O mundo chegava até nós a preto e branco e na maioria das vezes as imagens televisivas eram fugazes, fosse por serem cruas e sangrentas, incendiárias e subversivas, ou por inevitavelmente suscitarem repúdio e reflexão mesmo no espectador mais despido de preocupações sociais e políticas. Ficar-se por um lamento deixou de ser possível, aqui e em toda a parte. O ano abriu auspiciosamente com o levantamento que passou à história como Primavera de Praga, que entre avanços e recuos acabou por ser esmagado com a ocupação da Checoslováquia pelas forças soviéticas dois meses antes dos Jogos Olímpicos, disputados na Cidade do México de 12 a 27 de Outubro. Em Paris a Primavera foi quente, com o pensamento libertário a irromper pelo Maio fora e a rasgar o tecido político partidário gaulês. Aí os estudantes puderam gritar «É proibido proibir» sem que a repressão lhes ceifasse a vida com a mesma violência com que pereceu um número indeterminado de estudantes mexicanos (entre 20 a 50, e mais de mil detidos) no massacre de Tlatelcolco, na Cidade do México. A dez dias da abertura do Jogos, esta foi certamente a mais cruenta maneira de se assegurar a paz social, supostamente desejada pelas autoridades, para celebrar o ideal olímpico.

Os ventos que na Europa eram de revolta, exprimindo inequivocamente o desejo de mudança, também sopraram nos Estados Unidos, porém, cruzados e com maior ímpeto. Se é certo que o massacre de My Lai de 16 de Março só cairia no domínio público em Novembro do ano seguinte, o dia 4 trouxe a declaração pública de Muhammad Ali, recusando alistar-se para combater na guerra do Vietname. Era tão impossível ignorar a agitação da sociedade norte-americana em torno da intervenção americana na península de Indochina quanto deter o movimento interno de resistência e oposição.

Mas pagava-se pela rebeldia. A Muhammad Ali, retiraram o título de campeão mundial de pesos pesados. O pugilista pode ter perdido um título, mas os jornais ganharam muitos. Decorridos trinta dias, a 4 de Abril, Martin Luther King era assassinado em Memphis e, dois meses depois, a 6 de Junho, seguiu-se-lhe Robert Kennedy em Los Angeles. Impossível proibir a reflexão. Por cá, quando a 3 de Agosto Salazar tombou da cadeira, houve quem pensasse que este seria o acontecimento que, no mínimo, marcaria o início da queda do regime e o fim das guerras coloniais. Esperámos mais seis anos, mas os americanos e os vietnamitas esperaram ainda mais um até que a guerra do Vietname tivesse um fim. Quanto aos checos e eslovacos tiveram de esperar mais de vinte, até à queda do muro de Berlim.

Os protagonistas das histórias que vou contar eram realistas, mas pediam o impossível. Os seus gestos públicos de intervenção reclamavam que se olhasse para a situação vivida pelos seus concidadãos. Podem não ter alcançado todos os seus objectivos, mas quem os viu não pode deixar de concluir que era tão grande a sua coragem como cidadãos quanto a excelência do desempenho desportivo.

 A checa Vera Caslavska (1942-2016) sabia que de nada lhe valeria pedir condições de treino e preparação para as provas olímpicas do Outono. Com a invasão russa de Agosto, temendo ser presa por ter assinado o manifesto «2000 palavras» em Abril contra a ingerência dos soviéticos, trocou o centro de estágio da Moravia pela floresta circundante, e carregou sacos de batatas e usou troncos de árvore para treinar a trave olímpica. Foi chamada à selecção nacional de ginástica artística, porque seria injustificável a nível internacional excluir uma atleta que, nos últimos quatro anos, havia conquistado dezanove títulos, entre individuais e colectivos, nas Olimpíadas de Tóquio de 1964 e nos Campeonatos europeus e mundiais. Na Cidade do México, Caslavska defendia o título olímpico e as medalhas de ouro conquistadas na trave e no salto de cavalo em Tóquio, apresentando-se assim como o grande obstáculo à hegemonia soviética na modalidade. Caslavska viria a conquistar medalhas em todas as disciplinas: quatro de ouro, como campeã olímpica no conjunto das modalidades e a título individual em três modalidades (paralelas, solo e salto de cavalo); e duas de prata, na trave e por equipa. E não foram todas de ouro porque, inexplicavelmente para o público, mas muito obviamente para Caslavska, foi penalizada na trave por faltas artísticas e não técnicas em detrimento de Natalia Kuchinskaya; e, destacada em primeiro lugar no solo, acabou por ter de partilhar o pódio com outra soviética, Larisa Petrik, cuja pontuação foi revista já depois de a prova ter sido dada por encerrada e praticamente em cima da hora prevista para a cerimónia protocolar. No pódio, enquanto as duas bandeiras subiam lado a lado e se escutava o hino soviético, Caslavska desceu o olhar e virou o rosto sobre o lado direito. No regresso à Checoslováquia, ofereceu as quatro medalhas de ouro aos dissidentes checos. Gestos que lhe custaram muito caro: vinte anos de ostracismo, desperdiçando um imenso talento e uma técnica virtuosística em ocupações menores como treinadora. Como se isto não bastasse, Caslavska viu-se proibida pelas autoridades de receber delegações estrangeiras, fosse de técnicos, de dirigentes ou de jornalistas. Tudo isto, a par de infortúnios pessoais, determinou um longo período depressivo que a manteve afastada durante quinze anos de qualquer função. Só depois da queda do Muro de Berlim, viria a desempenhar cargos de relevo no mundo do desporto, a nível nacional e a nível olímpico, em representação do seu país.

John Carlos (1945-) e Tommie Smith (1944-) tiveram melhor sorte do que Caslavska. Não só estão ainda entre nós como puderam ver reconhecido o seu esforço como atletas e como cidadãos a vários níveis. Desde Outubro de 1967 que os dois velocistas pertenciam ao Olympic Project for Human Rights, uma organização em luta contra a segregação racial nos Estados Unidos e contra o racismo no desporto, que apelava a um boicote dos atletas afro-americanos aos Jogos Olímpicos do México. A organização exigia quatro medidas com fortes implicações políticas: a suspensão definitiva da República da África do Sul e da Rodésia, por serem Estados nos quais vigorava o apartheid; a devolução do título de campeão mundial de pesos pesados a Muhammad Ali; a demissão de Avery Brundage, o americano presidente do Comité Olímpico Internacional durante quatro décadas (1952-1972); e a contratação de um maior número de treinadores e preparadores físicos afro-americanos. De facto, embora a República da África do Sul estivesse suspensa de participar em provas olímpicas desde 1964, Brundage preparava-se para convidar uma selecção sul-africana para participar nos Jogos Olímpicos do México. A primeira conquista do Olympic Project for Human Rights foi a retirada desse convite por parte de Brundage, mas o desejado boicote não chegou a concretizar-se ou, pelo menos, a ganhar uma dimensão pública expressiva. Talvez por isso, foi bem maior o impacto do protesto na cerimónia protocolar da corrida de 200 metros, protagonizado por Carlos, medalha de bronze, e Smith, medalha de ouro e novo recordista mundial, com o apoio do atleta australiano Peter Norman (1942-2006), medalha de prata, o qual, solidário com os ideais do Olympic Project for Human Rights, aceitou usar o distintivo desta organização durante a cerimónia, tal como fizeram Smith e Carlos. Os velocistas norte-americanos haviam feito saber que não aceitariam as medalhas das mãos de Average e, curiosamente, foi o presidente da Federação Internacional de Atletismo Amador, David (Lord) Burghley, quem as entregou, ele, o eminente atleta britânico do período entre as duas guerras, cuja carreira e cujo épico percurso no Great Court Run ficaram para sempre imortalizados no filme Chariots of Fire (Hugh Hudson, 1981).

Na tarde de 16 de Outubro de 1968, Smith e Carlos dirigiram-se para o pódio sem sapatilhas, apenas de meias pretas, em protesto contra a pobreza a que estava sujeita a esmagadora maioria dos cidadãos afro-americanos. Recebidas as medalhas, escutaram o hino de cabeça baixa e punho erguido, as mãos cobertas por luvas pretas em manifestação do Black Power. Average, que defendera a saudação nazi nos Jogos Olímpicos de Berlim, suspendeu-os dos Jogos e expulsou-os da aldeia olímpica. A imprensa norte-americana achincalhou o gesto; a estrangeira, no seu geral, louvou-lhes a coragem. Uma vez regressados, Carlos, Smith e respectivas famílias enfrentaram ameaças de morte e as carreiras como velocistas chegaram ao fim. Todavia, puderam continuar ligados ao desporto. Ambos jogaram algumas épocas em equipas de futebol americano e, cerca de seis anos mais tarde, já ocupavam lugares técnicos, como treinadores de atletismo, Carlos numa escola secundária e Smith, que chegou a concluir um BA em Sociologia, num college.

Sem dúvida que a vida foi bem menos risonha para Peter Norman. O atleta acabou completamente marginalizado pela Federação Australiana de Atletismo, que nos Jogos Olímpicos de Sidney de 2000 nem sequer acolheu a sua presença enquanto atleta olímpico medalhado e detentor de um recorde nacional obtido precisamente nos Jogos Olímpicos do México e que se mantém até hoje. Morreu, doente, deprimido e vencido pelo álcool, em 2006. Carlos e Smith fizeram o elogio fúnebre e levaram a urna; e teve de ser a US Field and Track Federation a guardar o dia 9 de Outubro, data do funeral, como o Dia de Peter Norman, prestando-lhe assim o justíssimo tributo. Só a 11 de Outubro de 2012 o Parlamento australiano aprovou um pedido de desculpas pelo desprezo a que Norman foi votado, pedido este que a Federação Australiana de Atletismo se apressou a ratificar, justificando esta decisão com uma pretensa diminuição do rendimento do atleta.

Quanto a Carlos e Smith, em particular de 1999 até ao presente, têm recebido homenagens e reconhecimento público, porém, vindas maioritariamente de organizações ligadas ao desporto ou de associações cívicas ou de grupos de cidadãos. As excepções a esta regra, contudo, são de peso: em 2016, Barack Obama agradeceu-lhes publicamente o gesto e o presidente do Comité Olímpico do Estados Unidos convidou-os para embaixadores da organização. Mas por vezes é preciso esperar pela morte para vir a ter um dia só seu. Se um dia o tiverem, que seja o 16 de Outubro. E, neste ano, volvidos cinquenta sobre essa jornada inesquecível, evocar um gesto que se tornou acontecimento na conquista da igualdade de direitos é o meu modo de lhes prestar uma humilde homenagem. 

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