Para o Pedro

 

Quando eu souber, invento uma capa de invisibilidade. Depois, governarei o reino do Algarve. Então, todos os que vierem dar aqui (eu incluída), a passeio, para se demorarem mais do que uma visita — ou para governar —, serão obrigados a vestir a capa da invisibilidade. Assim, não assustarão os seres (não pessoas) de cá: os gatos vadios, as lebres do barrocal, as abelhas, nem os javalis que às vezes bacorejam na serra. Nem as tartarugas, que já se viram em grupos grandes junto à areia das praias e deixavam que se nadasse até um metrinho delas, quando baixavam as cabeças pequeninas para reaparecer poucos segundos depois quilómetros adiante, ou parecia (e são agora quem usa capas minúsculas e se faz invisível). «Pagar a portagem» será um momento que se desejará tanto como chegar ao Algarve depois de uma viagem longa: «Já estamos quase?», assim. Porque a portagem de entrada no Algarve (ou seja, a permissão para se ficar cá, nem que seja uma noite, quando se chega de fora) será paga no Museu Municipal de Faro, com a entrada na sala onde jaz o mosaico grande do deus Oceano. O preço a pagar será entrar e ver. Quem fizer mais de cento e cinquenta visitas ao deus Oceano, poderá, se assim quiser, substituir essa franquia pela descoberta do pé de uma ninfa, na villa romana de Estói. É importante saber que, depois de cada visita ao Algarve, os cérebros das pessoas, ao abalar, ficam sem a memória do espanto de ver cada um destes objetos (ou os animais que andarão sem susto, ou as flores abertas e resinosas das estevas). Assim, nunca haverá tédio na repetição das visitas, mas a surpresa outra vez, outra vez, outra vez. Automóveis, ou outros veículos a combustível poluente, não haverá. É tudo comboio elétrico, movido à energia do vento recolhida com as pás gigantes que há no Caldeirão e nas faldas fajanadas da Serra de Monchique: e estes moinhos enormes também vestirão de invisível manto, e só poderão ser vistos por quem os queira ver. As carruagens dos comboios não terão trilho fixo: conforme os passageiros querem, assim se dirigem aos lugares. Todas as pessoas poderão ir para onde quiserem, Leste, Oeste, Norte e Sul, sem encontrar muitas outras pessoas, a não ser que queiram (essa vontade pode ser breve, os comboios saberão entendê-la). (Nas praças, os mercados, também haverá gente consoante se quiser.) O preço dos bilhetes destes comboios será, à semelhança da portagem para se entrar no reino, uma descoberta. Por exemplo, um restaurante chamado Flor da Ameixa, num lugar chamado Alface. Ou outros nomes engraçados. Ou um quadro pintado pelo Otelo M.F., ou uma peça da sua Chama Xamânica, mas tem de se dizer «Chama Xamânica» muito rapidamente, como se fosse um nome só, ou um espirro divino. Poderá vir ao Algarve o número de pessoas que quiser, as vezes que quiser, que não se esgotam as entradas, nem os lugares sentados ao fresco. Haverá festivais dos mariscos e das sardinhadas, com artistas e acordeonistas, regionais e internacionais, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, quase como agora — mas só para quem quiser, e tudo envolto numas capas gigantes de invisibilidade e inaudibilidade, que protegerão dessas festas aqueles sem vontade de lá ir. O mesmo para os convívios de motards, tal e qual como é agora: aparecerão, ordeiros, celebrarão com ruído os seus encontros, mas à distância de quem os não quer perto, e depois vão embora e só se nota que passaram porque as passadeiras e os traços das estradas terão sido todos retocados e se verão muitos sinais a dizer «zero mortos». Nem sempre será Verão: virá a chuva à ordem do necessário para florescerem no seu tempo os laranjais e as amendoeiras, virá o calor vermelhar o medronho, no tempo dele, e o vento varrerá, em sendo preciso, a maresia malsã que também tem a sua estação. Haverá dias cinzentos, para que possa continuar a haver o dia depois, aberto branco e quente. As águas da Fonte Filipe estarão sempre limpas e serão abundantes. Assim como as do paraíso que é o Pêgo do Inferno, ou as de cura da Fonte Santa. E as Termas de Monchique estarão abertas ao público. Os silos de Santa Catarina da Fonte do Bispo terão lá dentro um museu, mesmo que seja digital, porque os dedos das pessoas serão grandes quando for preciso tocar todo o edifício. E a fábrica da cerveja de Faro, e o museu da cortiça de Silves, e outros lugares que hoje estão quase sem destino, estarão ao dispor de artistas, dos que se querem malucos e dos que se querem sérios, que lá exporão as suas magníficas e vendáveis obras. Para ir a uma repartição pública, será renovado um bilhete de portagem: a pessoa vai tratar de assuntos burocráticos com a sensação permanente de estar a passar de barco para a ilha Deserta, ou no trenzinho para a praia do Barril, e o tempo de espera será como se estivesse na areia a torrar a pele e a ganhar apetite para o peixe grelhado. A propósito: só desaparecerão do mar os peixes que forem mal grelhados: um restaurante que não saiba salgar o peixe pouco, nem deixá-lo suculento depois da passagem pelo carvão, escalado ou não, acabará por fechar, porque ninguém lhe fornecerá mais pescado e deixará de ter clientes. Na praia haverá sempre as pessoas que se quiser que haja: poucas, para se ter espaço e silêncio; muitas, para o colorido dos chapéus de sol alegrar as fotografias. Será assim como as casas para se morar: ficarão todas em planos altos, e nenhuma em frente de outra, para que todas as pessoas tenham sempre vista para o mar e para a serra e para as cidades e para as multidões de turistas a entrarem nos mercados; mas, de fora, serão todas amontoadas, com açoteias pegadas umas às outras e escadas para lá e muita confusão de cal e tijolo. Nenhuma casa estará abandonada e as platibandas terão as cores garridas com que foram pintadas pela primeira vez, e poderão ser em graffiti com tags alusivas a figuras da região: «Bento», por exemplo. Nos lugares pequenos, silêncio. E os velhos estarão às soleiras, ou nos bancos de jardim, porque querem e descansam. E, quando têm vontade, aparece família para estar com eles a conversar — e levam-nos a passear, se eles quiserem. Como há hoje um largo em Portimão, onde o lar da terceira idade é num grande edifício que era o hospital antigamente e por cima do parque de estacionamento há uma geladaria boa e um parque infantil com pais e crianças que se aproximam dos velhos e conversam e riem. 

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