— Ó James, parece que temos mais um momento de homenagem ao O’Neill. Para um escritor que reivindicou jocosamente uma festa de homenagem, a propósito dos 25 anos da sua estreia literária, numa crónica de A Capital, a coisa está a tornar-se um caso sério de celebração póstuma. Este número da Forma de Vida celebra o centenário de O’Neill — que já passou, é verdade — e chega numa data muito próxima de mais um aniversário da sua morte, em agosto de 1986, num dos meses em que dizem que não acontece nada… Datas e efemérides à parte, o importante é celebrar alguém que continua a falar e a dar que falar. É caso para dizer «Viva o O’Neill», não?
— É verdade, Joana. Há quem ache que efemérides são uma exumação e uma desculpa. Mas podia ser de outra forma? É uma desculpa para continuar a falar de alguém que admiramos. O’Neill fazia essa espécie de exumação em crónicas ao falar de escritores que admirava. Será que dizer que era «apenas um leitor» lhe oferecia um passe para o fazer? Sendo que há textos neste número que colocam O’Neill ao lado de autores que o precederam e sucederam, parece-me um gesto semelhante. O que seria um diálogo falhado sobre O’Neill? É questão de opiniães?
— Não sei bem o que seria um diálogo falhado sobre O’Neill — é o que estamos talvez a experimentar sem sucesso —, mas sei o que seria um diálogo falhado para O’Neill, a julgar pelo que escreve numa crónica para a Flama, em maio de 1974. Num momento social e político em que o diálogo felizmente voltava a ser possível, O’Neill questiona se seria pessimismo «encetar diálogos… falhados», do estilo: «— Vais à pesca? / — Não. Vou à pesca. / — Ah, pensava que ias à pesca…». Seria isto, ainda O’Neill, um «paradigma de incomunicação perfeita». Os diálogos falhados não comunicam outra coisa que não o seu falhanço. Já este número da Forma de Vida dedicado a O’Neill parece particularmente bem-sucedido, com um número assinalável de leituras sobre O’Neill, sobre Alexandre, o grande, e até textos sob a influência de O’Neill… e da sua fanhosice.
— É interessante que vários dos textos aqui reunidos convocam formas que O’Neill apreciava, como o inventário, há uns em forma colagem e vários ao jeito crónica. Nesse sentido são textos sobre e para o poeta, a homenagear formas que não só cultivou, mas que admirava nos outros. É também por isso que os textos não comunicam propriamente entre si, mas estão neste número em forma de salgalhada (outra forma de desorganização cara a O’Neill). E as fotografias? É bilros ou talento?
— «Talento? / Tolentino? / Tolos!» Este diálogo está a ficar uma bela salga(ri)lhada. Quanto a talento ou bilros, a obra de O’Neill é um exemplo virtuoso da conciliação dessas duas coisas, entendendo aqui bilros como o trabalho exigente do verso. É, como nos fala numa entrevista, o desatavio voluntário, difícil de conseguir; ou, se quiser, o tal abandono vigiado. No caso das fotografias, O’Neill é talentosíssimo também. Temos aqui duas da sua autoria: naquela do restaurante do Bairro Alto, O’Neill deve ter sido particularmente sensível aos dizeres dos azulejos, não acha? Um deles diz «O falso amigo é o pior dos inimigos». Mas maravilhoso é perceber que na fotografia dentro da fotografia, debaixo da ventoinha, está a Josephine Baker, que passou por Portugal várias vezes durante o Estado Novo, regime pavoroso que O’Neill teve de suportar durante grande parte da sua vida… E não houve tropeço de ternura que o salvasse deste triste fado, afinal.
— Então para ele as fotografias, como as pesquisas, faziam-se em casa... Também parece ser nesse sentido que incita à demissão geral do talento, mais especificamente, do talento «que não seja o de talento no talento!», como disse numa crónica para o Diário de Lisboa em ‘68. Apesar de todas as suas injúrias ao neorrealismo, sendo esta uma de muitas, talvez possamos dizer que um dos assuntos que mais lhe interessava é a reconciliação, o meio-termo. E talvez entre aí a sua poesia, como forma de «[a]liviar os outros, e a [si] primeiro, da importância que julgamos ter» porque «[s]ó aliviados podemos tirar o ombro da ombreira e partir fraternalmente, ombro a ombro, para melhores dias, que o mesmo é dizer para dias mais verdadeiros». Não é pouco como projeto, não acha?
—Nada pouco mesmo, e talvez esteja na passagem que o James cita do texto de 1972, «o poeta fala do seu livro», de Entre a Cortina e a Vidraça, — em particular o «ombro a ombro» — uma boa súmula da consciência política de O’Neill, ele que foi acusado de não ter sido participante na ação política. A verdade é que O’Neill, nesse caminho fraternal por dias mais verdadeiros, é um bom exemplo do que disse do Chico Buarque: não está «nem à frente, nem atrá(i)s», está «no sítio», ao lado de quem quiser caminhar com ele ombro a ombro. E há preocupação política maior que desejar fazer boa companhia? É assim que remata esse belo texto, não é?
— Este apelo a tirar o «ombro da ombreira» faz lembrar o episódio do baile na livraria de Mário Cesariny, organizado para apresentar o seu livro mais recente no início dos anos 70. Quando viu que um «pequeno representante» da Poesia 61 esteve o tempo todo à porta da rua, admoestou-o por não participar no baile. É assim que O’Neill termina esse texto da mesma altura e é também nesse mesmo espírito que reunimos estes textos em sua homenagem: «Façamos um pouco de boa companhia, sim?»
Vem ao baile vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar.
Agradecimentos:
Deixamos um agradecimento muito especial a Teresa Patrício Gouveia e a Afonso O’Neill pela cedência das fotografias para este número da Forma de Vida dedicado aos 100 anos de Alexandre O’Neill.