Há uns vinte anos ouvi o primeiro grande orador anarquista — o inimitável John Most. Na altura pareceu-me, e continuou a parecer durante muitos anos, que a palavra declamada lançada sobre as massas com tal maravilhosa eloquência, com tal entusiasmo e ardor, não poderia ser apagada da mente e alma humanas. Como poderia alguém de entre as multidões que afluíam aos comícios de Most escapar à sua voz profética! Bastava certamente ouvi-lo para deitar borda fora as velhas crenças e ver a verdade e a beleza do anarquismo!
O meu grande desejo na altura era poder falar com a voz de John Most — que também eu pudesse chegar assim às massas. Ah, a ingenuidade do arrebatamento juvenil! É um tempo em que a coisa mais árdua se assemelha a uma brincadeira de crianças. É o único período da vida que vale a pena. Que infelicidade! Dura pouco. Como a Primavera, o período Sturm und Drang do propagandista traz com ele o crescimento, frágil e delicado, para ser amadurecido ou apagado em função da sua capacidade de resistência a mil vicissitudes.
A minha fé imensa no operário maravilhoso, a palavra declamada, cessou. Compreendi a sua inadequação para despertar o pensamento ou mesmo a emoção. Progressivamente, e não sem uma grande luta contra esta percepção, fui-me apercebendo de que a propaganda oral é na melhor hipótese apenas um meio para fazer as pessoas sair da sua letargia: não deixa impressões duradouras. O mero facto de a maioria das pessoas só participarem em comícios se alvoroçadas pelo sensacionalismo dos jornais ou por esperarem ser entretidas prova que não têm na verdade vontade interior para aprender.
É completamente diferente com o modo escrito de expressão humana. Ninguém, a não ser que esteja profundamente interessado em ideias progressistas, se preocupará com livros sérios. Isto leva-me a outra descoberta feita depois de muitos anos de actividade pública. É esta: independentemente de todas as declarações da educação, o aluno aceitará apenas o que a sua mente ansiar. Esta verdade já é reconhecida pela maioria dos professores contemporâneos em relação à mente jovem. Penso ser igualmente verdade em relação à adulta. Podemos produzir anarquistas e revolucionários tanto quanto podemos produzir músicos. Tudo o que se pode fazer é plantar as sementes do pensamento. Se alguma coisa vital se desenvolverá depende muito da fertilidade do solo humano, embora a qualidade da semente intelectual não deva ser menosprezada.
Nos comícios a audiência distrai-se com milhares de minudências. O orador, por muito eloquente, não consegue iludir a inquietude da multidão, com a consequência inevitável de não conseguir plantar a semente. Muito provavelmente nem conseguirá fazer jus a si próprio.
A relação entre o escritor e o leitor é mais íntima. Concedo, os livros são apenas o que queremos; antes, o que percebemos deles. Que assim seja demonstra a importância da expressão escrita por oposição à oral. Foi esta certeza que me induziu a juntar num volume as minhas ideias sobre vários temas de relevância individual e social. Representam as lutas mentais e espirituais de vinte e um anos — as conclusões a que cheguei depois de muitas mudanças e revisões internas.
Não sou tão optimista ao ponto de esperar que os meus leitores sejam mais numerosos do que os que me ouviram. Mas prefiro chegar aos poucos que querem mesmo aprender, do que aos muitos que vêm para ser entretidos.
Quanto ao livro, deverá falar por si. Notas explicativas não fazem mais do que distrair das ideias apresentadas. No entanto, desejo antecipar duas objecções que serão certamente levantadas. Uma refere-se ao ensaio sobre «Anarquismo»; a outra, a «Minorias versus Maiorias».
«Por que é que não diz como é que as coisas serão dirigidas sob anarquismo?» é uma pergunta com que me deparei centenas de vezes. Porque acredito que o anarquismo não pode consistentemente impor um programa ou método inflexível ao futuro. As coisas que cada nova geração deve enfrentar, e que menos supera, são os fardos do passado que nos mantém a todos numa rede. O anarquismo, pelo menos como o compreendo, deixa a posteridade livre para desenvolver os seus próprios sistemas, em sintonia com as suas necessidades. A nossa imaginação mais vívida não pode prever as potencialidades de uma raça liberta de condicionantes externas. Como pode então alguém presumir traçar uma linha de conduta para os que aí vêm? Nós, que pagamos a custo cada golfada de ar puro e fresco, devemos abster-nos de agrilhoar o futuro. Se formos bem sucedidos em libertar o solo do entulho do passado e do presente, deixaremos para a posteridade a maior e mais segura herança de todos os tempos.
A tendência mais desanimadora comum entre leitores é a de tomar uma frase de uma obra como padrão das ideias e personalidade do autor. Friedrich Nietzsche, por exemplo, é condenado como alguém que odeia os fracos por acreditar no Übermensch. Não ocorre aos intérpretes superficiais dessa mente prodigiosa que esta visão do Übermensch também requeria um estado da sociedade que não desse origem a uma raça de fracos e escravos.
É a mesma postura tacanha que não vê em Max Stirner se não o apóstolo da teoria «cada qual por si, e ao Diabo quem ficar para trás». É absolutamente ignorado que o individualismo de Stirner contém as mais numerosas possibilidades sociais. Contudo, não deixa de ser verdade que se a sociedade alguma vez se libertar, fá-lo-á com indivíduos libertos, cujos sacrifícios desinteressados constroem a sociedade.
Estes exemplos conduzem-me à objecção que será levantada a Minorias versus Maiorias. Não tenho dúvidas, serei excomungada como inimiga do povo por rejeitar as massas como factor criativo. Prefiro-o a ser acusada de proferir as banalidades demagógicas tão em voga como engodo para o povo. Compreendo muito bem as maleitas das massas de oprimidos e deserdados, mas recuso prescrever os habituais paliativos ridículos que não permitem que o paciente nem recupere nem pereça. Não há como ser demasiado extremista a lidar com males sociais; além disso, a coisa mais extrema é normalmente a verdadeira. A minha falta de fé na maioria é ditada pela minha fé nas potencialidades do indivíduo. Apenas quando este se torna livre para escolher os seus parceiros numa causa comum poderemos ansiar por ordem e harmonia neste mundo de caos e desigualdade.
Quanto ao resto, o meu livro deverá responder por si.
Emma Goldman