Originalmente publicada na Nordic Wittgenstein Review
Nota Introdutória:
Alice Crary é uma filósofa moral e social que se tem dedicado a questões de metaética, psicologia moral e ética normativa, filosofia e feminismo, estudos críticos animais, estudos críticos da deficiência, filosofia crítica da raça, filosofia e literatura, e Teoria Crítica. Ao longo da sua carreira, escreveu sobre filósofas e filósofos tais como John L. Austin, Stanley Cavell, Cora Diamond, John McDowell, Iris Murdoch e Ludwig Wittgenstein.
Esta entrevista foi conduzida por Mickaëlle Provost em janeiro de 2022 e originalmente publicada em duas partes na Nordic Wittgenstein Review: a primeira parte da entrevista, sobre «Wittgenstein e Feminismo», integrou o número especial homónimo da Nordic Wittgenstein Review, publicado em dezembro de 2022, e a segunda parte, sobre «Wittgenstein e Teoria Crítica», foi publicado no 11º volume da mesma revista. Nesta entrevista, Crary discute algumas relações entre a filosofia da linguagem comum e o feminismo, entre a conceção wittgensteiniana de mente e a ética feminista, e entre Wittgenstein e a Teoria Crítica, assim como a sua perspetiva acerca da possibilidade de levar a cabo transformações sociais e políticas.
Parte I
Mickaëlle Provost: Nos seus livros Beyond Moral Judgement e Inside Ethics, sugere que o contributo de Wittgenstein para os debates em torno da questão da objetividade é útil para pensar sobre ética e política. A sua proposta é uma conceção mais «ampla» de objetividade, que seja capaz de enriquecer a teoria feminista. Pedia-lhe que descrevesse esta conceção de objetividade e que nos falasse do seu interesse.
Alice Crary: Introduzi o termo «objetividade ampla» como uma noção decisiva para o meu pensamento quando defendi, pela primeira vez, uma visão filosófica, que concebi como moral e politicamente consequente, em completa dissonância com o zeitgeist contemporâneo. Uma parte significativa das posturas filosóficas da nossa época tem como caraterística comum a ideia de que trazer o mundo sob o nosso olhar significa recusar a noção de ponto de vista e que, por isso, devemos aspirar a uma visão desapaixonada e a uma neutralidade de valores. Propus o termo «objetividade estreita» para me referir ao homólogo metafísico desta postura epistémica, e falei de uma «conceção mais ampla de objetividade» para discutir o tipo de metafísica operante quando tratamos este processo de trazer as coisas do mundo sob o nosso olhar como um exercício ativo que requer virtudes tais como as do juízo com base na experiência ou da flexibilidade perspetival.[1]
O trabalho tardio de Wittgenstein contém, segundo a minha leitura, recursos que possibilitam esta mudança na nossa visão filosófica. Não é que «objetividade» faça propriamente parte do léxico filosófico de Wittgenstein. Mas uma das suas mais importantes conquistas consiste na sua capacidade de deslindar, com grande minúcia, algumas das mais profundas fontes de resistência filosófica à ideia de que as nossas sensibilidades contribuem internamente para um contacto mental não-distorcido com o mundo. Outra conquista tem a ver com o seu ataque radical a certas considerações que pareciam contradizer esta ideia. Há, sem dúvida, mais pensadores modernos que empreendem projetos deste género. A par de outras figuras da tradição da filosofia da linguagem comum, como J. L. Austin, incluem-se aqui figuras de outras tradições, como seja o idealismo alemão pós-Kantiano ou o pragmatismo americano. Em todo o caso, esta postura filosófica implacável a favor da transição para uma visão do mundo amplamente objetiva é uma das marcas distintivas de Wittgenstein.
Há conexões diretas entre projetos que procuram «ampliar» as conceções de objetividade que herdamos e os temas centrais de vários dos discursos de libertação do século XX e XXI, incluindo os discursos feministas. Quando comecei a usar temas wittgensteinianos para explorar a ideia de que o pensamento sobre o mundo é algo em que participamos ativamente, fui guiada pela minha simpatia para com o trabalho de teóricas feministas e de outras autoras e autores que se focavam na justiça social. Esta simpatia incidia, particularmente, em argumentos inspirados por Marx acerca do poder cognitivo das perspetivas dos oprimidos. Comecei à procura de ferramentas que me permitissem introduzir este tipo de argumentos na filosofia analítica anglo-saxónica, tradição na qual me formara e que se encontra em larga medida organizada em torno de pressupostos que impedem a receção destes argumentos.
A imagem de Wittgenstein enquanto aliado de discursos liberatórios será vista por muita gente como uma deturpação grosseira. Trata-se de uma imagem que entra em contradição com alegações, que circulam desde os primeiros anos após a sua morte, segundo as quais Wittgenstein e os restantes filósofos da linguagem comum defendiam posições filosóficas e políticas dogmáticas com ramificações reacionárias. A história sobre o modo como a ideia, hoje bastante comum, de que Wittgenstein é um pensador conservador se propagou é bastante pitoresca. Um episódio importante nesse contexto é a publicação, em 1959, de Words and Things de Ernest Gellner, que aí descrevia o modo como os filósofos da linguagem comum e, em particular, Wittgenstein favoreciam uma abordagem perniciosamente restritiva a questões filosóficas e políticas. O facto de o livro de Gellner ser interpretativamente fraco e incluir ataques ad hominem não o impediu de desfrutar de uma ampla e entusiástica receção. Quando Gilbert Ryle, editor da revista Mind, apontou as «animosidades pessoais» do livro como justificação para se recusar a publicar qualquer recensão do mesmo, o acontecimento tornou-se uma cause célèbre internacional.
Leituras semelhantes que apresentam Wittgenstein como alguém que, se não é um defensor de ideias conservadoras, trata as formas estabelecidas do pensamento e do discurso como algo de sagrado, tornaram-se um eixo central em torno do qual se desenvolveu toda e qualquer discussão acerca da sua filosofia nos sessenta anos que se seguiram. Mas há muito que estas leituras coexistem com interpretações cuja fundamentação nos textos é mais rigorosa e que desafiam firmemente qualquer sugestão de tendências para impedir a crítica. Esta corrente de oposição começa com as evocações que Stanley Cavell faz da filosofia tardia de Wittgenstein num conjunto de ensaios fascinantes e profundamente originais, nos anos 60, e subsequentemente vem a incluir os contributos de figuras tais como Hanna Pitkin, Cora Diamond e Hilary Putnam. Foi no contexto da minha aproximação às abordagens não-convencionais destas pensadoras e pensadores que, numa fase inicial, procurei em Wittgenstein uma ligação às teorias feministas e outras teorias críticas.
MP: Será que a orientação epistémica que atribui a Wittgenstein pode ser articulada no âmbito das teorias do ponto de vista (standpoint theories) e da sua ancoragem na experiência vivida?
AC: As teorias do ponto de vista foram um dos projetos feministas que originalmente me suscitaram interesse, e acompanhei desde cedo as discussões em torno do trabalho de teóricas como Nancy Hartsock e Sandra Harding.[2] Estas teorias afirmam que devemos explorar os pontos de vista que os membros de grupos oprimidos são forçados a ocupar de modo a identificar caraterísticas politicamente salientes do mundo social. As teorias do ponto de vista assumem que os nossos recursos perspetivais contribuem diretamente para trazer o mundo sob o nosso olhar e eu, em alguns dos meus textos, propus-me mostrar que certas vertentes da filosofia tardia de Wittgenstein nos dão as ferramentas necessárias para atestar a robustez filosófica deste pressuposto fundamental.
A terminologia que utilizo para falar destes tópicos mudou ao longo dos tempos. Quando comecei, no início da década de 2000, não falava da teoria do ponto de vista feminista como algo que eu defendesse. Na altura, o termo era por vezes associado a pressupostos politicamente nocivos — racistas, capacitistas, trans-excludentes e, em geral, elitistas — que sugeriam, inadequadamente, a existência de um único «ponto de vista das mulheres», obscurecendo assim diferenças sociais entre mulheres que resultam de múltiplas formas de preconceito que se cruzam. Rejeitei o termo por respeito a considerações políticas fundamentais, que foram centrais para o trabalho de muitas feministas negras, e que são hoje frequentemente invocadas através da noção de «interseções», cunhada por Kimberlé Crenshaw.
Hoje em dia, o termo «teoria do ponto de vista feminista» foi em larga medida recuperado, e há uma maior aceitação da ideia de que este se aplica a teorias que, ainda que representem as perspetivas que as mulheres são forçadas a adotar como algo de cognitivamente necessário, também refletem a complexa interação entre os diferentes tipos de opressão com que as mulheres se defrontam. Embora eu não o articulasse desta forma nesses primeiros anos, a minha preocupação inicial consistia em encontrar recursos filosóficos que corroborassem as considerações das teorias do ponto de vista feministas neste sentido intersecional.
MP: Essa postura feminista que desenvolveu a partir de temas wittgensteinianos entra em conflito com as estratégias dominantes da filosofia moral?
AC: A filosofia de Wittgenstein, segundo a leitura que favoreço, desenvolve-se em contracorrente face à filosofia analítica convencional, de tal forma que implica um conflito com as estratégias dominantes em ética. Por isso, sim, o modo como introduzo Wittgenstein na teoria feminista é inseparável de uma postura oposicional perante as correntes dominantes da filosofia moral.
A ideia wittgensteiniana fundamental é que precisamos de recursos não-neutros para trazer o mundo sob o nosso olhar. Aceitar isto é rejeitar uma visão metafísica em nós enraizada e que podemos caraterizar como, para usar as palavras da historiadora da ciência Lorraine Daston, uma «evacuação moral da natureza». Esta metafísica está na origem da ideia de uma «falácia naturalista em ética» e, apesar das suas diferenças, as abordagens éticas que estão hoje mais bem representadas — e que incluem várias formas de consequencialismo, interpretações-padrão da teoria ética de Kant e até mesmo algumas éticas de virtudes — organizam-se em torno do seu compromisso para com esta ideia.
Não é que não existam vozes de oposição no contexto da ética analítica. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, um grupo de filósofas de Oxford, composto por Elizabeth Anscombe, Philippa Foot, Mary Midgley e Iris Murdoch, conta-se entre quem mais se empenhou em estabelecer formas de fazer ética que decididamente se afastavam da rigidez da dicotomia ser/dever ser. A atenção filosófica ao trabalho destas filósofas aumentou exponencialmente na última década e está hoje no seu auge, com a publicação de dois livros que as tratam como um grupo. Benjamin Lipscombe acaba de publicar The Women are up to Something, e Metaphysical Animals de Claire MacCumhail e Rachael Wiseman sai no próximo mês. Uma vez que Wittgenstein é uma das influências do trabalho de Anscombe, Foot, Midgley e Murdoch, pode parecer razoável supor que não há nada de extraordinariamente subversivo na forma como eu me inspiro na sua filosofia. Mas não é assim. Apesar deste recente entusiasmo em torno do trabalho de Anscombe et al., quem defende o seu pensamento fá-lo geralmente de uma posição de dissenso. Continua a haver razões muito fortes para pensar que usar Wittgenstein deste modo — de um modo que torna o seu trabalho útil para a teoria do ponto de vista e para outras feministas — significa contestar princípios fundamentais da filosofia moral mainstream.
MP: Será que a epistemologia feminista que defende é capaz de nos ajudar a pensar numa ética feminista que, tal como a ética do cuidado, considere a dimensão quotidiana das atividades que as mulheres desempenham, a vulnerabilidade de certas experiências, a privação de voz e o perigo de ser reduzida ao silêncio?
AC: Na verdade, as ligações entre o trabalho que tenho feito em epistemologia feminista e a ética do cuidado são bastante diretas. A ética do cuidado contém, no seu cerne, a ideia de que uma ética satisfatória precisa de reconhecer dependências e vulnerabilidades humanas, e quem trabalha nessa área normalmente concebe essas vulnerabilidades como algo que se estende à nossa condição de sujeitos de conhecimento. Uma sugestão que aí é feita, e que está muito próxima daquilo que são os meus próprios compromissos, é que as sensibilidades que cultivamos através da participação em atividades como o cuidado são necessárias para uma compreensão adequada das relações sociais. Outra sugestão que também se harmoniza com o meu trabalho é a ideia de que o entendimento social é inevitavelmente orientado por valores. As filósofas e os filósofos que trabalham em ética do cuidado utilizam esta conceção não-neutra do entendimento social para iluminar os desafios que enfrentamos quando expomos a opressão sexista e outras opressões que com ela se cruzam. Trazê-las sob o nosso olhar exige atenção aos ritmos quotidianos das vidas das mulheres, e estes modos de atenção devem ser sensíveis. Como diz a antropóloga Veena Das, que tem trabalhado em questões relacionadas com o cuidado, devemos ficar alerta face à «estranheza que ocorre mesmo à frente do nosso nariz».
Há uma lição aqui que não se reduz à vulnerabilidade das mulheres e de outras pessoas marginalizadas ao silenciamento, como refere na sua questão, mas que diz também respeito aos remédios políticos necessários para dar uma resposta adequada a tal silenciamento. A ética do cuidado ensina-nos que ter uma voz é algo que está intimamente ligado ao usufruto de circunstâncias materiais que acomodam ferramentas de avaliação internas a uma boa compreensão social.
A filosofia social e política mainstream tende a sugerir que a libertação de ideologias que obscurecem e, por isso, silenciam as vidas das pessoas oprimidas é, em última instância, uma questão de eliminar forças que distorcem o pensamento e criar aquilo que concebem como um espaço de racionalidade «neutra». A ética do cuidado permite-nos ver que tais posturas são perniciosamente limitadas e insensatas. Tal como várias gerações de teóricas e teóricos antirracistas e anticoloniais têm feito, esta abordagem à ética fornece-nos ferramentas que nos permitem reconhecer estas afirmações de neutralidade não só como falsas, senão como ideológicas elas próprias. É que tais afirmações negam compromissos avaliativos que, na realidade, não podem evitar, dissimulando assim o seu partidarismo.
Nos últimos anos, e em colaboração com filósofas como Sandra Laugier, que trabalham em ética do cuidado, bem como com outros representantes do pensamento social radical, um dos meus projetos tem sido contribuir para o discurso público sobre o caráter insidioso deste tipo de conceções alegadamente neutras das relações sociais. Tenho argumentado que qualquer forma significativa de resistência ao silenciamento ideológico deve envolver uma reivindicação de novas formas de vida que valorizem o papel do cuidado. Entre outras coisas, colaborei recentemente com Matt Congdon na edição de um número especial da Philosophical Topics sobre Visibilidade Social — tecnicamente, trata-se do número da Primavera de 2021 mas, devido a atrasos causados pela pandemia, será lançado agora — que reúne uma série de trabalhos inovadores sobre ideologia e crítica social, muitos dos quais se concentram especificamente no poder crítico de métodos partidários ou não-neutros.
MP: O pensamento de Wittgenstein enfatiza a dimensão incorporada das nossas práticas linguísticas e, no âmbito dos circuitos teóricos feministas, é por vezes mobilizado contra certas abordagens pós-estruturalistas ao discurso, que são acusadas de serem demasiado abstratas ou desligadas das experiências vividas. Partilha desta visão que traça uma distinção entre duas conceções de linguagem?
AC: Concordo certamente que há um contraste gritante entre a visão do funcionamento da linguagem que é apresentada nos escritos tardios de Wittgenstein e as visões de proeminentes feministas pós-estruturalistas. Creio também que é necessário caraterizar cuidadosamente este contraste se o objetivo é clarificar a sua significância para a política feminista.
Ambas as visões procuram respeitar o caráter vivido ou material da linguagem. Enquanto Wittgenstein explica que «qualquer sinal por si mesmo parece morto», mas que «está vivo no uso», as teóricas feministas e demais pós-estruturalistas impelem-nos a aliviar a nossa perplexidade sobre o que é o significado sugerindo que este é constitutivo de sinais que são projetados em diferentes contextos. As feministas pós-estruturalistas normalmente enfatizam o caráter repetido dos sinais porque acreditam que refletir sobre este tipo de questões nos ensina lições importantes acerca da natureza e das reivindicações do pensamento emancipatório. Portanto, aquilo que há de divisivo aqui não é em primeira instância político; as feministas pós-estruturalistas são companheiras políticas de outras feministas radicais. Mas fazem uma má interpretação da significância política do seu próprio ênfase no uso de sinais. Devemos localizar o contraste com Wittgenstein no modo como se escolhe dar conta, de uma perspetiva filosófica, da observação de que a linguagem tem por base a prática e, por mais irónico que pareça, o pensamento de Wittgenstein é mais útil para os propósitos feministas do que os contributos das feministas pós-estruturalistas. Onde os tropeços teóricos do feminismo pós-estruturalista colocam em causa os seus objetivos políticos — de outro modo, louváveis —, Wittgenstein permite-nos compreender e levar a cabo estes objetivos.
O ponto de partida partilhado é este: a linguagem é um empreendimento prático e as sensibilidades que adquirimos quando aprendemos a dominar práticas linguísticas informam todos os processos envolvidos no nosso pensamento. Daqui, as feministas pós-estruturalistas concluem que é preciso abandonar qualquer esperança de encontrar uma forma não-distorcida de conceber o mundo, aceitando que tal conceção está absolutamente fora do nosso alcance. É este afastamento dramático do mundo, por vezes sinalizado através do uso de aspas em torno de noções como a de verdade, que dá ao feminismo pós-estruturalista o ar de abstração que consterna muitas das suas leitoras e leitores. Mas há uma confusão neste raciocínio que parece produzir essa perda do mundo. É que ele consagra, precisamente, a própria imagem a-perspetival do pensamento que procura contestar. As sensibilidades só podem parecer ameaçar uma forma desimpedida de acesso mental ao mundo se o modelo para tal acesso for a-perspetival. Wittgenstein é o melhor guia filosófico neste contexto porque é claro acerca daquilo que uma rejeição consistente de um ideal a-perspetival implica. Implica repensar a nossa imagem de pensamento direcionado para o mundo de modo a que esta deixe de estar dominada por um ideal de abstração das nossas sensibilidades práticas.
MP: Porque é que pensa que o trabalho de Wittgenstein, contrariamente ao trabalho das feministas pós-estruturalistas, é importante para pensar sobre política feminista e liberatória?
AC: As consequências políticas desta diferença teórica são surpreendentemente expressivas. Não há dúvida de que a maioria das feministas pós-estruturalistas tem ambições emancipatórias. Mas as suas teses caraterísticas privam-nas do uso não-qualificado de ideais, tais como o ideal de verdade ou o ideal de rigor, como instrumentos de avaliação social, sugerindo que não podemos, sem qualificação, representar as ideologias sexistas, racistas, capacitistas, idadistas e anti-trans como algo que distorce as vidas das pessoas que alegadamente retrata. E, por maior que esta desvantagem política seja, há custos muito maiores associados à relutância em desmantelar totalmente uma imagem a-perspetival do pensamento.
Esta imagem a-perspetival está na origem da ideia, enraizada na nossa cultura pública, segundo a qual uma compreensão rigorosa das relações sociais deve ser neutra ao nível da valoração. Estas afirmações de neutralidade, por sua vez, contribuem para sancionar ideologias sexistas e racistas perniciosas. Desresponsabilizam-se das orientações de valor que invariavelmente carregam, e o seu partidarismo dissimulado transforma-as nos instrumentos perfeitos para o reforço de relações de dominação injustas.
Estas dinâmicas podem ser observadas mais claramente a partir de perspetivas socio-teoréticas e históricas. O cruzamento de diferentes correntes de teoria social, incluindo teorias da reprodução social, teorias do capitalismo racial e teorias ecofeministas, revelam o modo como as ideologias sexistas e racistas são fielmente reproduzidas pelas estruturas fundamentais das formas de vida capitalistas. Este corpus socio-teorético adquire interesse adicional quando acompanhado por certas correntes de investigação histórica que identificam a ligação entre a ampla aceitação de ideais epistémicos a-perspetivais e os desenvolvimentos políticos, económicos e tecnológicos da modernidade capitalista. O que daí emerge é uma imagem de tais ideais a-perspetivais que evidencia o seu vínculo com as próprias estruturas capitalistas que, de acordo com várias teóricas e teóricos sociais, reproduzem fielmente os modos de opressão que estes ideais servem. A tarefa de nos libertarmos de ideais epistémicos a-perspetivais — ou estreitos — de forma escrupulosa afigura-se, assim, um exercício de resistência crucial, necessário ao discernimento de, e à luta por, valores mais justos e formas de vida mais sustentáveis.
A diferença teórica que se impõe entre quem desenvolve o seu trabalho a partir de Wittgenstein e quem segue as pisadas do feminismo pós-estruturalista está longe de ser politicamente trivial. Trata-se da diferença entre um confronto direto à imagem da nossa condição cognitiva que é interna à própria evolução do capitalismo extrativista global e uma mera inversão desta imagem de um modo que, não só não é capaz de desmantelá-la integralmente, como ainda nos priva de instrumentos críticos fundamentais para combater as injustiças mais gravosas do nosso tempo.
Parte II
MP: Tem feito oposição à imagem de Wittgenstein como um pensador conservador, insistindo particularmente nas conexões entre Wittgenstein e o projecto da crítica imanente, proposto pelos membros iniciais da Escola de Frankfurt. Podemos falar das relações entre Wittgenstein e a Teoria Crítica e sobre o modo como Wittgenstein nos pode ajudar a revigorar ou a revitalizar o projeto crítico?
AC: Até mesmo para dar início a uma conversa sobre a possibilidade de identificar ligações promissoras entre Wittgenstein e a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt é necessário fazer uma série de considerações prévias. Uma vez que frequentemente se assume que Wittgenstein adota uma postura conservadora sem grande interesse para o pensamento crítico, é útil compreender os motivos pelos quais ele e, em menor medida, outros filósofos associados à filosofia da linguagem comum, veio a ser associado a ideias reacionárias. E ajuda saber que alguns membros da Escola de Frankfurt, tais como Herbert Marcuse, contribuíram para a difusão da mensagem e, mais ainda, que o fracasso que caracterizou a receção da filosofia da linguagem comum contribuiu de certo modo para moldar o espaço conceptual no qual, ainda hoje, muito do trabalho em Teoria Crítica é desenvolvido. Claro que também temos de ter consciência de que existe, desde há muito tempo, resistência a interpretações conservadoras das ideias de Wittgenstein e de filósofos da linguagem comum. É por isso que em contextos, como esta revista, em que estratégias de receção alternativas são bem conhecidas, não é nenhum escândalo afirmar que os escritos de Wittgenstein estão na origem de temas que inspiram a crítica e que podem ajudar a clarificar e fortalecer as ambições centrais da tradição de Frankfurt.
Estas ambições foram inicialmente articuladas no final da República de Weimar, quando pensadores ligados ao Instituto de Investigação Social de Frankfurt se organizaram em torno da ideia de uma teoria crítica da sociedade. O objetivo era alcançar uma imagem libertadora da vida social que tornaria possível libertarmo-nos de formas ideologicamente distorcidas de compulsão social. Esta imagem levaria muito a sério o facto de que as nossas atitudes práticas moldam as noções que usamos quando procuramos trazer as relações sociais sob o nosso olhar. Para além de refletir essas atitudes, tal imagem aspiraria ainda a uma autoridade universal que «transcendesse» a sua fundação «imanente». Uma das principais ambições da Escola de Frankfurt é uma teoria que se qualifique como libertadora e rigorosa por ser capaz de conciliar esses requisitos de imanência e transcendência, e a expressão habitualmente usada para designar este projecto é «crítica imanente».
A história das tentativas de especificar o modo como se poderiam satisfazer os desideratos de tal crítica é algo desanimadora. Alguns dos esforços iniciais contam-se também entre os mais simples. Theodor Adorno e Max Horkheimer opuseram-se a qualquer sugestão de entraves ao pensamento social, que é simultaneamente, no sentido mais básico, imanentemente moldado por atitudes práticas e dotado de uma autoridade que transcende o contexto. Parcialmente guiados pelo método da Fenomenologia do Espírito de Hegel e parcialmente inspirados por elementos da conceção do juízo estético de Kant, Adorno e Horkheimer ensinavam que toda a crítica é crítica imanente. Subsequentemente, a tradição disseminou uma espantosa variedade de diferentes conceções desta mesma crítica, influenciadas, por exemplo, por versões revisionistas, institucionalistas, discursivas e outras mais ortodoxas da teoria moral de Kant, pela teoria pós-estruturalista, e por abordagens reconstrutivas aos procedimentos da Filosofia do Direito de Hegel. No âmbito deste turbilhão de visões, um tema consistente é o de que os requisitos de imanência e transcendência se encontram em tensão, e de que a sua harmonização requer determinadas manobras teóricas. É-nos dito que tratar os valores como algo que faz parte do mundo, de tal modo que formas imanentes de pensamento pudessem ser transcendentemente reveladoras, é uma ideia metafisicamente exorbitante. A conceção de pensamento direcionado para o mundo enquanto algo de valorativamente neutro e a-perspectival que assim é introduzida parece dificultar a tarefa da crítica imanente, sendo possível obter uma visão geral de muitas das concepções de crítica imanente hoje em circulação através de uma classificação das diferentes estratégias propostas para enfrentar estas alegadas dificuldades.
Há contribuições para a Teoria Crítica que, pelo contrário, reavivam inspirações da Escola de Frankfurt inicial. Um caso claro é o trabalho de Rahel Jaeggi, que rejeita a conceção valorativamente neutra da compreensão social que assola o projeto da crítica imanente, argumentando que as caraterizações das nossas formas de vida requerem categorias cujo caráter descritivo e normativo é inseparável. Jaeggi depara-se com a resistência de um tipo de crítica que, sem surpresas, acusa a sua visão não-neutra da compreensão social de a impedir de falar acerca da transcendência do contexto. E, ainda assim, ela não defende diretamente a imagem mais flexível de pensamento direcionado para o mundo com a qual opera. Dado o papel de ideais epistémicos valorativamente neutros na resistência a tentativas, como a sua, de recuperar o projecto crítico, tal defesa afigura-se urgente, e é novamente aqui que Wittgenstein pode oferecer um contributo significativo. Ele é, de facto, implacável a detetar e a atacar ideais de pensamento a-perspectivais e valorativamente neutros, que constituem entraves à crítica – e também a seguir o rasto de formas sob as quais estes ideais continuam a assombrar as nossas reflexões mesmo quando estamos convencidos de que os exorcizámos.
MP: Defendeu recentemente que a filosofia tardia de Wittgenstein é um recurso valioso para o ecofeminismo. Como é que isso se articula com a sua convocação de Wittgenstein no que diz respeito à Teoria Crítica, e será que há aqui uma relação com o seu trabalho em estudos críticos animais?
AC: A um certo nível, a resposta a essa pergunta é muito simples. O ecofeminismo, tal como o entendo, é uma teoria crítica que segue o espírito da escola de Frankfurt, e oferece um quadro teórico do tipo que é exigido para reimaginar a ética animal de modo a que esta possa responder a forças que estão a devastar a vida animal no planeta. Este segundo ponto é algo que tenho desenvolvido nos últimos anos juntamente com a filósofa e ecofeminista Lori Gruen.
O ecofeminismo é um movimento político e intelectual com cerca de meia década de existência que identifica ligações históricas e estruturais entre a destruição catastrófica da natureza e a contínua subjugação das mulheres, das pessoas pobres, colonizadas, racializadas ou de outro modo marginalizadas. A sua injunção prática fundamental é a de que respostas eficazes têm de confrontar estes males como um todo, e os seus principais compromissos teóricos incluem as seguintes três vertentes de pensamento, que se interrelacionam.
Uma vertente do pensamento ecofeminista trata de narrativas históricas acerca do modo como o desenvolvimento de formas capitalistas de organização social na Europa do início da época moderna, bem como o seu ímpeto colonizador, foram acompanhados por novas práticas de tratamento dos animais e da natureza enquanto meros objetos de uso, juntamente com novas práticas de denigração das mulheres e dos povos indígenas e escravizados. Uma segunda vertente, marxiana, dedica-se a identificar estruturas políticas e económicas que permitam explicar este alinhamento persistente da destruição da natureza não-humana com a subjugação das mulheres e de outros grupos humanos marginalizados. E uma terceira vertente, primariamente filosófica, da teorização ecofeminista identifica esta coincidência com o recurso abusivo aos usos instrumentais das razões que o capitalismo acentua, apelando a uma reconsideração da razão com vista a uma recuperação dos valores, irredutíveis a meros valores de troca, no mundo natural e nas interacções humanas. Esta última vertente de pensamento converge com as posições de Horkheimer e de Adorno, na Dialética do Iluminismo, segundo as quais uma resposta significativa ao cataclismo em curso precisa de reimaginar a razão de modo a que a sensibilidade seja interna ao seu exercício de trazer o mundo sob o nosso olhar. As ecofeministas insistem similarmente neste género de reformulação da conceção dominante de razão, e neste e noutros aspectos afiguram-se herdeiras da Teoria Crítica do nosso tempo.
Este é o pano de fundo do trabalho em ética animal que levei a cabo com Gruen ao longo dos últimos anos — uma parte significativa do qual será publicada no nosso livro, Animal Crisis, em maio deste ano. O cerne do nosso projeto é um reenquadramento da disciplina cinquentenária da ética animal, que se desenvolveu de forma desligada das tradições de pensamento social crítico que se têm dedicado a expor estruturas sociais com efeitos desastrosos nos humanos e na natureza não-humana. Muitas práticas devastadoras para os animais não-humanos estão enraizadas em grandes instituições que são também fonte de danos gravosos infligidos a grupos marginalizados de humanos. Não há, portanto, nenhum modo de nos debatermos significativamente com questões éticas acerca de como melhorar as relações entre humanos e animais sem reorientar profundamente a ética animal de modo a que esta tome uma forma crítica. Uma caraterística importante do nosso método alternativo é pensar em resposta a problemas de animais em contextos mundanos particulares. Estamos a trabalhar conscientemente em solidariedade com ecofeministas e outras teóricas críticas, e chamamos a atenção para este aspeto da nossa postura através da designação «teoria crítica animal».
MP: O seu trabalho sobre Stanley Cavell expande a sua leitura crítica de Wittgenstein. Austin e Wittgenstein foram muito importantes para Cavell, no que toca a pensar a democracia no âmbito das nossas formas de vida, a inscrever o comum no cerne da crítica social, ou a propor uma filosofia política genuinamente americana na senda de Ralph Waldo Emerson ou Henry David Thoreau. Poderia relembrar-nos o modo como veio a contactar com o importante trabalho de Cavell e o tornou frutífero para a teoria crítica?
AC: Cavell foi um dos meus professores, um amigo maravilhoso e, para mim, um modelo de como o exercício da filosofia pode configurar uma confrontação com os desafios da vida, e não uma mera técnica profissional. Neste momento, tenho pensado nele ainda mais do que é habitual. Nancy Bauer, Sandra Laugier e eu — todas nós consultoras do seu espólio — trabalhámos durante vários anos naquele que será o seu primeiro volume póstumo, uma coleção brilhante e cativante chamada Here and There: Sites of Philosophy, a sair em Abril deste ano, que contém exercícios filosóficos que expressam claramente a sua voz tão singular.
Nos seus relatos do seu próprio desenvolvimento filosófico, Cavell apresenta o seu encontro inicial com J. L. Austin como um momento decisivo, explicando que as aulas de Austin lhe ofereceram um caminho até ao seu próprio pensamento. Nesse contexto, foi particularmente importante o incitamento de Austin a que atentemos no modo como as palavras fazem coisas, assim como a sua sugestão de que tal atenção depende da nossa predisposição para reconhecer e refinar a nossa sensibilidade à linguagem. Quando Cavell começou a estudar seriamente as Investigações Filosóficas de Wittgenstein, uns anos depois, elaborou esta imagem dos nossos modos com as palavras. Mais tarde, discutiu frequentemente as diferenças substanciais que via entre Austin e Wittgenstein, mas atribuiu a ambos evocações poderosas do modo como falar uma língua é inseparável dos contextos em que os falantes estão envolvidos, aos quais Wittgenstein chama «formas de vida».
É este o cenário da singular concepção cavelliana da filosofia. Situada naquilo a que Cavell chama «o comum», a filosofia requer uma capacidade de reação a contextos particulares, empregando as categorias disponíveis num determinado tempo e lugar, e reflete também o nosso impulso para apreender o modo como as coisas realmente são. Filosofar é negociar entre estas duas exigências — em Here and There e noutras obras, ele representa-as como as duas margens de um rio que tem de ser interminavelmente navegado — e uma imagem austiniana-wittgensteiniana da linguagem ilumina o modo como estas negociações podem ser resolvidas localmente. Relativamente ao tópico das ligações entre Cavell e a Escola de Frankfurt, um ponto fundamental é que podemos redescrever o filosofar cavelliano como uma harmonização dos requisitos de imanência e transcendência. Podemos também dizer que Cavell favorece uma imagem da linguagem que nos permite satisfazer os requisitos da crítica imanente — e de que a semente de tal crítica se encontra, no seu entender, em todo o pensamento verdadeiro.
Estes não são evidentemente os termos que o próprio Cavell usa ao refletir sobre o interesse social e político do legado da filosofia da linguagem comum. Ele tende a relacionar os temas desta tradição com lições acerca da conversa democrática na filosofia americana, em particular no pensamento de Emerson e Thoreau. No âmbito desta conversa na sua forma ideal, as contribuições dos indivíduos exprimem o seu próprio juízo, sendo o juízo entendido como pressupondo a capacidade de reconhecer e desenvolver os seus interesses e atitudes. Embora o próprio Cavell não o afirme, a sua visão política converge espantosamente com o trabalho tardio de Hannah Arendt sobre o juízo enquanto «capacidade especificamente política». Uma das lições centrais desta visão é a de que somos, enquanto cidadãs e cidadãos, responsáveis pela criação de condições sob as quais cada um/a de nós possa julgar. Esta mensagem está longe de ser irrelevante nos tempos catastróficos em que vivemos, nos quais as estruturas políticas que tratam tantos seres humanos como fungíveis, e que devastam os animais não-humanos e ameaçam toda a vida no planeta, tendem também a privar-nos dos nossos recursos para julgar de forma diferente e, portanto, para resistir.