Forma de Vida: Como se chega de Viana a professor catedrático?

António M. Feijó: Nunca tive uma ideia de carreira ― e não por ser de Viana, de Viana, tal como de qualquer lugar, chega-se a todo o lado. De facto, em miúdo não fazia ideia do que queria ou ia ser. As pessoas por vezes pensam no futuro; eu não pensava no futuro, queria só que o presente se mantivesse inalterado. Há um momento, no final do ensino secundário, em que alguns tinham de decidir para que faculdade ir. Na altura, as escolhas eram muito restritas. As pessoas escolhiam entre um curso técnico — Engenharia, por exemplo, se tinham algum gosto nisso — ou as duas outras licenciaturas, as licenciaturas que se presumia coroarem a vida activa: Medicina e Direito. Eu fui para Direito, porque me tinham convencido de que as letras seriam mais o meu domínio do que as ciências, embora me apercebesse, quando estudava uma disciplina científica no ensino secundário, de que gostava mais daquilo do que me seria natural gostar, porque a minha aptidão, segundo me diziam, era para letras. Talvez eu fosse, de facto, um físico no armário, ou um matemático no armário. Seja como for, escolhi Direito. Estive lá dois anos. Percebi algumas coisas nesses dois anos. Percebi que o ensino era autoritário e absurdo, em grande parte uma extensão do regime, mas que o Direito em si era uma construção intelectual dificilmente igualável. E que se tratava também de um idioma diferente: usava palavras portuguesas, mas era uma língua estrangeira que tinha de se aprender a usar. Hoje, olhando para trás, percebo que o Direito é ainda mais intelectualmente impositivo e brilhante do que eu pressentia na altura, embora, dada a natureza da instrução, fosse difícil concebê-lo. De modo que, a certa altura, decidi sair de Direito. E quando decidi, olhei em volta e pensei em Filosofia, pensei em Literatura, por uma razão muito simples: tinha à minha frente a possibilidade de fazer uma licenciatura de cinco anos, com o espectro da Guerra Colonial no final, e o dilema que a Guerra Colonial colocava então a muitos de nós: não ir para a guerra e sair de Portugal, ou ir para a guerra. Era um dilema sério para muitos. Pensei, então, que nesses cinco anos frequentaria uma licenciatura que me permitisse fazer o que gostava de fazer, que era ler. Em certo sentido, fui um mau aluno, embora tivesse notas altas. Não era um aluno assíduo, passava muito tempo a ler e a fazer aquelas coisas que as pessoas fazem quando não estão a ler. [Sorrisos] Não tinha noção absolutamente nenhuma do que queria fazer quando acabasse o curso. Quando não se tem noção do que fazer profissionalmente quando acabar o curso, pode sempre continuar-se a estudar. Tal como na balística: o projéctil é lançado e mantém-se provisoriamente em órbita. Manter-se em órbita, adiar a descida, era fazer uma pós-graduação. E foi assim que fui para os Estados Unidos fazer estudos pós-graduados. Os Estados Unidos não eram propriamente exóticos, porque tinha lá feito o último ano do liceu. Escolhi Literatura Inglesa e Norte-Americana justamente porque isso me permitia continuar a ler. Havia vários estudantes portugueses a fazer o doutoramento fora, e quase todos tinham um vínculo à universidade em Portugal, iam fazer o doutoramento para depois voltarem. Mas eu não tinha vínculo nenhum, nem qualquer perspectiva de emprego no fim da universidade.

 

FdV: Mas voltou. Por que não continuar nos Estados Unidos?

AMF: Sim. Realmente foi por razões pessoais. Antes de voltar, via os meus colegas norte-americanos preocupados e lançados na tentativa de conseguir uma posição, mas isso também me era um pouco estranho, essa procura. Eu ia vendo o que se fazia, mas estava um bocado desarmado por não saber bem como jogar esse jogo.

 

FdV: Portanto, acabou o doutoramento e regressou a Portugal, sem vínculo.

AMF: Sem vínculo. Aliás, entrei na Faculdade de Letras candidatando-me a uma posição para a qual era apenas necessária a licenciatura. Entrei como assistente estagiário. E depois de entrar como assistente estagiário pedi a equivalência à minha tese de doutoramento, com a reserva mental de não reconhecer idoneidade a qualquer júri que sobre isso se pudesse pronunciar. (É um interessante problema metafísico saber se alguém a quem é recusada uma equivalência é doutorado ou não, um problema paradoxalmente só de incidência local. Como pode uma universidade portuguesa pronunciar-se sobre um diploma de uma outra instituição parece um afã excessivo e injustificado.) Tendo-me, entretanto, sido dada a equivalência, passei a professor auxiliar. Mas a minha entrada foi também nestas circunstâncias um bocado bizarras.

 

FdV: Um dos primeiros textos longos que publicou foi O Ensino da Teoria da Literatura e a Universidade. Aí começa por definir a ideia de universidade como liberal, à conta de, sobretudo, Newman; esta ideia parece ser o cerne das mudanças que ocorrerão mais tarde na Universidade de Lisboa e às quais está associado. Qual é esta ideia de universidade liberal?

AMF: A minha defesa dessa ideia nesse livro aparece mais elaborada numa longa nota de rodapé. O livro é um relatório que fiz para o concurso de professor associado, e não pensava publicá-lo como livro. Foi um amigo, o professor Herman Salomon, que, tendo lido o texto, sugeriu que o publicasse. A defesa que eu fazia lá de uma universidade liberal era uma resposta à vida universitária de então e ao modo como na Faculdade de Letras se concebia o ensino universitário. Percebi que um perigo que a Faculdade de Letras então corria, e que as pessoas que geriam a instituição não estavam a considerar, era o da perda de relevância que resultaria de se manter uma escola estritamente vocacional, como, aliás, são todas as faculdades das universidades portuguesas. E perdia porque se confinava a um domínio que só levava ao ensino, como tradicionalmente sempre levou, e que, numa altura em que a evolução demográfica iria tornar essa saída profissional inviável, a Faculdade se ia transformando numa escola superior de educação ― instituição altamente virtuosa em si mesma ― e condenava-se à inexistência. Ora, o que se fazia lá era suficientemente importante para que se considerasse central à universidade. E o argumento de que o que lá se faz é central a uma universidade é um argumento pela negativa: o que é uma universidade sem Filosofia, História, Literatura, Estudos Clássicos? A universidade sem isso fica severamente mutilada, severamente amputada.

 

FdV: Porquê?

AMF: Porque são domínios centrais do saber. Sem isso, dispomos apenas de saberes instrumentais técnicos. Não temperados, estes saberes podem ter consequências gravosas.

 

FdV: Mas essa é uma objecção levantada, ainda hoje, pelos defensores das escolas vocacionais: ninguém consegue explicar com precisão a utilidade das matérias que está a apontar como centrais.

AMF: Sim, mas, se o critério for o da utilidade. Aliás, mesmo sobre o critério de utilidade há argumentos fortes a favor desses domínios. Por exemplo, tomemos a História e a Filosofia. A História e a Filosofia são, neste momento, modos de introduzir salubridade no discurso público. A História tem a ver com a fixação da memória de um modo estável e talvez preciso, ou com, pelo menos, a tentativa de o fazer. Uma sociedade que despreze a História é como alguém afectado pela síndrome de Alzheimer: vive num presente perpétuo. A Filosofia tem a ver, por seu turno, com critérios partilhados de racionalidade na discussão. E hoje, dada a natureza do discurso político e público, são virtudes preliminares essenciais. Portanto, até mesmo do ponto de vista instrumental, o que lá se faz é crucial. Mas para além disso, há um modo substantivo de as defender. O modo substantivo é dizer que são parte de uma tradição, daquilo que alguém passa a um outro recém-chegado, passagem sem a qual o mundo deixa de ser reconhecível como sendo o mundo humano habitável que outros conheceram e honraram.

 

FdV: Mas isso remete para um sentido público; como é que convencemos um aluno de 18 anos que está a fazer programação informática dessa centralidade?

AMF: Falar da centralidade do que se faz numa faculdade de Humanidades na universidade não quer dizer que o que nela se faz seja um pré-requisito obrigatório para qualquer aluno. Penso que se alguém está a fazer programação informática e gosta de o fazer, não tem de se desinquietá-lo e dizer que deve fazer Humanidades. Não é tanto um requisito como é dizer que, pressupondo essa liberdade que todas as pessoas têm, de poder cingir-se a um único domínio, e a um único domínio técnico, no arranjo sistémico do que é a universidade, aquele outro domínio das Humanidades é um domínio central. Como aluno, o programador informático pode cingir-se à programação informática, mas eu não sei até que ponto é que se pode dizer que essa pessoa seja uma pessoa «educada». Educada não no sentido de dominar formas de relação ou de etiqueta socialmente esperadas, ou de ser capaz de invocar em conversa as referências que habitualmente se fazem, e permitem qualificar alguém como «culto». Não é isso. A cultura é muitas vezes tomada como uma forma de desenvoltura idiomática no interior de um conjunto de referências. Isso para mim é absurdo, algo de análogo a ostentar sinais exteriores de riqueza. Ser culto nada tem a ver com isso. Mas uma pessoa que se confine a um único domínio sofre de uma mutilação da experiência, porque há coisas que lhe são vedadas e vive cego em relação a elas, vive na ignorância da conversa que poderia ter com as cabeças mais fortes do passado, que iniciaram ou prosseguiram uma conversa sobre muito do que nos interessa.

 

FdV: Como?

AMF: Por que é que os grandes romances podem ser interessantes, ou foram interessantes? Porque tinham a capacidade desenvolta e espaçosa de considerarem certos dilemas morais com uma finura que abreviava aos leitores a inteligibilidade que poderiam adquirir de muitos problemas pessoais, porque liam ali, exposto de um modo memorável que os excedia, dilemas morais que experimentam nas suas vidas numa penumbra emotiva. A literatura tinha — tem — um valor cognitivo. O programador informático de que falávamos pode ter capacidade de processar este tipo de experiência que os romances de algum modo suprem, muito acima da do profissional leitor de romances que nunca consegue realmente acolher o que o romance lhe diz. Não estou a fazer juízo de valor. Mas a defesa vocacional pressupõe que posso aprender uma coisa específica, uma técnica, ou um saber instrumental, ou um saber tecnológico, ou científico-tecnológico, e até tornar-me um perito nisso, com um grau de conhecimento muito preciso e aturado, mas não considera o que implica a ausência do resto. Essa pessoa pode por si ter resolvido uma série de questões que são tratadas na literatura, na filosofia, etc. Com certeza; mas há ordens da experiência por cuja elaboração alongada essa pessoa não passou. E são ordens da experiência que podem ser importantes. É só isso.

 

FdV: Nesse livro sobre o ensino da teoria da literatura, de modo introdutório, também define um perfil dos alunos que procuravam Letras naquela altura (princípio dos anos 1990). Trinta anos depois, qual é o perfil das pessoas que procuram Letras?

AMF: Parece haver pessoas que procuram Letras, que é o tipo de pessoa que procurava Letras, ou que tem procurado Letras, nas últimas décadas. Seria um contingente estável que não se alterou. E muitas vezes se assume existir um contraste entre as pessoas que vão para Ciências e as que vão para Letras. É um contraste proverbial: as pessoas que vão para Ciências teriam um lado mais desenvolto com o mundo, com a técnica, enquanto as pessoas que vão para letras teriam uma sociabilidade mais interiorizada ou menos expansiva, associado a um maior gosto por ler. Não estou certo de que este contraste seja real (eu, por exemplo, passei mais tardes a jogar futebol do que a ler). Há pessoas que habitam os dois mundos e depois decidem por razões de outra natureza, razões dessas pessoas, habitar um ou outro. Mas agora, em Letras, acho que se vê uma alteração. A criação das licenciaturas como «Artes e Humanidades» ou «Estudos Gerais» — e estou a falar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a escola que conheço — atrai um tipo de estudante diferente. É o tipo de estudante que, com a segmentação que havia antes, talvez não tivesse ido para Letras, ou ido com a mesma força de ímpeto, mas que agora, percebendo que pode ingressar numa licenciatura — por exemplo, «Estudos Gerais» — em que circula pelas faculdades de Ciências, Belas-Artes, Letras, etc., pensa: «Eu aqui consigo viver», ou «Eu aqui gosto de viver.»

O curso de Estudos Gerais é muito parecido com o que seria um curso de artes liberais nos Estados Unidos (a universidade na Europa continental é toda ela um mosaico de escolas vocacionais, tal como a nossa). Muitas universidades nos Estados Unidos põem em prática o modelo humboldtiano de universidade. E até um modelo anterior, medieval. Qual é a diferença? A diferença é que todos os saberes estão disponíveis, o aluno circula por todos, não se confina a um. Com algumas limitações, em alguns sítios; sem limitações, noutros sítios. Tem a liberdade de percorrê-los como quiser. É esta também a licenciatura em Estudos Gerais.

A licenciatura em Artes e Humanidades faz isso ao nível da Faculdade. O aluno entra e tudo aquilo que uma faculdade de Letras e uma escola de Humanidades oferece — Filosofia, História, Linguística, Estudos Clássicos, todas as literaturas —, pode ser percorrido, não fica confinado a lugar nenhum. A Faculdade de Letras acabou por ser o núcleo da licenciatura em Estudos Gerais, e acho que permanece como tal, atraiu alunos de outra natureza, alunos que não seriam os alunos naturais de Letras. Isso tem implicações no clima intelectual da escola, e no modo como as aulas podem ser dadas. Leva também a preocupações nos alunos, em relação a campos que erradamente se considerava que deviam estar fora da universidade, ou que eram do estrito domínio de um ocioso jardim murado, como por exemplo a Teologia. As pessoas começam a ter preocupações dessa natureza porque lhes são dadas condições para perceber que na Teologia se encontram construções intelectuais dificilmente excedidas. E as pessoas são atraídas também por isso. Acho que isto alterou a atmosfera intelectual da escola de um modo significativo.

 

FdV: Em contraponto a esta ideia de universidade liberal…

AMF: Eu gostava de qualificar o que quer dizer «liberal». «Liberal», em português, é, no debate público, um termo invocado para impugnar posições políticas, ou para as defender. Mas «liberal» no sentido de artes liberais, como sendo aquilo de que uma universidade trata, aí, «liberal» quer dizer «liberto de qualquer implicação prática». Portanto, o que uma pessoa faz no ensino daquele domínio do saber, se esse domínio do saber é uma das artes liberais, é entrar num percurso intelectual liberto de aplicação prática. Há um exemplo que eu gosto de usar, um dos exemplos mais difíceis contra esta apologia da liberalidade dos saberes. Tentei pensar — e, no livro,[1] falamos, o Miguel e eu, disso — no que seria o contra-exemplo mais contundente deste tipo de posição. Uma universidade, perante uma crise pandémica que seja mais virulenta do que a que tivemos, terá de apressar-se a criar uma vacina que combata essa crise pandémica emergente. Quando uma universidade está a tentar criá-la, não está decerto a ser liberal no sentido de «liberta de qualquer implicação pragmática»; prima facie parece ser exactamente o contrário. Mas não é. Ou a possibilidade de fazer essa vacina está disponível com o saber de que dispomos, e trata-se apenas de o traduzir praticamente, e a questão é trivial, mesmo se difícil; ou então, é necessário descobrir algo de novo para conseguir fazer essa vacina. Podemos descrever isso no âmbito do que é uma instituição liberal, dizendo: o problema teórico da descoberta que é requerida para fazer a vacina é um problema inédito no interior de uma disciplina, de um domínio do saber. A resolução desse problema é uma questão no interior de uma história disciplinar compendiada num estado de saber actual, a Biologia, por exemplo. A liberalidade, o alheamento da extensão prática, cessa com a resolução do problema conceptual. Resolvida a questão, a universidade enquanto tal terminou o seu trabalho. A tradução prática da descoberta sob a forma de uma vacina que possamos tomar excede a universidade. Isso já é outra coisa. A universidade pode até fazer uma patente desse resultado inédito entretanto conseguido, e ser ela própria a explorar isso. Com certeza. Mas já não é a universidade enquanto universidade, é a universidade enquanto empresa constituída para esse fim. Ou seja, a natureza liberal da universidade revela-se apenas quando um problema está a ser considerado no interior de uma tradição de problemas de um dado domínio do saber. E aí está liberto de implicações pragmáticas, mesmo se a procura da sua resolução as possa ter por horizonte.

 

FdV: Mas toda essa posição e o exemplo extremo que está a dar parece ser precisamente o oposto de tudo o que tem sido feito, ou defendido, política e publicamente, sobre a universidade. Como é que se sustém esta posição?

AMF: Pensemos em como responder aos desafios que estava a descrever. Como se resolvem esses desafios? A vacina do COVID foi resolvida porque houve uma descoberta científica no interior da Biologia, que precede o COVID, que não tinha ao tempo aplicação prática perceptível, e cuja aplicação veio a resultar na construção da vacina. Algumas dessas descobertas dão-se porque alguém se encontra à volta da máquina de café com uma colega cientista, iniciam ambos uma conversa, e surge daí qualquer coisa. E essa qualquer coisa que surge pode ficar sepultada numa publicação durante algum ou muito tempo, ou ser subitamente reavivada à luz de um contexto novo em que se pensa que talvez tenha uma aplicação prática. Portanto, se uma pessoa privilegia uma ênfase exclusivamente prática e de aplicação, e deixa cair aquilo a que se chama investigação fundamental, investigação levada pela curiosidade, ou investigação liberta de uma imediata aplicação imediata, sofrerá à frente, porque todo esse saber que podia ter sido obtido nesse ambiente de liberdade especulativa — que é justamente o conhecimento que depois se poderá revelar fecundo — deixa de existir.

 

FdV: Editou, com Miguel Tamen e João R. Figueiredo, O Cânone; uma das cadeiras instituídas pelas alterações nos cursos da Universidade de Lisboa foi a de Textos Fundamentais. Gostava de ouvi-lo falar sobre a aparente contradição de instituir um cânone numa universidade liberal no sentido do saber como o acabou de definir.

AMF: Liberalidade, aqui, não quer dizer alheamento, isto é, julgar que, se uma instituição é liberal, as pessoas que praticam esses domínios liberais não têm convicções profundas, ou são molemente latitudinárias, porque aceitam qualquer coisa, não têm posição ou apreciações precisas sobre alguma coisa. Dentro de uma instituição liberal pode muito bem haver alguém que defende modos muito ortodoxos de resolver ou de lidar com questões no seu domínio do saber. A liberalidade, querendo dizer, no primeiro sentido, «isento de uma preocupação pragmática», e, no segundo sentido, «liberdade intelectual de desenvolver o que se faz», não prescreve um estilo. Pode até incluir o estilo assertivo e monológico de alguém na prática de ensino no seu domínio. O que eu quero dizer é que, dentro de uma instituição liberal, alguém pode fazer juízos que, ou no que têm de exclusivo, são terminantes, ou naquilo que elegem como posição própria são fortemente afirmativos. Esse estilo é perfeitamente possível dentro de uma instituição liberal.

No caso d’O Cânone, o título tem um lado de jogo. O título que tínhamos inicialmente previsto, como já contámos os três várias vezes, era tirado de uma inscrição que está na esquina de uma rua da baixa pombalina lisboeta: «I. Divisão do Lado Ocidental» (primeira divisão do lado ocidental). Por que não o usámos? Porque que fora usado antes. Decidimos, sobre a hora, que o título seria «O Cânone», título cuja escolha tinha um lado de desfaçatez, uma espécie de desfaçatez controlada. Mas a assertividade, aqui, era um jogo. Os três sabíamos que o que o livro continha era uma proposta de nomes, perdida à partida. Apesar do título tão terminante no tom, na sua aparência tão tábuas do Sinai, não pretendia ser nada disso. De um ponto de vista pessoal, não falando sequer em nome dos outros editores, o interesse que um volume destes tem para mim é a possibilidade de escrever seis ou sete ensaios em que, em cada um deles, vou tentar sintetizar a obra de um autor, sobre que escolho escrever porque lhe reconheço importância ou interesse. E escrever aquelas sete páginas força-me a ler a obra daquele autor.

 

FdV: Era Saramago uma das pessoas por quem se interessaria para escrever um ensaio caso não houvesse um constrangimento acerca de ideias sobre o cânone?

AMF: Eu sempre quis escrever um ensaio sobre Saramago. O primeiro livro de Saramago que li, O Ano da Morte de Ricardo Reis, levantou-me uma série de questões que me pareciam muito interessantes sobre a posição do autor. Queria perceber por que adoptava por vezes o narrador um certo modo ou tique expositivo que caracterizei uma vez, numa aula, como “falsamente estúpido” (em que, por exemplo, sem pretender citar de modo fiel, o fumo da chaminé de um navio que entra no Tejo é descrito como vindo de noroeste em direcção a sueste, seguindo-se uma explicação laboriosa do narrador de que isso se deve à direcção do vento, o que quer dizer, explica-nos, desnecessariamente e com um sorriso suposto ao leitor, que, se o vento estivesse de sueste, o fumo iria naturalmente para noroeste). Escolhi escrever sobre Saramago, cuja obra completa é de uma magnitude real, sem considerar a figural cultural em que se tornou pelo facto de ter ganhado o Nobel. A cultura oficial portuguesa, porque é débil, entroniza essas consagrações exteriores de um modo excessivo. O reconhecimento do exterior é a certificação interna, por fim atingida, do valor de alguma coisa, a que se segue uma adulação interna, aberta ou contrafeita. Mas se Saramago não tivesse ganhado o Nobel também estaria no livro, porque é um dos grandes romancistas do século XX. 

 

FdV: Perante essa posição em relação à relevância canónica de alguns autores, como é que se incluem textos de Bob Dylan numa cadeira como a de Textos Fundamentais?

AMF: A melhor descrição que li sobre Dylan é de uma escritora, Tessa Hadley. Num breve texto, ela diz a certa altura que o século atravessou o corpo de Dylan, encontrou o seu ponto de articulação nele. Com os custos que é possível imaginar em quem foi assim atravessado. Na arte da segunda metade do século XX, alguns dos nomes maiores são Lennon, McCartney ou Dylan. Isto é um truísmo ou um lugar-comum em qualquer lado, e só o andei a referir nas aulas por me parecer que, se vamos acolher curricularmente a cultura popular recente, acolhamos a que excede quase tudo o que lhe é contemporâneo. Estamos a falar de uma forma de arte que só foi possível na segunda metade do século XX. Quatro pessoas encontram-se em Liverpool e exploram uma afinidade: poucos anos antes, poderiam tocar num pub e fazer coisas interessantes porque tinham talento, que é algo de universalmente muito repartido. Em circunstâncias normais, até, digamos, 1950, não teriam talvez deixado traço que excedesse o seu lugar de origem. Mas, com a acessibilidade do disco de vinil e a disponibilidade quase universal de acesso a um pequeno aparelho para o reproduzir, essas pessoas encontraram-se no momento histórico em que podiam, através da rádio e desse pequeno equipamento de baquelite, exceder os limites de audição de um pub em Liverpool e serem ouvidos em qualquer lado. Tiveram acesso a um mercado planetário, em processo de criação. E tiveram esse acesso em condições de relativo despovoamento, ou seja, a música então existente de um modo mais vital para um conjunto de auditores com acesso a essa tecnologia incipiente era aquela. Como, no caso dos Beatles, o seu imenso talento foi reconhecido quase imediatamente, isso criou uma situação rara na história da criatividade: quatro rapazes segurados na palma da mão do planeta, com um número muito grande de pessoas à espera do seu próximo disco, da próxima inovação que fizessem, que se esperava que surpreendesse, e que, de facto, sempre surpreendia. E em sete anos de carreira gravada alteraram a cultura ocidental.

 

FdV: Disse que os Beatles revolucionaram tudo, e eu gostaria que definisse «tudo».

AMF: A carreira deles é de 1963 a 1970, enquanto grupo gravado. É qualquer coisa de raro como alguém em poucos anos evolui assim. Isto levanta uma interessante questão sobre arte, que aqui ressurge: quais são os nomes decisivos numa arte há pouco iniciada? Ou, no interior de uma arte já estabelecida, quais são os nomes decisivos? Habitualmente não são os primeiros, são os segundos. São os segundos quem determina decisivamente essa forma da arte. A música dos anos 1950 tem coisas extraordinárias, mas são os Beatles que irão levá-la a um lugar que a excede. Os segundos excedem os primeiros, mas só são possíveis pela existência dos primeiros (e, neste caso, pela iniquidade política de os primeiros terem sido, neste caso, em grande parte músicos norte-americanos negros, e impedidos então, por isso, de ocuparem maioritariamente o mercado). Que revolucionaram tudo é visível a contrario: é difícil, se não impossível, considerar a história do último meio-século sem a presença dos Beatles.

 

FdV: Tudo o que está a dizer sobre Beatles pode ser transposto para a Beyoncé. Lendo as críticas da evolução de um disco de Beyoncé para outro, é esse o argumento.

AMF: A Beyoncé aparece num meio muito mais saturado, em que a produção é sem fim. E é uma produção deliberadamente segmentada, para grupos e idades particulares. Os Beatles estavam num ambiente mais rarefeito, a segmentação de públicos era bem mais reduzida. A produção da Motown não era um segmento particular tão denso que criasse uma cultura alternativa. As pessoas podiam dizer: «Não gosto de Beatles, gosto dos Stones», «Não gosto de Beatles, gosto de Smokey Robinson», mas continuava a ser uma escolha dentro do que era tido por um mesmo universo, muito reduzido em comparação ao existente. No existente, há pessoas que podem gostar de uma sub-família de rap que nem sequer está disponível em disco. Os nichos e a segmentação de públicos são tão numerosos que são incomunicáveis entre si, e a demografia dos públicos torna-se progressivamente mais nova.

 

FdV: Nunca publicou muito; talvez a sua grande obra seja Uma Admiração Pastoril pelo Diabo. Por que escreveu tão pouco?

AMF: É verdade que escrevi pouco, talvez porque li muito, e porque a actividade de escrever nunca foi para mim agradável. Há um livro, anterior a esse, sobre Wyndham Lewis, que talvez o exceda. Mas o livro tem um problema: é sobre um autor muito complexo e pouco conhecido. E, portanto, o número de leitores é muito reduzido. Por que decidi escrever sobre Lewis? O programa de doutoramento em que eu estava exigia que fizéssemos exames de doutoramento, que eram um pré-requisito à escrita da tese. Um desses exames era oral, sobre uma lista de obras da literatura inglesa e norte-americana da época medieval até ao presente, de Chaucer a Joyce. O outro era um exame escrito sobre um autor, um género, um tópico, que escolhi fazer sobre Hemingway, porque estava a pensar escrever uma tese sobre ele. Quando li a obra, e muita da bibliografia crítica sobre ela, deparei com um ensaio de 1932 de Lewis, «Hemingway, the Dumb Ox», incluído num volume chamado Men Without Art, que me pareceu, de longe, a melhor coisa escrita sobre Hemingway. (O título era uma alusão ao de um livro de short stories de Hemingway, Men Without Women.) Era fácil perceber que, quando Eliot descreveu Lewis como o homem mais inteligente do século XX, isso não era uma boutade (excepto no sentido em que qualquer afirmação dessa natureza é uma boutade). Nem me surpreendeu que, nos anos 1970, um homem chamado John Martin tivesse criado uma editora, a Black Sparrow Press, para republicar a totalidade da obra do Lewis, cujos direitos comprou, explicando que fora como comprar o copyright de algo tão exuberante e rico como a civilização azteca. A obra inclui ficções, algumas das quais tão ou mais complexas do que Ulysses, livros sobre política, filosofia, estética, arte (Lewis, também pintor, foi o criador do vorticismo inglês). Mas é um universo intelectual e imaginativo difícil. Num dos livros, por exemplo, The Art of Being Ruled, de 1926, numa página no primeiro terço do texto, Lewis defende uma posição, e, cento e tal páginas mais tarde, defende de modo dificilmente percetível o seu contrário, não sendo isto uma incoerência lógica, pois a contradição é deliberada, o que me fez tentar perceber porquê. A crítica sobre Lewis é relativamente escassa, e quase toda muito boa, porque alguns nomes maiores foram atraídos por ele. O meu propósito foi tentar perceber qual a coerência, se alguma, daquele sistema, que, aliás, se revelou clara.

 

FdV: Há uma característica que une as várias coisas que escreveu: a palavra «sistema». Identifica o sistema de Pascoaes nas biografias; Pessoa tem o sistema heteronímico; em relação a Lewis, voltou a falar de sistema. E há um autor, de quem fala menos, José Régio, onde a ideia de sistema também parece evidente.

AMF: Normalmente só escrevo sobre pessoas que admiro. Não escrevo para impugnar ou derrubar coisas. Não estou interessado nisso, acho que é uma perda de tempo. E escrevo apenas sobre escritores que admiro porque quero tentar articular por que razão os admiro. A admiração tem a ver com alguma coisa de singular ou inédito naqueles textos, e em como se encadeiam. A atracção não tem a ver com sedução. A ideia de prazer, de jouissance, sempre me pareceu uma evasiva fácil. Tem talvez mais a ver com a natureza intelectual da apreciação. Por isso escrevo sobre autores de que gosto. Mas isto é decerto assim com muitas pessoas. Há, de facto, nesses autores um encadeamento de posições que permitem identificar uma lógica que os agrega, que os torna sistema, ou, pelo menos, nesses casos assim me pareceu, e a análise consistiu em tentar descrevê-lo.

 

FdV: Agustina parece ser uma autora menos predilecta precisamente porque não tem um sistema. A sua obra depende do «golpe aforístico», segundo definição sua. Além da admiração por um autor, o seu interesse cessa quando percebe que a obra tem algo de casuístico?

AMF: Quais eram os nomes que a Agustina mais admirava no século XX português? Pascoaes e Régio. E Camilo antes deles. Eram os nomes maiores para ela. Mas Agustina é como se Camilo e Pascoaes entrassem numa zona de turbulência, em que o controlo em parte se perde. Agustina está longe de me interessar tanto como os outros três, é verdade. Uso a palavra sistema porque é um modo estenográfico de dizer que há qualquer coisa no universo de cada um desses autores que organiza aqueles textos, que os anima. Mas, em alguns deles, é uma coerência deliberada, programática, decisiva; decidem expor uma série de posições que lhes são cruciais. E às vezes disseminam esses pontos sem os trazer à frente, tal como outras vezes decidem claramente expô-los. O interesse consiste em tentar articular em que é que isto consiste: várias vezes descrevi Pascoaes como um compêndio de heresias, pois ele é, tecnicamente, um marcionita e um maniqueu, no sentido teológico desses termos. Mas isto só se torna perceptível depois de atravessar aquele extraordinário conjunto de obras. E a partir desse momento, parece haver interesse em articulá-lo. A crítica tem um lado intelectual, de tentar descrever com precisão aquilo que está a tentar analisar.

 

FdV: N’O Ensino da Teoria da Literatura descreve-se como sendo agnóstico em relação a tudo, assumindo sempre uma posição de neutralidade implícita. Mas a certa altura, na Admiração, tem uma passagem, na qual está a falar de uma ode de Ricardo Reis, de Pessoa, em que diz que a leitura adverbial da palavra «avaro» salva o poema; depois afirma que essa leitura «será decerto bem-vind[a] porque preserva o formalismo de uma análise plena e sem resto, sob cujo regime a interpretação literária parece não poder deixar de fazer-se». Tem uma teoria sobre como se deve ler e como se deve interpretar?

AMF: Não me parece que haja, ou seja possível que haja, uma teoria geral da interpretação. Os textos que analisámos, participando de diversos traços em comum com outros, são singularidades, mesmo se, em regra, oneradas de débitos diversos. O que eu aí dizia era que as interpretações querem, em regra, aparecer como triunfantes das dificuldades que enfrentaram. A interpretação visa esgotar o objecto. Tenho sérias reservas em relação a essas interpretações triunfantes. O tipo de análise que faço consiste em fazer descrições. Descrevo aquele autor, aquela obra ou aquele objecto. Não tento ir para além da descrição. Mas acho que as descrições que faço são certas. Nunca tive interesse nenhum em polemizar sobre uma interpretação que fizesse. A não ser que alguém me exponha um erro qualquer que de facto tenha feito.

 

FdV: Mas, mais uma vez, parece estar numa posição muito isolada face à prática que o rodeia no mundo académico português. Como é que lida com isso?

AMF: Muitas vezes escrevo sobre alguns destes autores, que vivem no interior de uma comunidade crítica produtiva, com muitas pessoas, e pessoas para quem esse autor é o tópico central ou único da sua carreira académica. A comunidade pessoana, por exemplo. Admiro muito do trabalho feito pela crítica pessoana. Mas não faço parte da comunidade pessoana, ou seja, eu escrevo sobre Pessoa, mas não faço parte de nenhuma comunidade que revolva em torno dele.

 

FdV: Mas, na definição que acabou de dar, as suas descrições desmontam muitas coisas que são tidas como certas por essas comunidades, e que extravasam essas comunidades.

AMF: É possível, mas, se isso acontecer, é de modo acidental. Eu nunca escrevi nada, excepto talvez uma frase nesse livro sobre Pessoa, de polémico. Não parto para tentar destruir uma posição ou uma teoria. O que acontece é que nesse exercício que faço, que é um exercício descritivo — estou a descrever aquele universo, ou aquele conjunto, aquela obra —, há um momento na descrição em que há um aspecto que exponho, que outros veêm de outro modo. Estou implicitamente a polemizar, sem que isso seja o meu intuito. O meu intuito é descrever. O resultado daquela descrição é polémico porque contraria uma descrição alternativa. Mas eu não procurei contrapor-me à descrição alternativa, procurei fazer o que entendo ser a descrição certa.

 

FdV: Mas uma descrição errada nunca tem peso no seu trabalho interpretativo?

AMF: Tem. Aliás, às vezes acontece ler um crítico que faz uma descrição errada de alguma coisa, mas que é tão brilhante por alguma razão que é interessante e usável de outro modo. Em princípio, ninguém escreve não se comprometendo com o que escreve. Presumo que seja assim com toda a gente. É sempre possível, no entanto, e relativamente frequente, aliás, compor um texto com o qual não se está comprometido, por qualquer razão lúdica ou polémica, ou porque se quer seduzir alguém, por exemplo. Os românticos alemães são um exemplo incomparável deste tipo de autor.

 

FdV: Mas o que faz não pode ser assim tão inocente.

AMF: Mas tem um lado inocente. Há pouco falei de Saramago. Para escrever aquelas sete páginas tive de ler a obra de Saramago. E escrevi o ensaio na ignorância da crítica sobre Saramago. Tento escrever na ignorância da crítica sobre o autor. Depois, vou ler algumas das coisas que me dizem serem interessantes, ou porque alguém que admiro escreveu sobre esse mesmo tópico. Mas tento escrever de um modo fresco. Que só não é completamente fresco porque vem saturado de tudo o que li e penso. Mas naquele caso particular, ignoro a literatura específica. Se a interpretação fosse toda ela devedora do talento do intérprete, eu estaria a correr o risco de fazer uma análise com o talento, ou com o pouco talento, que tiver, e depois perceber que alguém me precedeu e francamente excede o que fiz. Mas trata-se sempre de uma descrição do objecto ser quase unicamente devedora do objecto. Há um exemplo no livro sobre Pessoa: tive uma intuição, descobri mais tarde ter sido precedido nela, e acrescentei uma nota de rodapé em que digo isso mesmo. Mas este é um domínio, trivial, o da probidade profissional, que consiste em atribuir o seu a seu dono. Se, por acaso, alguma vez não o tiver feito, terá sido por ignorância.

 

FdV: Em relação a Pascoaes, diz que é preciso perceber o sistema de Pascoaes, e o sistema está nas biografias…

AMF: É onde está mais claramente. Às vezes aparece na lírica de um modo tão refractado, ou simplesmente condensado num adjectivo. As biografias têm isso exposto, ainda que de um modo implícito. Portanto, se passarmos por aí, e como as cinco biografias são uma prosa absolutamente extraordinária, e de uma frescura, inventividade e audácia incomuns em português ou em qualquer outro idioma, se uma pessoa as lê e aborda depois a poesia do autor, mais velada, pré-moderna e aparentemente simples, logo verifica que a poesia se torna mais legível.

 

FdV: Mas Pascoaes não existe fora das páginas do seu livro. Haverá grupos que estudam Pascoaes, mas a existência de Pascoaes no mundo literário é quase nula. Depois do tratamento que faz às biografias, a própria poesia de Pascoaes não tem existência. Como justifica isso? Em relação a Régio, passa-se o mesmo: Régio também não tem muita existência fora das suas intervenções esporádicas.

AMF: Se ler o meu ensaio sobre cânone e se ler o ensaio do Miguel Tamen sobre cânone, verá que são modos diferentes de abordar a questão. Eu abordo a questão de um modo técnico-político, e o Miguel de um modo político, num sentido teológico-político, digamos, mas não técnico, no sentido em que, para o Miguel, não é o critério técnico-formal que determina seja o que for, antes a sua submissão inapelável à natureza aleatória da posteridade. Eu concordo que há uma natureza aleatória da posteridade e que, se há algum domínio onde a noção de justiça não impera necessariamente, é decerto esse. Eu suplemento, no entanto, esta intuição com uma forma de optimismo platónico: mesmo que um quadro maior de Ticiano arda, o seu valor e mesmo a sua natureza de objecto permanecem intactos.

 

FdV: Costuma tratar os grandes escritores, os grandes poetas da sua época. E depois há dois desses autores que estão desaparecidos. (Três, se lhes juntarmos Wyndham Lewis.)

AMF: Referi antes a natureza destrutiva do tempo. Se formos ver quais eram os livros mais lidos quando As Flores do Mal foi publicado, e considerarmos que o autor de As Flores do Mal é hoje apreciado de um modo que excede todos os contemporâneos do autor, apreciação esta que seria inconcebível até para o crítico contemporâneo mais brilhante, Sainte-Beuve, reencontramos a natureza aparentemente aleatória do juízo do tempo. Pascoaes sofre disso, tal como o Régio sofre disso, tal como Lewis sofre disso. A ironia aqui revela-se mais claramente em Lewis. Muitos consideram que os acontecimentos centrais do século XX são experiências da magnitude da Revolução Bolchevique em 1917, por exemplo. Lewis defende, em 1927, que os acontecimentos decisivos do século XX são a emergência do feminismo e da homossexualidade tal como se constituirão como movimentos sociais e políticos. Não conheço previsão análoga em 1927, ou em décadas posteriores. Esta presciência, esta análise decorrente de uma inteligência que lia com inigualável precisão tendências, são hoje ignoradas. O ponto de vista que caracterizei como platónico consiste aqui em pensar que o juízo sedimentado do tempo não afecta, de facto, aquilo sobre que incide. Régio pode desaparecer dos compêndios; a magnitude e o valor de Régio ficam intocados, são os mesmos, muito altos.

 

FdV: Para quem?

AMF: É um juízo objectivo, enunciado por mim. Suponha que eu escrevo uma descrição e considero, como só posso considerar, que é a descrição certa. É também a mesma razão pela qual é dispensável polemizar, porque aquilo está certo. Isto pode parecer arrogante, mas não é. No caso de Régio: há poucos autores tão inteligentes como Régio. É um autor que está sempre a dissimular o que é, tudo o que quer dizer, ou tudo o que na realidade pensa. Se eu pensar nos três autores de que falou, Pessoa, Pascoaes e Régio, o autor mais difícil de sobrevoar no sentido sistemático de que estava a falar é Régio. O acesso aos outros dois foi sempre mais simples para mim.

 

FdV: Numa entrevista, a propósito das traduções que se estão a fazer das obras de Shakespeare, o tradutor Daniel Jonas afirmava que não estava certo de que alguns especialistas de Shakespeare estivessem necessariamente aptos para traduzir as peças. Como tradutor, de Shakespeare e de outros, e como professor universitário, como vê esta distinção entre académicos e tradutores?

AMF: A distinção entre académicos e tradutores é ociosa, porque facilmente colapsa: sou académico e tradutor. «Académico» muitas vezes sofre de um desprezo inexplicável. Como tradutor, estou na mesma posição em que me encontro como crítico: a virtude maior de uma tradução é a literalidade. Numa nota a uma tradução de uma peça de Shakespeare, defini a tarefa do tradutor como sendo a de «fixar o sentido literal de um texto e ponderar praticamente o seu envelhecimento». Receio, no entanto, que tentar explicar o que esta fórmula demasiado abrupta possa querer dizer na prática nos iria exigir mais tempo.

 

FdV: Como vê o seu legado?

AMF: Nunca me ocorreu tal coisa. Seria absurdo falar disso de modo sério depois de, há pouco, por exemplo, termos falado do eclipse de Pascoaes ou Régio. O livro sobre Lewis, o livro sobre Pessoa, os ensaios que escrevi, as traduções e dramaturgias que fiz, poderão ter uso para alguns, poucos, leitores. No trabalho que se faz, seja ele qual for, o critério decisivo é o profissionalismo com que se faz. Uma profissão codifica práticas, modos de fazer, técnicas, opiniões informadas. É assim que alfaiates apreciam o trabalho de um alfaiate. É o único critério que conta. Não tenho expectativa nenhuma em relação ao que faço para além disso. Há pouco usei a expressão «metafísica descritiva»; um filósofo inglês usou-a para descrever o que faz num dos seus livros, e lembro-me de a ter achado adequada para descrever um certo tipo de trabalho. A descrição procura fazer justiça ao modo de existência do objecto. E fá-lo à luz de critérios profissionais. Se alguém me diz que leu alguma dessas coisas e gostou, ou lhe foi útil, fico contente. Todos nós ficamos contentes se alguém gostou de alguma coisa que fizemos, mas é só isso. Por isso, qualquer lapso profissional me deixa menos contente. Há um, no meu livro sobre Pessoa e Pascoaes, em que a certa altura menciono o mês da morte do Pessoa, e, não sei como, em vez de escrever Novembro de 1935, escrevi Dezembro de 1935. Não gosto daquela página, é como se nela tivesse caído uma mancha de tinta.  

 

[1] A Universidade como Deve Ser, António M. Feijó e Miguel Tamen. Lisboa: FFMS, 2017.

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