Nenhuma coleção de ensaios está alguma vez completa. Esta que aqui se apresenta não é exceção e, arrisco-me a dizer, talvez a incompletude tome aqui uma forma singular. Trata-se de uma coleção de ensaios filosóficos e feministas, ou filosóficos sobre feminismo, ou feministas sobre filosofia, se é que a distinção é perscrutável. Uma excursão, por isso, em filosofia feminista, que percorre alguns dos seus mais importantes caminhos ― desde a epistemologia, à ontologia, à ética, à própria revisão do cânone filosófico ―, que cria novos atalhos ― e este é decerto um dos aspetos mais surpreendentes deste volume ―, mas deixa tantos outros por explorar. Necessariamente. Tal como todo o pensamento filosófico, a filosofia feminista é, por definição, um campo aberto, crítico, que contém em si simultaneamente a capacidade de se ramificar ad infinitum e de regressar a si mesma num exercício de autorreflexão. Por isso, a principal proposta deste número especial da Forma de Vida é, em primeiro lugar, acompanhar a leitora num passeio por algumas das possibilidades criadas pela associação da filosofia ao feminismo ― as suas variantes e variações.

A publicação deste número tem porventura um outro propósito, mais ambicioso, que deve ser declarado, nomeadamente: contribuir de forma significativa para o estabelecimento da filosofia feminista como disciplina académica em Portugal. De facto, não obstante a existência de um corpo de investigação considerável em torno de tópicos feministas, questões de género e outras problemáticas sociais no âmbito da filosofia, o crescente interesse por estes temas não encontra tradução institucional correspondente. Se é evidente que o feminismo como movimento político ― e, por isso, os ideais de justiça social que lhe subjazem ― é o primeiro lesado por este estado de coisas, é igualmente verdade que a própria filosofia ― e, em concreto, a saúde do meio filosófico português ― sai prejudicada quando sistematicamente privada da possibilidade de se debruçar sobre assuntos que são hoje, talvez mais do que nunca, centrais na esfera e no discurso públicos. Isto ocorre, como é sabido, ao arrepio do que acontece nos países em que a filosofia profissional encontra maior acolhimento institucional e em que os cursos de filosofia são mais procurados pelas gerações mais novas.

Faço aqui três adendas. A primeira é que, graças ao trabalho excecional, e à persistência, de filósofas tais como Fernanda da Silva Henriques ou Maria Luísa Ribeiro Ferreira, que generosamente aceitaram o nosso convite para contribuir para este número, a filosofia feminista não foi completamente negligenciada no nosso país. Se contamos, em pleno século XXI, com projetos de investigação filosófica sobre feminismo ou sobre mulheres, devemo-lo, em larga medida, à sua dinamização e coragem. E, no entanto, estamos ainda longe de encarar essa área como um domínio de estudos autónomo, merecedor do seu devido lugar nos currículos de filosofia. A segunda adenda visa reconhecer o contributo indiscutível de disciplinas académicas congéneres à filosofia ― tais como a literatura, a sociologia e, mais recentemente, os estudos de género ― para o desenvolvimento de um tipo de pensamento feminista que pode ser dito verdadeiramente filosófico, ainda que raras vezes tenha sido merecedor do carimbo da filosofia tradicional. Saliento aqui o trabalho de Ana Luísa Amaral, que nos deixou recentemente e cedo demais, e cujas reflexões sobre género, a introdução de várias autoras feministas internacionais no contexto português e, claro, a poesia, marcaram tantas de nós em diferentes fases do nosso percurso pessoal e profissional. Por fim, faço uma terceira adenda para assinalar o papel desempenhado pelo ativismo feminista ― desde as suas origens frequentemente ignoradas nos finais do século XIX mas, em particular, em anos recentes ― na divulgação de textos, recursos e dos mais atuais debates na prática e teoria feminista. A nova vaga de ativismo feminista é porventura a grande responsável por um renovado interesse na teoria feminista que levou tantas de nós a transportar questões, de outro modo negligenciadas, para a academia, mas sobretudo, por uma renovação do compromisso para com a luta pela libertação das mulheres e de outros grupos marginalizados perante as estruturas patriarcais.

Neste ponto, a leitora talvez questione a minha insistência na ideia de que os textos que se seguem são, especificamente, ensaios em filosofia feminista, por oposição a, suponhamos, textos que se inserem no mais vasto âmbito daquilo que designamos por «teoria feminista». Gostaria de falar um pouco sobre isto.

Quando o João Esteves da Silva, coeditor deste número especial, e o Telmo Rodrigues, diretor da Forma de Vida, me convidaram para editar uma publicação sobre feminismo, algo foi imediatamente claro para mim: era preciso, sim, publicar este número e era preciso que fosse uma publicação sobre filosofia feminista. Aceitei o desafio e logo fui confrontada com um segundo momento de menor clareza, pautado por uma dúvida que se propunha a testar a robustez da certeza inicial: o que queremos dizer com filosofia feminista? O que é o mesmo que perguntar: porque é que é importante falar em filosofia em vez de teoria feminista, essa noção mais habitual e talvez menos problemática? Para começar a responder a essa pergunta, somos chamadas a pensar no próprio conceito de filosofia, naquilo que eventualmente a distingue de outras atividades, disciplinas académicas ou formatos escritos. É claro que esta publicação ― ou, em todo o caso, esta introdução à publicação ― não se poderia propor a responder de forma fechada a uma pergunta que, volvidos milénios desde que temos registo das primeiras sociedades autorreflexivas, continua em aberto. Em todo o caso, foi-me útil, inicialmente, pensar no caráter distintivo da filosofia feminista por oposição a outras disciplinas académicas como sejam a sociologia, o direito, a antropologia, a psicologia, etc.

Através dessa distinção entre filosofia e restantes disciplinas académicas, é possível chegar a uma conceção de filosofia feminista em que o que está em causa é uma aplicação das ferramentas filosóficas que estão à nossa disposição, ou do próprio cânone filosófico, aos novos tópicos que nos chegam da prática e teoria feminista. Ao mesmo tempo, historicamente falando, o feminismo não entrou na academia e, em particular, nos departamentos de filosofia para ser mais uma área de estudos, e muito menos para ser um apêndice das áreas já estabelecidas. O feminismo entrou na academia, em larga medida, para a pôr em causa a partir de uma perspetiva eminentemente prática, i.e., proveniente do mundo social. Não o fez, é claro, como alguns sugerem, gratuitamente ou por capricho. Fê-lo porque identificou uma ligação estreita entre a exclusão das mulheres e de outros grupos marginalizados dos meios académicos e certos pressupostos teóricos aí veiculados. Por outras palavras, o que as autoras feministas denunciavam não era apenas a ausência de certos grupos sociais dos currículos universitários, senão o próprio conteúdo desses currículos. E isto parece deixar-nos com uma imagem contraditória do que é a filosofia feminista: por um lado, uma tentativa de dar sentido a certas reivindicações importantes para a vida das mulheres a partir das ferramentas da epistemologia, da ontologia ou da filosofia da linguagem tradicionais e, por outro, um questionamento dos fundamentos teóricos e alicerces metodológicos dessas mesmas áreas. Acontece que é mesmo essa a relação do feminismo com a filosofia académica: uma utilização crítica, e constante reavaliação, dos recursos filosóficos de que aí dispõe para melhorar as condições materiais das vidas das mulheres na sociedade.

Numa ótica porventura mais construtiva, gosto de pensar nesta associação entre a filosofia e o feminismo como uma relação de reciprocidade. Nesse sentido, uma etapa importante dessa relação é o momento em que o pensamento filosófico se coloca ao serviço dos propósitos emancipatórios do feminismo na denúncia de visões do mundo androcêntricas, da falsa universalidade da tradição filosófica, da pretensa neutralidade das categorias que emprega, da ininteligibilidade da abstração metodológica por si professada. O pensamento feminista devolve o gesto, questionando: estaremos perante uma visão do mundo radicalmente diferente? E isto coloca-nos no olho do furacão: o ultraje filosófico da não-neutralidade epistémica. Ou seja, ao revelar a sua fundamentação em pressupostos androcêntricos, ao assumir as consequências epistémicas e cognitivas da ausência das mulheres e de outros grupos marginalizados do cânone filosófico ocidental, a filosofia é desafiada a reconhecer a importância do caráter perspetival do conhecimento e, concretamente, da perspetiva feminista, para a realização de uma prática filosófica mais rigorosa. A não-neutralidade, note-se, não é um valor consensual entre as filósofas feministas, nem tampouco defendido por todas as autoras deste número. Creio, porém, ser possível afirmar que a crítica às conceções tradicionais de neutralidade, objetividade e universalidade enquanto recursos patriarcais que servem a manutenção da opressão das mulheres é um tema transversal a toda a filosofia feminista que instiga a filosofia como um todo a repensar os seus pressupostos teóricos.

Mas, é claro, a filosofia não é apenas uma disciplina académica. De facto, a utilidade desse primeiro esforço de defini-la por oposição a outras disciplinas encontra os seus próprios limites na interdisciplinaridade e na própria crítica que são, de resto, pilares essenciais da produção teórica feminista. Se, por outro lado, nos for possível adotar uma conceção mais ampla do que é a filosofia, teremos de admitir que nem toda a filosofia feminista foi feita a partir da disciplina académica homónima, nem dialogou diretamente com os grandes filósofos que povoam os currículos escolares. Talvez por esse motivo, não tenha, durante tanto tempo, merecido a distinção «filosofia». Mas pensemos bem: porque não estudar Mary Wollstonecraft a par de Rousseau? Simone de Beauvoir no contexto do existencialismo? bell hooks como uma das grandes pensadoras políticas contemporâneas? O fenómeno não é apenas anacrónico: do mesmo modo que resistimos a uma identificação dos textos feministas clássicos com a filosofia, mantemo-nos hoje relutantes em conceber o pensamento não-ocidental ― e, concretamente, a produção feminista do sul global, bem como o pensamento emancipatório de tantos outros movimentos de mulheres que recusam a categoria ocidental «feminismo» ― como filosofia. Pelo que, insisto, se nos for possível ampliar a nossa conceção de filosofia de modo a incluir aí formas de pensamento crítico que não estão preocupadas em seguir os moldes da tradição filosófica ocidental, senão em imaginar modos radicalmente novos de olhar para o mundo, então talvez nos seja possível identificar a filosofia feminista como o próprio caráter crítico da produção teórica feminista.

Do mesmo modo, é possível dizer que também as ciências sociais que informam a filosofia feminista  envolvem, elas próprias, uma dimensão filosófica. E isso é verdade se encararmos a filosofia como esse esforço de refletir criticamente sobre os nossos conceitos, esquemas e alicerces teóricos. Qualquer ciência social que se proponha a refletir sobre os seus próprios fundamentos estará, nesse sentido, a fazer filosofia. Do mesmo modo, ou talvez de forma ainda mais gritante, a literatura parece concentrar em si o poder de evocar respostas emocionais que nos forçam a uma reperspetivação do mundo, onde métodos puramente argumentativos falham. A filosofia feminista, como a filosofia em geral, entra em cena quando chamada a pensar, não só as categorias que alicerçam as nossas investigações em todas estas áreas, como as próprias estruturas da sociedade. Trata-se, pois, da própria radicalidade da teoria feminista.

Enquanto pensava nestas questões, tornava-se claro: este deveria ser um número que fizesse justiça à própria tradição crítica feminista, procurando reunir textos que contribuíssem precisamente para essa reciprocidade que carateriza a relação entre a filosofia e a teoria feminista através de diferentes abordagens, perspetivas e fazendo uso de diferentes ferramentas. Mas este continua a ser um volume especificamente dedicado à filosofia feminista, isto é, se a leitora aceitar, connosco, adotar uma conceção de filosofia a que poderíamos chamar «aberta», por oposição a uma conceção rígida que nos limitasse aos constrangimentos da filosofia académica. Enquanto coeditora desta publicação, devo notar que esse não é um contexto que me seja estranho e, pessoalmente, reconheço os méritos do formato «académico» do artigo, frequentemente pautado por ideais de sistematicidade, rigor e não-ambiguidade. A esses somam-se, no entanto, valores como a honestidade intelectual, a clareza, a originalidade e a pertinência, aspirações que o artigo académico partilha com outros formatos. Foram estes valores que decidimos privilegiar quando optámos por incluir neste número textos que, hoje em dia, dificilmente seriam publicados numa revista de filosofia profissional. Por uma questão de orientação e facilitação da leitura, porém, optámos por organizar os textos em três secções, sendo que as duas primeiras dão conta desta divergência de formatos, e a terceira consiste numa secção especial de entrevistas traduzidas.

Os textos da primeira secção, aí organizados sob a égide da noção de «Variantes», são, à primeira vista, artigos que seguem esse modelo mais académico. E, no entanto, todos eles extravasam em larga medida as fronteiras da disciplina e fazem-no, precisamente, por serem textos feministas. Os recursos da filosofia feminista são aqui usados, de variadas formas, para desafiar os cânones filosóficos patriarcais e, desse modo, provocar a própria filosofia como disciplina académica. Ao mesmo tempo, as autoras também recorrem à tradição filosófica para iluminar certos aspetos do mundo social que nos ajudam a compreender as relações e os sistemas de género vigentes. Contribuem para esta secção Fernanda da Silva Henriques, Jasmin Trächtler, Lisa McKeown, Luísa Afonso Soares, Manuela Teles, Maria Luísa Ribeiro Ferreira, p. feijó e Sandra Laugier, com textos que partem dessa consciência filosófica crítica de que venho falando. Estas variantes feministas divergem a mais do que um nível: os seus propósitos são distintos, os seus temas diversos, os seus estilos ricos na sua multiplicidade e as suas visões filosóficas, em alguns casos, contraditórias. Unem-nos essa postura crítica perante a filosofia tradicional e a suspeita de que as conceções misóginas aí veiculadas, o seu caráter amplamente androcêntrico e a ausência das mulheres do cânone filosófico não podem ser dissociados da opressão sexista nas nossas sociedades.

O segundo conjunto de textos foi organizado numa secção cujo título, «Variações», procura indicar, em primeiro lugar, um desvio do formato académico que resulta numa diversidade estilística evidente. Do ensaio ao texto autobiográfico, entre breves e extensas reflexões, as autoras Ana de Miguel, Isabel Castro Silva, Maria Filomena Molder, Tatiana Salem Levy, Teresa Cunha e Tracy Llanera reclamam para o trabalho filosófico um espaço textual que rejeita os constrangimentos da filosofia profissional através de uma verdadeira prática que é já ela própria feminista. Mas a ideia de variações indica também, em alguns casos, uma dissonância com a própria teoria feminista em si. Aqui escreve-se sobre mulheres, para mulheres; fala-se sobre relações entre mulheres e outras mulheres, sobre mães, irmãs e amigas, e sobre relações entre mulheres e homens; também se invocam filósofas e autoras feministas, mas é sobretudo na voz e na subjetividade das autoras que o pensamento crítico aflora. Por outras palavras, se é certo que estas autoras nos trazem temas feministas, fazem-no por vezes sem recorrer aos códigos da própria tradição feminista ou, até mesmo, desafiando-os.

Por fim, na terceira e última secção, republicamos um conjunto de entrevistas a três das mais celebradas filósofas feministas a nível internacional: Alice Crary, Amia Srinivasan e Kristie Dotson. Uma vez mais, releva aqui o formato dos textos cuja proposta é, nos três casos, uma revisão do trabalho das autoras, amplamente dedicado à filosofia feminista e, muito concretamente, a uma investigação sobre o modo como os recursos provenientes da prática e teoria feminista podem iluminar certas questões filosóficas tradicionais e vice-versa. A nossa intenção foi, pois, fechar este volume de textos filosóficos e feministas com uma reflexão sobre a própria filosofia feminista, através da voz de três autoras com trabalho consagrado em algumas das grandes áreas da filosofia como sejam a ética, a epistemologia, a metafilosofia e a filosofia política.

O meu desejo é, porém, que esta organização não seja encarada de forma rígida, sob pena de reificar fronteiras que são, na verdade, fluídas ou de camuflar o que há de mais original e inovador nos textos que se seguem. A leitora é igualmente chamada a participar neste passeio, desafiada a identificar os atalhos entre um e outro texto, traçar as conexões entre os diferentes temas, e refletir sobre eles a partir das suas próprias experiências. O presente número terá sido bem-sucedido se, no final das contas, tiver contribuído para uma conceção de filosofia mais ampla, com espaço para o pessoal, para o mundano, para o corpo, e para essas criaturas durante tanto tempo vistas como seres privados de razão. Penso que as autoras que contribuem para este volume logram fazê-lo. De uma forma ou de outra, todos os textos têm como ponto de partida a própria categoria de feminismo como um movimento de libertação cuja história é indissociável da reflexão crítica sobre conceções tradicionais de racionalidade, linguagem, conhecimento, objetividade, subjetividade ― ou seja, da própria filosofia.

Resta-me agradecer às autoras pelo seu trabalho, colaboração e incessante entusiasmo, que tornou o processo de edição deste número um pouco menos extenuante. Agradeço igualmente a todas as colegas que se ofereceram para colaborar connosco na tradução e revisão dos textos, bem como à Sara e Tralha pela criação das poderosas imagens que os acompanham, em regime pro bono, ou não vivêssemos nós num país em que a cultura e as humanidades são vistas como atividades profissionais de segunda categoria. Agradeço igualmente ao Telmo Rodrigues, diretor da Forma de Vida, pelo convite e pela confiança que em mim depositou ao longo de todo este processo. Deixo o agradecimento final para o João Esteves da Silva, coeditor deste número especial, com quem espero voltar a passar longas horas a falar de filosofia, depois de um hiato em que a nossa correspondência se resumiu largamente a questões editoriais, mais ou menos técnicas. Terá valido a pena.

 

Nota: A autora utiliza o feminino genérico para designar todos os indivíduos da classe mencionada, em substituição do mais tradicional género gramatical masculino.

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