Entrevista com Robert Robinson para o BBC Book Programme (1977)[1]
Em primeiro lugar, para o poupar alguma irritação, gostaria de saber se me poderia ensinar a pronunciar o seu nome.
Vejamos. Há um número de nomes russos com ar enganadoramente simples, cuja soletração e pronúncia apresentam ao estrangeiro armadilhas estranhas. O nome Suvarov demorou dois séculos a perder o ridículo «a» no meio — deveria ser Suvorov. Caçadores de autógrafos americanos, enquanto se gabam do seu conhecimento de todos os meus livros — prudentemente não mencionando os seus títulos — reordenam as vogais do meu nome de todas as formas matematicamente possíveis. «Nabakav» é particularmente comovente pelos «a»s. Problemas de pronunciação entram num padrão menos errático. Nos campos de jogos de Cambridge, a minha equipa de futebol costumava chamar-me de «Nabkov», ou, jocosamente, «Macnab.» Nova Iorquinos revelam a sua tendência de transformar «o» em «ah» ao pronunciarem o meu nome como «Nabarkov.» A aberração, «Nobokov,» é um dos favoritos dos carteiros; agora, a forma correcta em russo demoraria demasiado tempo a explicar, por isso decidi-me pelo eufónio «Nabokov,» com o acento na sílaba do meio e a rimar com «ajudou».[2] Gostaria de tentar?
Sr. Nabokov.
Exactamente.
Concede entrevistas partindo do princípio de que não são espontâneas. Este método admirável assegura a inexistência de momentos maçadores. Poderia dizer-me o porquê e quando decidiu adoptá-lo?
Não sou um orador maçador, sou um orador mau, sou um orador miserável. A gravação do meu discurso improvisado difere da minha prosa escrita tanto como a minhoca difere do insecto perfeito — ou, como uma vez disse, penso como um génio, escrevo como um autor de renome e falo como uma criança.
Tem sido escritor a vida inteira. Poderia evocar-nos o frémito mais antigo do impulso?
Era um rapaz de quinze anos, os lilases estavam em flor; tinha lido Púchkin e Keats; estava loucamente apaixonado por uma rapariga da minha idade, tinha uma bicicleta nova (uma Enfield, recordo-me) com guiador reversível que a transformava numa bicicleta de corrida. Os meus primeiros poemas eram péssimos, mas depois virei o guiador e as coisas melhoraram. No entanto, demorou-me mais dez anos a perceber que o meu verdadeiro instrumento era a prosa — a prosa poética, no sentido específico em que dependia de comparações e metáforas para dizer o que queria dizer. Passei os anos de 1925 a 1940 em Berlim, Paris e na Riviera, e depois parti para a América. Não me posso queixar de negligência por parte de grandes críticos, apesar de, como sempre e em todo o lado, haver um malandro ou outro a chatear-me. O que me tem divertido nos últimos anos é que aqueles velhos romances e contos publicados em inglês nos anos 60 e 70 eram muito mais calorosamente apreciados do que tinham sido em russo há trinta anos.
A sua satisfação com o acto da escrita alguma vez oscilou? Quero dizer, é mais pronunciada agora ou menos pronunciada do que anteriormente?
Mais pronunciada.
Porquê?
Porque a frieza da experiência agora mistura-se com a chama da inspiração.
Para além do prazer que traz, qual considera ser a sua tarefa enquanto escritor?
A tarefa deste escritor é a tarefa puramente subjectiva de reproduzir de forma mais fiel a imagem do livro que tem em mente. O leitor escusa de saber, ou não pode mesmo saber o que é esta imagem, e por isso não poderá dizer o quão próximo o livro se conformou à sua imagem na mente do autor. Dito de outra forma, o leitor não tem nada que se preocupar com as intenções do autor, nem o autor tem que se preocupar em tentar saber se o consumidor gosta do que consome.
É claro, o autor trabalha mais arduamente que o leitor; mas pergunto-me se aumenta — isto é, para si — o prazer em fazer com que o leitor também trabalhe muito.
Ao autor é completamente indiferente à capacidade e condição da mente do leitor.
Poderia dar-nos uma ideia da sua rotina num dia de trabalho?
Ultimamente, esta rotina tem-se tornado confusa e inconstante. No auge do livro, trabalhava o dia inteiro, amaldiçoando as partidas que os objectos me pregavam, os óculos extraviados, o vinho entornado. Também acho que falar do meu dia de trabalho é muito menos interessante do que achava antes.
A perspectiva habitual de um hotel é a de um abrigo temporário — afinal, uma pessoa traz a sua própria bagagem — e, no entanto, escolhe torná-lo permanente.
Já alimentei a ideia de comprar uma vivenda. Consigo imaginar a mobília confortável, os alarmes anti-roubo eficientes, mas sou incapaz de imaginar empregados adequados. Criados velhos requerem tempo para ficarem velhos, e pergunto-me quanto tempo ainda tenho à minha disposição.
Em tempos, considerou a possibilidade de regressar aos Estados Unidos. Pergunto-me se irá.
Certamente voltarei aos Estados Unidos assim que puder. Sou indolente, preguiçoso, mas tenho a certeza de que voltarei com ternura. A emoção com a qual penso em certos trilhos nas Rockies é apenas equiparada por visões dos meus bosques russos que nunca revisitarei.
A Suíça é um sítio com vantagens positivas para si, ou é apenas um sítio sem desvantagens positivas?
Os invernos podem ser bastante deploráveis e o meu velho borzoi[3] entrou em disputas com muitos dos cães da zona, mas de resto não é mau.
Pensa e escreve em três línguas — qual seria a sua preferida?
Sim, escrevo em três línguas, mas penso em imagens. A questão da preferência nunca vem à tona. As imagens são mudas, mas agora o cinema mudo começa a falar e reconheço a sua linguagem. Durante a segunda parte da minha vida, era normalmente inglês, o meu tipo específico de inglês — não a variedade de Cambridge, mas inglês na mesma.
Há algum momento em que pede à sua mulher para comentar o trabalho em curso?
Quando o livro está terminado, e o manuscrito final ainda está quentinho, a minha mulher lê-o atentamente. Os comentários dela costumam ser poucos, mas invariavelmente certeiros.
Alguma vez relê as suas obras iniciais e, se sim, o que sente?
Reler as minhas obras é um assunto puramente utilitário. Tenho de o fazer quando estou a rever uma edição de capa brochada cheia de gralhas ou a controlar uma tradução, mas há alguns ganhos. Em certas espécies — isto vai ser uma metáfora — em certas espécies, as asas da borboleta em desenvolvimento começam a surgir numa extraordinária miniatura através da cobertura das asas anteriores da crisálida uns dias antes de emergir. É a cena patética de um futuro iridescente que aparece pelo invólucro do passado, algo parecido com o que me acontece quando mergulho nos livros que escrevi nos anos 20. Subitamente, através de uma fotografia sombria distingue-se um toque de cor, um esboço de forma. Digo isto com a máxima modéstia científica, não com a arrogância de arte em envelhecimento.
Que escritores está agora a ler com prazer?
Estou a reler Rimbaud, a sua poesia maravilhosa e a sua correspondência patética na edição da Pléiade. Também tenho mergulhado numa colectânea de piadas soviéticas incrivelmente estúpidas.
O seu apreço por Joyce e Wells tem sido elevado. Poderia identificar de forma breve a qualidade em cada um deles que os distinguem?
O Ulysses de Joyce distingue-se de toda a literatura moderna, não apenas pela força do seu génio, mas também pela novidade da sua forma. Wells é um grande escritor, mas há muitos escritores igualmente grandes.
A sua aversão pelas teorias de Freud tem-me por vezes parecido com o despeito de alguém que foi enganado, como se o velho mago o tivesse em tempos enganado com o seu jogo da vermelhinha. Alguma vez o admirou?
Que ideia bizarra! Na verdade, sempre detestei o charlatão vienense. Costumava persegui-lo por ruelas escuras de pensamento, e agora nunca nos esqueceremos da imagem do Freud velho e atrapalhado a tentar destrancar a sua porta com a ponta do guarda-chuva.
O mundo sabe que também é um lepidopterólogo, mas pode não saber o que isso implica. Na colecção de borboletas, poderia descrever o seu processo desde a busca à exposição?
Apenas as borboletas comuns, as traças vistosas dos trópicos, são expostas em vitrines empoeiradas entre uma máscara primitiva e um quadro abstracto trivial. As coisas raras e preciosas são guardadas em gavetas envidraçadas de armários de museu. Quanto à busca, é, claro, um êxtase perseguir uma beleza indescritível, deslizando por cima das rochas do seu habitat, mas também é muito divertido identificar uma nova espécie entre os insectos danificados numa lata de bolachas velha enviada por um marinheiro de uma ilha remota.
Uma pessoa pode sempre induzir uma ligeira vertigem ao lembrar-se de que Joyce poderia não ter existido enquanto escritor, mas enquanto tenor. Tem alguma sensação de ter perdido outro papel por pouco? Que substituição conseguiria suportar?
Ah, sim, sempre tive vários papéis alinhados caso a musa falhasse. Primeiro apareceu um lepidopterólogo a explorar selvas famosas, depois o grande mestre de xadrez, depois o ás do ténis com um serviço impossível de devolver, depois o guarda-redes a defender uma jogada histórica e, finalmente, finalmente, o autor de um monte de escritos desconhecidos — Pale Fire, Lolita, Ada — que os meus herdeiros descobrem e publicam.
Alberto Moravia disse-me que tinha a convicção de que cada escritor apenas escreve sobre uma coisa — tem apenas uma obsessão que desenvolve continuamente. Concorda?
Nunca li Alberto Moravia, mas o que citou está certamente errado no meu caso. O tigre do circo não está obcecado com o seu torturador, as minhas personagens encolhem-se quando me aproximo com o meu chicote. Já vi uma avenida inteira de árvores imaginadas a perderem as suas folhas perante a ameaça da minha passagem. Se tenho alguma obsessão tenho o cuidado de não a revelar sob a forma de ficção.
Sr. Nabokov, muito obrigado.
You’re welcome, como dizemos no meu país adoptado.
[1] «A Blush of Colour—Nabokov in Montreux», The Listener, 24 de Março 1977, 367, 369. Entrevista televisiva para o Book Programme da BBC-2. VN recebeu perguntas a 3 de Fevereiro 1977, tinha respostas prontas a 6 de Fevereiro, e foi filmado em Montreux a 14 de Fevereiro. O seu estado de saúde debilitado tornou a composição de The Original of Laura dolorosamente lenta e fragmentada, e escreveu no seu diário no dia 6 de Fevereiro: «respondi com gosto e entrain às 24 perguntas da BBC.» Após a morte de VN, Robinson recordou-se da ocasião descrevendo a sua fragilidade, e reimprimiu a entrevista, em «The Last Interview», em Vladimir Nabokov: A Tribute, ed. Peter Quennell (New York: William Morrow, 1980), 119-25.
N.T.: A tradução foi feita a partir da edição Think, Write, Speak: Uncollected Essays, Reviews, Interviews and Letters to the Editor, ed. Brian Boyd e Anastasia Tolstoy. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 2019, pp. 477-81.
[2] Um meio-termo para as línguas anglófonas ao invés de um eco do russo. Mais perto seria «a mock of» [faz pouco do]: Ao desesperar com as pronúncias erradas, «Nabokov faz pouco do» seu próprio nome [«Nabokov makes a mock of» his name].
N.T.: No original a palavra utilizada é «smoke.» A palavra escolhida na tradução deve ser pronunciada como seria na região do Porto para se aproximar do inglês da entrevista.
[3] Os seus pais tiveram dachshunds, mas VN nunca teve um cão.
* Doutorando financiado pela FCT (2023.00613.BD). Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.