar do prazer de ler e escrever em contexto académico, no entanto, corre-se o risco de receber logo um olhar carrancudo e ouvir: «isto é ciência, não divertimento.» Se o interlocutor não estiver muito familiarizado com o que de melhor se lê e escreve neste contexto, ouve-se muitas vezes também falar de aridez e de sensaboria. É verdade que muitos textos académicos são de difícil legibilidade. Os melhores ensaios deste género, no entanto, transmitem um prazer de pensar difícil de encontrar noutras publicações. Encontramos neles uma leveza de pensamento em que, como Italo Calvino diz que certa poesia faz, o conhecimento do mundo se torna dissolução da densidade do mundo, aliada à percepção do que é infinitamente minúsculo e está sempre em movimento. Ajudar a organizar um número da Forma de Vida dedicado aos pássaros foi uma oportunidade para procurar essa leveza, situada nos antípodas da frivolidade.
Na primeira secção deste número incluímos ensaios relacionados com a observação de pássaros. Curiosamente, os três textos abordam as dificuldades — não só práticas mas também filosóficas — associadas a esta actividade, sublinhando a possibilidade de os pássaros nos ajudarem a (re)definir e compreender melhor a nossa humanidade.
Em «Paciência e Camuflagem», Gustavo Rubim reflecte sobre o talento dos pássaros para a invisibilidade e para o desaparecimento. Esta tendência aponta também para uma regra geral da existência dos seres vivos: «quem está vivo sempre desaparece». Quando o autor fala da sua preferência por fotografias onde o olhar da ave é nítido — «o olhar da ave é onde a fotografia começa a fazer sentido — e onde definitivamente o perde» —, pensamos imediatamente no modo como o sentido se articula com tudo o que o rodeia e também na facilidade com que se desvanece. À sua maneira, «Paciência e Camuflagem» é um ensaio não só sobre observação, mas também sobre questões de vida ou de morte.
Em «Part Hawk, Part Man», o livro The Peregrine, de A. J. Baker, inspira a Brett Bourbon um texto sobre a possibilidade de fazer sentido do humano a partir da observação de pássaros. Bourbon lembra que ser humano é participar num contexto de sentido partilhado — faz-se sempre sentido com. Nota também que ser humano é tentar redefinir-se como mais do que humano: «We are nothing if not something else.» [Nada somos senão outra coisa.] De acordo com Bourbon, fazer sentido depende da disponibilidade para nos colocarmos em questão e em relação com o que nos rodeia e é diferente de nós: «who we are must be at stake» [quem somos tem de estar em questão].
Em «Pássaros da Serra e da Cidade», Helena Carneiro e Telmo Rodrigues descrevem duas visitas em busca de pássaros — uma às serras d’Aire e Candeeiros, outra à cidade de Leiria —, guiadas por José Artur Pinto, um professor de matemática e ciências que promove a articulação das actividades escolares com o conhecimento da natureza circundante. Tanto na serra como na cidade se confirma o talento dos pássaros para a invisibilidade e o desaparecimento de que Gustavo Rubim fala no seu ensaio. Outra noção interessante é a de a observação de pássaros em serra ser mais difícil do que em contexto urbano, pelo facto de as aves da serra não estarem habituadas à presença humana, enquanto os pássaros da cidade estão adaptados ao convívio com a nossa espécie, embora nem sempre reparemos nas ligações entre as nossas vidas e as deles.
Na segunda secção publicamos textos que abordam fins diferentes para a produção de imagens de pássaros.
Em a «A Narrativa Ornitológica», Francisca Cavaleiro traça um panorama tanto da ilustração ornitológica ao longo do tempo como do interesse das pessoas por imagens de pássaros.
Em «Edward Lear ao Voo do Pássaro», Conceição Pereira aborda o caso muito particular do escritor e artista visual Edward Lear (1812-1888), que cultivou o seu interesse por pássaros não só no seu trabalho de ilustração científica, mas também na ilustração dos seus próprios limericks e de outros textos de cariz pessoal. Na obra de Lear, os papagaios, em particular, parecem funcionar como uma espécie de símbolo da actividade de escrever limericks, pelo facto de usarem palavras e sons sem investimento no seu sentido convencional.
Em «Dar Asas ao Pensamento», Tomás Castro aborda o caso dos bestiários e aviários em que as aves funcionam como tópicos de um programa moral cristológico, fornecendo uma linguagem para transmitir lições moralizantes.
Na terceira secção reunimos ensaios sobre literatura e artes visuais.
Teresa Bartolomei escreve sobre a presença de pássaros nos textos de Coleridge, Borges, Ovídio, Keats, Shelley, Shakespeare, Baudelaire, Hans Christian Andersen, Yeats, Wallace Stevens, Emily Dickinson e Clarice Lispector.
Joana Matos Frias reflecte sobre o papel dos pássaros na obra de Ruy Cinatti, especialmente em «Conto do Ossobó», demonstrando que o destino de Ossobó anuncia uma poética que privilegia a fidelidade ao visível como aquilo que aparece, e em que o sujeito nasce ao mesmo tempo que o objecto. Neste ensaio recorda-se também que, em textos como Conversa de Rotina, Cinatti relaciona os poetas com os pássaros, associando a luz solar, o despertar das aves e a criação poética: «Acordam então cedo, / com o sol nos olhos. // Celebram intensa / madrugada».
A partir da instalação «Revoada», da artista Anna Paola Protasio, Cesar Kiraly pensa sobre o desejo da humanidade de voar como os pássaros, encarando-os como uma espécie de destino paralelo, ou enquanto sinais ou imagens do que pode acontecer.
Cristina Robalo escreve sobre Fée Couturière (1963), uma escultura de Louise Bourgeois com a forma de um ninho, propondo uma semelhança entre a actividade da artista e a construção dos ninhos. O movimento de entrada e saída do pássaro no ninho é relacionado com os movimentos da agulha nas actividades de costurar e bordar, praticadas por Bourgeois inicialmente enquanto responsável pelo restauro de tapeçarias e depois como artista construindo a sua própria obra. Como uma ave construindo o ninho, Bourgeois usa a agulha para unir o que ficou solto no passado, reparando, reconstruindo e recriando, numa dialéctica entre interior e exterior.
Na secção literária, os pássaros continuam a servir de pretexto para os prazeres da liberdade e da diversidade.
Adriana Crespo, ela própria pianista, explora em terza rima a melodia, as perspectivas e o léxico dos nomes dos pássaros.
Rui Manuel Amaral assina um conjunto de textos insólitos e pouco convencionais que exploram o humor e o inesperado.
Inês Dias lembra que escrever por vezes exige não só recordar as lições de Ícaro, mas também dominar uma «teoria dos pássaros» capaz de guardar «a imagem/de pássaros que nunca nascerão.»
No poema «Colibri», traduzido por Frederico Pedreira, D. H. Lawrence, inspirado pelo único pássaro que supostamente pode voar para trás e para a frente, brinca com o «telescópio do Tempo».
As belíssimas ilustrações de Isa Figueira acompanham todos os textos, demonstrando que a atenção, esse valor em desuso, ainda produz resultados.
Em suma, tentámos organizar um número com perspectivas e vozes diferentes, numa espécie de homenagem à capacidade dos pássaros para, voando, mudarem de ponto de vista e observarem o mundo a partir de vários lugares. Íamos só falar de pássaros, mas pensámos sobre o que é ser humano, como se faz sentido, estratégias de observação e desaparecimento, a nossa relação com o que nos rodeia e os modos como os pássaros nos inspiram a escrever e a fazer arte e conhecimento. Não é totalmente inadmissível a hipótese de dizermos e lermos as coisas mais interessantes precisamente quando nos divertimos.
Nota lexical:
Usamos a palavra «pássaros» como sinónimo da palavra «aves», considerando que o primeiro termo não é uma designação exclusiva dos integrantes da ordem dos Passeriformes. (Para mais informação sobre esta questão, ver, por exemplo, Fernando Costa Straube, «Todas as Aves São Pássaros», Atualidades Ornitológicas N.º 148 - Março/Abril 2009.) A título informativo, acrescente-se que as corujas pertencem à ordem dos Strigiformes, enquanto os colibris pertencem à dos Apodiformes, e não à dos Passeriformes.