Anarchy

Ever reviled, accursed, ne’er understood,
Thou art the grisly terror of our age.
“Wreck of all order,” cry the multitude,
“Art thou, and war and murder’s endless rage.”
O, let them cry. To them that ne’er have striven
The truth that lies behind a word to find,
To them the word’s right meaning was not given.
They shall continue blind among the blind.
But thou, O word, so clear, so strong, so pure,
Thou sayest all which I for goal have taken.
I give thee to the future! Thine secure
When each at least unto himself shall waken.
Comes it in sunshine? In the tempest’s thrill?
I cannot tell—but it the earth shall see!
I am an Anarchist! Wherefore I will
Not rule, and also ruled I will not be! 

                       John Henry Mackay

A história do crescimento e desenvolvimento humano é simultaneamente a da luta terrível  de cada nova ideia que anuncia o chegar de um amanhecer mais brilhante. No seu tenaz agarrar da tradição, o Velho nunca hesitou usar os meios mais vis e cruéis para prorrogar a chegada do Novo, seja em que forma ou período este se tenha manifestado. Nem precisamos de rever até ao passado mais longínquo os passos dados para perceber a enormidade da resistência, dos problemas e das dificuldades colocadas no caminho de cada ideia progressista. O potro, os anjinhos e o cnute[1] ainda estão entre nós; como estão a jaleca do condenado e a ira social, todos a conspirar contra o espírito que serenamente avança.

O anarquismo não estava à espera de escapar ao destino de todas as outras ideias de renovação. Na verdade, como o inovador mais revolucionário e intransigente, o anarquismo tem forçosamente de enfrentar a combinação de ignorância e veneno do mundo que pretende reconstruir.

Para tratar minimamente de tudo o que anda a ser dito e feito contra o anarquismo seria necessário escrever um volume inteiro. Restringir-me-ei por isso a duas das principais objecções. Ao fazê-lo, tentarei explicar o que significa realmente o anarquismo.

O fenómeno peculiar na objecção ao anarquismo está em trazer ao de cima a relação entre a dita inteligência e a ignorância. E ainda assim não é tão estranho quando consideramos a relatividade de tudo. As massas ignorantes têm a seu favor não terem a pretensão de conhecimento ou tolerância. Agindo, como sempre fazem, por impulso, as suas razões são como as de uma criança. «Porquê?» «Porque sim.» Contudo, a oposição do iletrado ao anarquismo merece a mesma consideração do que a do homem educado.

Quais são, nesse caso, as objecções? Primeiro, a de que o anarquismo não é prático, embora seja um belo ideal. Segundo, que o anarquismo defende a violência e a destruição, logo deve ser rejeitado por ser vil e perigoso. Tanto o homem educado como as massas iletradas não ajuízam a partir de um conhecimento profundo do assunto, mas quer a partir do rumor quer de leituras falsas.

Um esquema prático, segundo Oscar Wilde, é um que já esteja em funcionamento ou que possa ser posto em prática nas condições actuais; mas é precisamente às condições actuais que nos opomos, e qualquer esquema que possa aceitar estas condições está errado e é insensato. O verdadeiro critério para o que é prático não será, assim, se pode manter inalterados o errado ou o insensato; em vez disso, será se o esquema tem vitalidade suficiente para abandonar as águas estagnadas do velho e construir, assim como manter, vida nova. À luz desta ideia, o anarquismo é certamente prático. Mais do que outra ideia, auxilia na supressão do errado e do insensato; mais do que outra ideia, está a construir e a manter vida nova.

As emoções do homem ignorante são sucessivamente mantidas no extremo pelas histórias mais arrepiantes sobre o anarquismo. Nada demasiado ofensivo para se usar contra a filosofia e os seus representantes. Dessa forma, o anarquismo está para o irreflectido como o conhecido papão está para a criança — um monstro tenebroso disposto a engolir tudo; resumindo, destruição e violência.

Destruição e violência! Como pode o homem comum saber que o elemento mais violento na sociedade é a ignorância; que o seu poder de destruição é precisamente o que o anarquismo combate? Nem estará consciente de que o anarquismo, as raízes do qual, por assim dizer, são parte das forças da natureza, destrói não o tecido saudável, mas tumores parasíticos que se alimentam da essência da vida da sociedade. Somente limpo das daninhas e do joio poderá o solo dar frutos saudáveis.

Alguém afirmou que condenar exige menos esforço intelectual do que pensar. A apatia mental disseminada, tão dominante na nossa sociedade, apenas prova como isto é verdade. Em vez de ir ao fundo de cada ideia, de analisar a sua origem e significado, a maioria das pessoas condena-a completamente ou confia numa definição superficial ou negativa de aspectos acessórios.

O anarquismo insta o homem a pensar, investigar e analisar todas as propostas; mas para que a capacidade cerebral do leitor mediano não seja sobrecarregada em demasia, também começarei com uma definição e depois aprofundarei a mesma.

ANARQUISMO: A filosofia da nova ordem social baseada na liberdade sem restrições das leis feitas pelo homem; a teoria de que todas as formas de governo assentam na violência e que, por isso, são  más e prejudiciais, além de desnecessárias.

A nova ordem social assenta, obviamente, nas bases materiais da vida; mas apesar de todos os anarquistas concordarem que hoje o principal mal é económico, defendem que a solução para esse mal só pode aparecer tendo em conta todas as fases da vida — tanto individuais como colectivas; quer fases internas quer externas.

Uma análise minuciosa da história do desenvolvimento humano revelará dois elementos em intenso conflito, mas igualmente próximos e verdadeiramente harmoniosos se dispostos em ambiente propício: os instintos individual e colectivo. O indivíduo e a sociedade têm desde há muito disputado uma batalha sangrenta e  sem tréguas, cada qual lutando pela supremacia estarem cegos quanto ao valor e relevância do outro. Os instintos individual e colectivo — um é o factor mais poderoso para o compromisso individual, para o crescimento, ambição e auto-realização; o outro um factor igualmente poderoso para a cooperação mútua e o bem-estar social.

A explicação para a tempestade que ressoa dentro do indivíduo, e entre ele e o que o rodeia, é fácil de dar. O homem primitivo, incapaz de compreender o seu ser, muito menos a unidade de toda a vida, sentiu-se completamente à mercê de forças cegas e secretas, sempre disponíveis para o achincalhar e atormentar. Dessa disposição cresceram os conceitos religiosos do homem como mero grão de pó dependente de altos poderes superiores que só podem ser apaziguados mediante completa submissão. Todas as sagas antigas assentam nessa ideia, que continua a ser leit-motif das histórias bíblicas que tratavam da relação do homem com Deus, com o Estado, com a sociedade. Uma e outra vez o mesmo motivo, o homem não é nada, os poderes são tudo. Assim, Jeová só tolerava o homem se este se submetesse por completo. O homem pode ficar com todas as maravilhas da terra, mas não pode ter consciência de si próprio. O Estado, a sociedade e as leis morais cantam todas o mesmo refrão: o homem pode ficar com todas as maravilhas da terra, mas não pode ter consciência de si próprio.

O anarquismo é a única filosofia que traz ao homem consciência de si próprio; que defende que Deus, o Estado e a sociedade não existem, que as suas premissas não têm validades, visto poderem ser cumpridas apenas pela subordinação do homem. O anarquismo é assim o mestre da unidade da vida; não apenas na natureza, mas no homem. Não há conflito entre os instintos individual e social, tal como não há entre o coração e os pulmões: um é o receptáculo de uma essência preciosa da vida, os outros os repositórios do que mantém a essência pura e forte. O indivíduo é o coração da sociedade, conservando a essência da vida social; a sociedade é os pulmões, distribuindo o elemento que mantém a essência da vida — isto é, o indivíduo — pura e forte.

«A única coisa de valor no mundo», diz Emerson, «é a alma activa; isto cada homem contém dentro de si. A alma activa vê a verdade absoluta e pronuncia verdade e cria.» Por outras palavras, o instinto individual é o que há de valor no mundo. É a alma verdadeira que vê e cria a verdade viva, da qual surgirá uma verdade ainda maior, a alma social renascida.

O anarquismo é a força que liberta o homem dos fantasmas que o mantiveram preso; é o juiz e apaziguador das duas forças para a harmonia individual e social. Para alcançar essa unidade, o anarquismo declarou guerra às influências perniciosas que privaram até hoje a associação harmoniosa dos instintos individual e social, o indivíduo e a sociedade.

A religião, o domínio da mente humana; a propriedade, o domínio das necessidades humanas; e o governo, o domínio da conduta humana, representam o baluarte da servidão do homem e de todos os horrores que daí se seguem. A religião! Como domina a mente do homem, como humilha e avilta a sua alma. Deus é tudo, o homem nada, diz a religião. Mas desse nada criou Deus um reino tão despótico, tão tirano, tão cruel, tão terrivelmente severo que desde que os deuses começaram nada governa o mundo a não ser desânimo, lágrimas e sangue. O anarquismo incita o homem a rebelar-se contra este monstro tenebroso. Quebra os teus grilhões mentais, diz o anarquismo ao homem, pois enquanto não pensares e julgares por ti próprio não te libertarás do domínio da obscuridade, o maior obstáculo a todo o progresso.

A propriedade, o domínio das necessidades do homem, a negação do direito de satisfazer as suas necessidades. Tempos houve em que a propriedade reclamava direito divino, quando chegou ao homem com o mesmo refrão, tal como a religião, «Sacrifica-te! Renuncia! Submete-te!» O espírito do anarquismo elevou o homem da sua posição prostrada. Ergue-se agora direito, com o rosto voltado para a luz. Aprendeu a ver a natureza insaciável, voraz e devastadora da propriedade e prepara-se para chacinar o monstro.

«A propriedade é roubo», afirmou o grande anarquista francês, Proudhon. Sim, mas sem risco ou perigo para o ladrão. Ao monopolizar os esforços combinados do homem, a propriedade privou-o do seu direito adquirido e deixou-o como um pobre e um marginal. A propriedade nem sequer tem a desculpa já gasta de que o homem não cria o suficiente para satisfazer as suas necessidades. Qualquer estudante imberbe de economia sabe que a produtividade do trabalho nas últimas décadas excede em muito as necessidades normais. Mas o que são necessidades normais para uma instituição anormal? A única exigência que a propriedade reconhece é o seu próprio apetite glutão por mais riqueza, porque a riqueza significa poder; o poder para subjugar, esmagar, explorar, o poder para escravizar, injuriar e degradar. A América é particularmente presunçosa do seu grande poder, da sua enorme riqueza nacional. Pobre América, de que lhe vale toda a sua riqueza, se os indivíduos que formam a nação são miseravelmente pobres? Se vivem na miséria, na imundície, na delinquência, sem esperança e alegria, um exército de presas humanas sem eira nem beira.

Normalmente aceita-se que a falência é inevitável para qualquer negócio que não tenha retornos que excedam os custos. Mas os atarefados no negócio de produzir riqueza ainda nem aprenderam esta lição simples. Todos os anos aumentam os custos de produção em vidas humanas (50000 mortos, 100000 feridos na América no ano passado); os retornos para as massas, que ajudam a criar a riqueza, diminuem cada vez mais. Contudo, a América continua cega para a falência inevitável do nosso modelo de produção. Nem é este o seu único crime. Ainda mais fatal é o crime de fazer do produtor uma mera partícula da máquina, com menos vontade e escolha que o seu mestre de ferro e aço. O homem está a ser roubado não só dos produtos do seu trabalho, mas também do poder de iniciativa, de originalidade e de interesse, ou de desejo, pelas coisas que produz.

A verdadeira riqueza abrange coisas úteis e belas, coisas que ajudam a criar corpos fortes e belos, e ambientes inspiradores onde viver. Mas se o homem está condenado a enrolar algodão à volta do carrete, a extrair carvão ou a construir estradas durante trinta anos da sua vida não se pode falar em riqueza. O que dá ao mundo são apenas coisas nebulosas e horrendas, reflexo de uma existência sem brilho e disforme — demasiado fraco para viver, demasiado cobarde para morrer. Que curioso, há pessoas que louvam este método entorpecedor de produção centralizada com a mais gloriosa conquista do nosso tempo. Não conseguem compreender de todo que se continuarmos com esta subserviência mecânica a nossa escravidão será mais plena do que a servidão ao rei. Não lhes interessa saber que a centralização não é só a sentença de morte da liberdade, mas é também a da saúde e beleza, da arte e da ciência, todas estas inexequíveis num ambiente austero e mecanizado.

O anarquismo não pode senão repudiar um método de produção deste tipo: o seu objectivo é a mais livre expressão possível de todos os poderes latentes do indivíduo. Oscar Wilde define a personalidade perfeita como «a que se desenvolve em condições perfeitas, que não está ferida, estropiada ou em perigo». Uma personalidade perfeita só é possível, então, num estágio da sociedade onde o homem é livre de escolher o modo de trabalho, as condições de trabalho e tem a liberdade de trabalhar. Num estágio onde fazer uma mesa, construir uma casa e lavrar o solo significa o mesmo que pintar para o artista e descobrir para o cientista — a consequência da inspiração, de desejo intenso e de interesse profundo no trabalho como força criativa. Sendo esse o ideal do anarquismo, as suas disposições económicas devem consistir em associações produtivas e distributivas voluntárias, gradualmente desenvolvendo-se num comunismo livre, os melhores meios de produzir com o menor dispêndio de energia humana. O anarquismo, contudo, também reconhece o direito do indivíduo, ou de grupos de indivíduos, de a qualquer altura adoptar outras formas de trabalho, em consonância com os seus gostos e desejos.

Sendo possível tal manifestação livre de energia humana sob completa liberdade individual e social, o anarquismo direcciona as suas forças contra o terceiro, e maior, inimigo de qualquer igualdade social: nomeadamente, o Estado, a autoridade organizada ou o Direito — o domínio da conduta humana.

Da mesma maneira que a religião agrilhoou o espírito humano, e a propriedade, ou o monopólio das coisas, subjugou e reprimiu as necessidades do homem, também o Estado escravizou o seu espírito, impondo todas as fases da sua conduta. «Na sua essência, qualquer governo», diz Emerson, «é uma tirania». Não importa se é governo por direito divino ou por voto maioritário. Em todos os casos, o seu objectivo é a subordinação completa do indivíduo.

Referindo-se ao governo americano, o maior anarquista americano, David Thoreau, afirmou: «O governo, que mais não é se não uma tradição, ainda que recente, que se esforça para transitar incólume para a posteridade, mas a cada momento perdendo a sua integridade; não tem a vitalidade nem a força de um único homem vivo. A lei nunca fez os homens mais justos; e pelo respeito que lhe têm, até os mais bem-intencionados se tornam em agentes da injustiça.»[2]

Seguramente, a essência do governo é a injustiça. Com a arrogância e a auto-suficiência do Rei, que não pode errar, os governos ordenam, julgam, condenam e punem as ofensas mais insignificantes, preservando-se pela mais grave de todas as ofensas, a aniquilação da liberdade individual. Assim, Ouida tem razão quando defende que «o Estado tem por único objectivo impregnar na sua comunidade as qualidades pelas quais as suas solicitações são cumpridas e o seu erário recheado. O seu maior feito é a redução da humanidade a um mecanismo. No seu ambiente, todas as liberdades mais finas e delicadas, as que requerem cuidado e crescimento desimpedido, inevitavelmente secam e perecem. O Estado exige uma máquina fiscal bem oleada, um erário onde nunca haja défice e uma comunidade monótona, obediente, desenxabida e amorfa, movendo-se humildemente como um rebanho de ovelhas numa estrada ladeada por muros.»

Contudo, até um rebanho de ovelhas resistiria à chicanice do Estado se não fosse pelos métodos corruptos, tiranos e opressivos que usa para alcançar os seus propósitos. Bakunin repudia por isso o Estado como sinónimo da capitulação da liberdade do indivíduo ou das pequenas minorias — da destruição das ligações sociais, do corte ou mesmo da negação total da vida em si — para sua própria glorificação. O Estado é o altar da liberdade política e, tal como o altar religioso, é mantido para o sacrifício humano.

Na realidade, não há um pensador contemporâneo que não aceite que o governo, a autoridade organizada ou o Estado sejam necessários para manter ou proteger a propriedade e os monopólios. Demonstraram ser eficientes exclusivamente nessa tarefa.

Até George Bernard Shaw, que anseia pelo milagre do Estado sob o fabianismo, ainda assim admite que «é hoje uma máquina colossal para roubar e escravizar à força os pobres.» Sendo este o caso, é difícil descortinar a razão de o astuto prefaciador desejar manter o Estado depois de ter deixado de existir a pobreza.

Infelizmente ainda há um número considerável de pessoas que persistem na funesta crença de que o governo assenta em leis naturais, que mantém a ordem social e a harmonia, que reduz o crime e que impede que o homem preguiçoso depene os seus concidadãos. Analisarei por isso estas convicções.

Uma lei natural é aquele factor no homem que se manifesta livre e espontaneamente sem qualquer força exterior, em harmonia com os requisitos da natureza. Por exemplo, a demanda por nutrimentos, gratificação sexual, por luz, ar e exercício, é uma lei natural. Mas a sua expressão não requer a maquinaria do governo, do clube, da arma, da algema ou da prisão. Para obedecer as estas leis, se lhe podemos chamar obediência, necessitamos apenas de espontaneidade e oportunidade desprendida. Que os governos não se mantenham por meio destes harmoniosos factores demonstra-se pelo terrível espectro de violência, força e coerção que todos os governos utilizam para se manterem vivos. Assim sendo, Blackstone está certo quando afirma: «As leis humanas não são válidas visto serem contrárias às leis da natureza.»

A não ser pela ordem de Varsóvia depois do massacre de milhares de pessoas, é difícil atribuir aos governos qualquer capacidade para manter a ordem ou a harmonia social. A ordem obtida pela submissão e mantida pelo medo não é grande salvaguarda; contudo, essa é a única «ordem» que os governos mantiveram. A verdadeira harmonia social floresce naturalmente dos interesses comuns. Numa sociedade onde os que trabalham sempre nunca têm nada, enquanto os que nunca trabalham dispõem de tudo, não existem interesses comuns; logo, a harmonia social não passa de um mito. A única forma de a autoridade organizada fazer face a esta situação é alargando ainda mais os privilégios aos que já monopolizam a terra e subjugando ainda mais as massas deserdadas. Desta forma, todo o arsenal do governo — leis, polícia, soldados, tribunais, governos, prisões — está tenazmente atarefado na «harmonização» dos elementos mais antagónicos da sociedade.

A apologia mais absurda da autoridade e da lei é a de que servem para reduzir o crime. Pondo de parte que o Estado é ele mesmo o maior criminoso, quebrando todas as leis escritas e naturais, roubando através dos impostos, matando em guerras e com a pena capital, este chegou a um completo impasse no que diz respeito a lidar com o crime. Falhou completamente na destruição, e mesmo na minimização, do horrendo flagelo da sua própria criação.

O crime não é se não energia mal orientada. Na medida em que cada instituição económica, política, social e moral contemporânea conspire para orientar a energia humana para os canais errados; na medida em que a maioria das pessoas esteja deslocada a fazer coisas que odeia e a viver uma vida que despreza, o crime será inevitável e todas as leis nos estatutos só podem aumentar, mas nunca repelir, o crime. O que sabe a sociedade, tal como existe hoje, do processo de desespero, da pobreza, dos horrores e da assustadora luta pela qual a alma humana tem de passar para chegar ao crime e à degradação. Entre os que conhecem este processo, quem pode deixar de ver a verdade nestas palavras de Peter Kropotkin:

Aqueles que mantêm o equilíbrio entre os benefícios assim atribuídos à lei e à punição, e às consequências degradantes da última na humanidade; aqueles que fazem estimativas da torrente de perversidade derramada sobre a sociedade humana pelo delator, ainda para mais defendido pelo juiz, e remunerado em dinheiro cintilante pelos governos, sob pretexto de ajudar a desmascarar o crime; aqueles que entram dentro das paredes da prisão e lá vêem no que se tornam os seres humanos quando privados de liberdade, quando sujeitos aos tratos de guardas embrutecidos, a duras e cruéis palavras, a milhares de pungentes e lancinantes humilhações, concordarão connosco que todo o aparato da prisão e da punição é uma abominação com a qual se deve acabar.

 A influência dissuasiva da lei no homem preguiçoso é demasiado absurda para poder ser considerada. Se a sociedade se visse livre do desperdício e da despesa de manter uma classe preguiçosa, e ainda da igualmente enorme despesa que a parafernália de protecção a essa classe preguiçosa consome, as mesas sociais teriam uma abundância para todos, incluindo até o ocasional indivíduo preguiçoso. Para além disso, é comum considerar que a preguiça resulta ou de privilégios especiais ou de deficiências físicas ou mentais. O nosso actual sistema de produção demente alimenta ambas e o fenómeno mais extraordinário é que as pessoas hoje queiram trabalhar de todo. O anarquismo tem por objectivo retirar ao trabalho o seu aspecto degradante e embrutecedor, a sua soturnidade e o seu constrangimento; procura fazer do trabalho uma ferramenta de alegria, força, interesse e verdadeira harmonia para que o tipo mais pobre de homens possa encontrar no trabalho quer a recreação quer a esperança.

Para alcançar este compromisso de vida, o governo, com as suas medidas injustas, arbitrárias e repressivas, deve ser extinguido. Na melhor das hipóteses impôs a todos um só modo de vida sem consideração pelas variações e necessidades individuais e sociais. Com a destruição do governo e do Direito, o anarquismo propõe resgatar o respeito próprio e a independência do indivíduo de qualquer restrição ou intromissão pela autoridade. Só em liberdade pode o homem alcançar o seu desígnio. Só em liberdade aprenderá a pensar e a mover-se e a dar o melhor de si. Só em liberdade compreenderá a verdadeira força dos laços sociais que unem os homens e que são o verdadeiro fundamento de uma vida social normal.

Mas e a natureza humana? Pode alterar-se? E não podendo, persistirá sob o anarquismo?

Pobre natureza humana, quantos crimes horríveis foram cometidos em teu nome! Todos os tolos, do rei ao polícia, do pároco tolo ao curioso da ciência sem imaginação, assumem falar com autoridade da natureza humana. Quanto maior o charlatão intelectual, mais definitiva a sua insistência nesta perversidade e fraqueza da natureza humana. Contudo, como pode alguém falar dela hoje, com cada alma numa prisão, com cada coração agrilhoado, ferido e estropiado?

John Burroughs declarou que os estudos experimentais de animais em cativeiro são completamente inúteis. A sua singularidade, hábitos e necessidades sofrem uma total transformação uma vez arrancados do seu meio no campo e na floresta. Com a natureza humana enjaulada num espaço confinado e chicoteada diariamente para se submeter, como podemos falar das suas potencialidades?

Apenas a liberdade, o crescimento, a oportunidade e, sobretudo, a paz e o descanso, podem ensinar-nos os reais factores da natureza humana e todas as suas maravilhosas potencialidades.

O anarquismo, assim, significa verdadeiramente a libertação do espírito humano do domínio da religião; a libertação do corpo humano do domínio da propriedade; a libertação dos grilhões e restrições do governo. O anarquismo significa uma ordem social sustentada no ajuntamento livre de indivíduos com o propósito de criar verdadeira riqueza social; uma ordem que garanta a cada ser humano livre acesso à terra e o apreço total das necessidades da vida, de acordo com os desejos, gostos e inclinações individuais.

Isto não é apenas um devaneio louco ou um pensamento aberrante. Hordas de homens e mulheres intelectuais chegaram a esta conclusão mundo fora; uma conclusão que resulta de uma observação atenta e laboriosa das tendências da sociedade moderna: liberdade individual e igualdade económica, as forças análogas para o germinar do que é bom e verdadeiro no homem.

Quanto aos métodos. O anarquismo não é, como supõem alguns, uma teoria do futuro para ser concretizada por inspiração divina. É uma força viva nos assuntos da nossa vida, a criar novas condições constantemente. Os métodos do anarquismo não contemplam por isso um programa inflexível para ser posto em prática em quaisquer circunstâncias. Os métodos devem sair das necessidades económicas de cada sítio e tempo, e dos requisitos intelectuais e temperamentais do indivíduo. O carácter sereno e calmo de um Tolstoi desejará métodos diferentes para a reconstrução social do que a personalidade intensa e histriónica de um Michael Bakunin ou de um Peter Kropotkin. Deve ser igualmente evidente que as necessidades económicas e políticas da Rússia ditarão medidas mais drásticas do ditariam as de Inglaterra ou da América. O anarquismo não defende exercícios militares ou uniformidade; defende, no entanto, o espírito de revolta, seja em que forma for, contra tudo o que inibe o crescimento humano. Todos os anarquistas concordam nisso, como também concordam na sua oposição à maquinaria política como meio de promover a grande mudança social.

«Qualquer votação», diz Thoreau, «é um espécie de jogo, como as damas ou o gamão, um jogo moral; a sua obrigação nunca excede a sua conveniência. Mesmo votar na coisa certa não faz nada por ela. Um sábio não deixará o bem à mercê da sorte, nem desejará que prevaleça por causa do poder da maioria.» Uma análise cuidada à maquinaria política e aos seus feitos corroborará a lógica de Thoreau.

O que mostra a história do parlamentarismo? Nada a não ser fracassos e derrotas, nem sequer uma reforma para melhorar a pressão económica e social das pessoas. As leis foram aprovadas e os decretos produzidos para aperfeiçoar e proteger o trabalho. Dessa forma se demonstrou ainda o ano passado que o Illinois, com as leis mais rígidas para a protecção da exploração mineira, teve o maior número de acidentes em minas. Nos Estados Unidos, onde abundam as leis contra o trabalho infantil, a exploração infantil está nos níveis mais altos e, apesar de entre nós os trabalhadores disporem de oportunidades políticas abrangentes, o capitalismo alcançou o seu mais descarado apogeu.

Mesmo que os trabalhadores fossem capazes de ter os seus próprios representantes, pelos quais clamam os nossos bondosos políticos socialistas, quais são as hipóteses de que sejam honestos e hajam de boa-fé? Temos apenas de reter na mente o processo político para compreender que o seu caminho de boas intenções está repleto de armadilhas: influências, intrigas, bajulação, mentiras, embustes: na realidade, a chicanice de todos os tipos pela qual o aspirante a político pode almejar o sucesso. Acrescenta-se a isso a completa desmoralização do carácter e da convicção, até não sobrar nada que pudéssemos esperar de tal destroço humano. As pessoas inocentemente confiaram, acreditaram e apoiaram vezes sem conta com o tostão que lhes restava aspirantes políticos apenas para se verem traídas e enganadas.

Pode-se dizer que os homens íntegros não se tornariam corruptos na engrenagem da máquina política. Talvez não, mas tais homens seriam certamente incapazes de exercer a mínima influência a favor do trabalho, com se tem de facto demonstrado em inúmeros exemplos. O Estado é o amo económico dos seus servos. Homens bons, se tal existe, ou permaneceriam fiéis à sua fé política e perderiam o seu apoio económico, ou colar-se-iam ao seu amo económico e seriam absolutamente incapazes de fazer qualquer bem. A arena política não deixa alternativa a ninguém, temos de ser estúpidos ou velhacos.

A superstição política ainda reina nos corações e nas mentes das massas, mas os verdadeiros amantes da liberdade não querem mais nada com ela. Pelo contrário, acreditam, como Stirner, que o homem tem tanta liberdade quanto a que estiver disposto a ter. Por isso, o anarquismo significa acção directa, a desobediência e a revolta contra quaisquer leis e restrições económicas, sociais e morais. Mas a desobediência e a revolta são ilegais. Aí reside a salvação do homem. Tudo o que é ilegal exige integridade, autoconfiança e coragem. Resumindo, apela a espíritos livres e independentes, a «homens que sejam homens e que tenham uma espinha sobre a qual não se possa passar a mão.»[3]

O sufrágio universal deve a sua existência à acção directa. Não fosse o espírito de rebeldia, de desobediência por parte dos revolucionários pais fundadores, a sua posteridade ainda usaria o escudo do rei. Se não fosse a acção directa de John Brown e dos seus camaradas, a América ainda negociaria homens de raça negra. É verdade, o negócio com homens de raça branca ainda continua; mas esse, da mesma maneira, terá de ser abolido pela acção directa. O sindicalismo, a arena económica do gladiador moderno, deve a sua existência à acção directa. Foi só recentemente que a lei e o governo tentaram esmagar o movimento sindicalista e condenar à prisão como conspiradores os defensores do direito do homem a associar-se. Caso tivessem tentado defender a sua causa pela súplica, pela argumentação ou pelo compromisso, o sindicalismo teria hoje uma existência residual. Em França, na Espanha, em Itália e na Rússia, até mesmo em Inglaterra, (veja-se a crescente revolta dos sindicatos ingleses), a acção directa,  revolucionária e económica tornou-se tão forte na batalha pela liberdade industrial que ficou evidente para o mundo a desmesurada importância do poder laboral. A greve geral, expressão maior da consciência económica dos trabalhadores, foi muito recentemente ridicularizada na América. Hoje, qualquer greve geral, para vencer, tem de compreender a importância do protesto geral solidário.

A acção directa, tendo-se demonstrado eficaz em relação a questões económicas, é igualmente poderosa no meio ambiente do indivíduo. Aí, centenas de forças imiscuem-se no seu ser e somente a persistente resistência a estas acabará por libertá-lo. A acção directa contra a autoridade na fábrica, a acção directa contra a autoridade da lei, a acção directa contra a autoridade invasiva e metediça no nosso código moral é o único método lógico e consistente do anarquismo.

Não conduzirá a uma revolução? Conduzirá, certamente. Nunca se deu uma mudança social sem uma revolução. As pessoas ou não estão familiarizadas com a sua história ou então ainda não compreenderam que a revolução não é mais do que o pensamento posto em acção.

O anarquismo, o grande fermento do espírito, intromete-se hoje em cada estágio do compromisso humano. A ciência, a arte, a literatura, o teatro, o esforço por melhorias económicas, na realidade qualquer oposição individual e social à ordem existente é iluminada pela luz espiritual do anarquismo. É a filosofia da soberania do indivíduo. É a teoria da harmonia social. É a grande, crescente e pulsante verdade que está a reconstruir o mundo e que conduzirá à alvorada.


[1] Três instrumentos de tortura. [N. de T.]

[2] Citação truncada pela autora de «Civil Disobedience», de Thoreau. [N. de T.]

[3] Citação truncada de «Civil Disobedience». [N. de T.]

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