«Do everything, feel nothing» canta (ou proclama?) Florence Shaw em «Scratchyard Lanyard», faixa da banda inglesa Dry Cleaning, citando uma assinatura publicitária surpreendentemente niilista da marca Tampax e, talvez, satirizando e resumindo muito do modo de vida deste século XXI. Um modo cada vez mais acelerado e afogado por tecnologias que nos põem em contacto com as inúmeras actividades dos nossos amigos e companheiros, pequenas janelas artificiais para as suas vidas que parecem ser profundamente atarefadas e entusiasmantes. Há uma ânsia para fazer tudo, para não parar e o problema da falta de pausas é a ausência de tempo para se sentir algo para além do aparente e superficial.
Perante esta realidade, Ladies and gentlemen we are floating in space, a obra-prima dos Spiritualized lançada a 16 de Junho de 1997, parece ser um animal exótico. A ordem de faixas é de tal modo coesa que é praticamente impossível remover uma e convertê-la num single sem que a música escolhida perca alguma qualidade por não estar rodeada pelas outras. A densidade e a demora no desenvolvimento das ideias musicais e líricas em cada faixa impedem-nos de as reduzir a pequenas fatias de 15 segundos, ingeríveis rapidamente sem um momento de consciência, e as explorações sonoras que percorrem sequências de várias músicas, como é o caso da sequência «Home of the Brave», «The Individual» e «Broken Heart» ou do par «No God Only Religion» e «Cool Waves», fazem resistência à cultura do single. Seria possível escolher alguma e torná-la um hit isolado sem se perder o seu papel nessa sequência emocional e sonora que os Spiritualized constroem? Poderíamos reduzir os 17 minutos da faixa final «Cop Shoot Cop» a uns segundos sem perdermos o círculo vicioso expresso pela letra, título e progressão musical?
Considerando esta realidade da estrutura do álbum não estaremos perante uma obra anacrónica, que já não se adequa aos nossos tempos em que fazemos tudo e não sentimos nada? Será um álbum que já não nos serve para nada? Ladies and gentlemen we are floating in space é um álbum antigo, não cronologicamente, mas no seu ser; pertence a um tempo com um modo de estar diferente do de agora, porque é um álbum que nos propõe, de forma sincera, parar, não fazer nada e sentir tudo.
Desenhada para se assemelhar a uma embalagem de comprimidos, a edição física de Ladies and gentlemen contém um folheto médico intitulado «Patient Product Information» onde está escrita a pergunta «What is Spiritualized used for?» e a resposta «Spiritualized is used to treat the body and the soul». Enquanto doer a alma ao ser humano precisaremos deste álbum independentemente dos tempos que correm; as grandes emoções que J. Spaceman (Jason Pierce) e companhia expressam estarão sempre connosco. «Ladies and gentlemen we are floating in space» abre o álbum e estabelece logo o seu tom com a guitarrista Kate Ridley a enunciar o título da faixa, com as camadas sonoras e vocais que entram e saem numa construção operática, com a progressão harmónica do Cânone em Ré Maior de Johann Pachelbel e com a letra e melodia emprestadas de «Can’t Help Falling In Love With You» de Elvis Presley. É uma música de enorme escala sonora que se torna íntima graças ao sentimento romântico, quase exageradamente hollywoodesco, inocente e idealista, expresso na letra: «I will love you ‘til I die / And I will love you all the time». Um coração partido e a dificuldade de ter de continuar a viver o quotidiano apesar disso são intemporais, por isso a letra de «Broken Heart» ser-nos-á eternamente relevante: «Though I have a broken heart / I’m too busy to be heartbroken». A voz sussurrante de J. Spaceman, à beira de quebrar, lamenta-se enquanto as cordas do Balanescu Quartet vão ganhando balanço para, já sem qualquer voz, atingirem o clímax emocional da faixa. A punkalhada de «Electricity» toca na euforia da condução a alta velocidade, talvez com um desejo de morte («Gonna crash, kiss the sky»), e desorienta-nos com as suas guitarras e harmónica distorcidas que se esticam ao máximo nos minutos finais e nos levam a um êxtase eléctrico. «The Individual» e «No God Only Religion» dão-nos ruído e distorções sem lírica, mas, cada uma à sua maneira, parecem evocar — só pelos títulos e som — a alienação do indivíduo e o caos niilista, lembrando o famoso aforismo de Friedrich Nietzsche. «Cool Waves», com a colaboração do London Gospel Choir, restaura alguma da religiosidade pura dos destroços deixados por «No God Only Religion», através de uma cerimónia baptismal («Cool waves, wash over me / Cool water, running free») e sugere uma limpeza espiritual e emocional após o fim de uma relação amorosa («Babe, if you lose your love / Don’t take me by surprise»), com a amada perdida no papel de baptista: «Lay your sweet hand on me / ’Cause I love you».
O ser humano precisará sempre de tratar o coração partido, a alienação, a euforia e a depressão, de curar as dores dos vícios, das incertezas, das inadequações e da morte, e de encontrar consolo para os seus sentimentos mais profundos, de não fazer nada e sentir tudo. Por mais que progridamos tecnológica e cognitivamente enquanto civilização, sem aquelas coisas capazes de suspender o tempo, como os Spiritualized ou álbuns destes, não passaremos de criaturas pequenas a flutuar desamparadas no espaço.