O que é que um viajante medieval, aproximando-se Constantinopla por mar, discernia no horizonte antes de ver toda a cidade? O domo da Hagia Sophia, a grande igreja que Justiniano mandou construir em meados do séc. VI e que até hoje é símbolo da cidade, chega no seu ponto mais alto aos 55,6 metros de altura. Este seria apenas o segundo ponto de referência a aparecer à vista do nosso viajante medieval. Antes disso, visível a partir da distância de um dia de viagem, apareceria a estátua equestre de Justiniano, montada em cima da sua coluna triunfal. A própria coluna tinha uma altura de pelo menos 50 metros. A estátua chegava, provavelmente, a 7,5 metros de altura, sendo uma das maiores esculturas metálicas alguma vez produzidas no mundo pré-moderno. De acordo com a historiadora Elena Boeck, este monumento seria o equivalente da Torre Eiffel da época: juntamente com a Hagia Sophia, e localizada na sua proximidade, a coluna era um triunfo da engenharia romana. Mas enquanto a Hagia Sophia, um lugar sagrado, apontava para o poder de Deus, a coluna simbolizava o poder dos imperadores bizantinos.[1] Durante quase um milénio a sorte da coluna esteve entrelaçada com a do império. De facto, graças a uma mentalidade que atribuía às estátuas agência e poderes de talismã, a estátua de Justiniano foi durante séculos vista não só como um emblema do império mas também como sua protectora e, no fim, até mesmo uma profetisa da sua inevitável queda.
Quando Constantinopla foi fundada, em 330 d.C., era, ao mesmo tempo, uma cidade completamente nova e a «reincarnação» de uma cidade muito antiga. O seu próprio nome, Nova Roma, revelava o paradoxo. Constantino, o seu fundador, quis replicar na sua nova capital as principais características e instituições da antiga Roma: a construção à volta de sete colinas, o hipódromo, o fórum, o palácio imperial e o Senado. Esta «filial» da antiga capital no Oriente foi concebida como uma «Roma», e assim permaneceria durante mais de mil anos. Os habitantes do que nós chamamos império «bizantino», termo que eu uso neste artigo com relutância, nunca se iriam identificar com essa designação: eles chamavam-se a si mesmos «Romanos» (Rômaioi ou, no vernáculo, Rômioi) e ao seu território Rômania.[2] Os sucessores de Constantino, residentes na nova capital, seguiriam as práticas dos imperadores da antiga Roma na forma como intervinham no espaço urbano para se engrandecer. Cada imperador que ambicionava estabelecer uma nova dinastia teria de ter o seu próprio fórum. Ao forum Constantini, decorado com uma coluna que suportava uma estátua (não equestre) do imperador, juntou-se, em 393 d.C., o forum Theodosii, que tinha no seu centro uma coluna triunfal, com representações das vitórias de Teodósio em relevo à volta da coluna e uma estátua (também não equestre) do imperador em cima. Dos dois lados desta coluna, em pedestais baixos, estavam duas colossais estátuas equestres, que representavam, provavelmente, o pai de Teodósio (que tinha o mesmo nome) e o seu filho e sucessor no Oriente, Arcádio. Uma destas estátuas viria a ser apropriada por Justiniano para a sua coluna.
Justiniano, coroado imperador em 527, ia precisar do seu próprio fórum. Antes de ter oportunidade de o planear, uma revolta popular, a de «Nika» (532 d.C.), quase lhe custou o trono, deixando uma grande parte do centro da cidade em ruínas, incluindo a anterior igreja de Hagia Sophia, que foi incendiada pelo povo. Vendo na catástrofe um ensejo, Justiniano decidiu não só reconstruir Hagia Sophia numa escala enorme e com um domo que parecia «suspenso do céu», como diz o historiógrafo Procópio,[3] mas também transformar a praça em frente a esta igreja, o Augusteum, no seu fórum pessoal ao instalar ali a sua própria coluna. Mais alta do que todas as colunas dos seus predecessores, a de Justiniano seria feita de blocos de pedra, sem escada interior (o que a tornava mais estável, mas viria a dificultar as futuras reparações da estátua) e coberta com placas resplendentes de bronze. No cume da coluna, um pedestal de 4,5 metros de comprimento suportava a colossal estátua equestre que o imperador mandou retirar do fórum de Teodósio e que a partir desse momento seria identificada como estátua de Justiniano. (Pode parecer-nos estranho, mas era normal para os imperadores Romanos, especialmente na antiguidade tardia, apropriarem-se dos monumentos e da iconografia dos seus predecessores. Uma estátua colossal de Constantino em Roma tinha sido adaptada de uma de Maxêncio, a qual também tinha sido adaptada de uma de Adriano. A própria estátua de Constantino em cima da coluna no seu fórum em Constantinopla representava, anteriormente, Apolo.)
Quando a coluna foi completada, em 543 d.C., cinco anos após a conclusão da reconstrução da Hagia Sophia, era, tal como a igreja, uma obra majestosa: nunca uma coluna triunfal tinha suportado uma estátua equestre. Procópio de Cesareia, um historiógrafo contemporâneo, descreve-a na sua obra De aedificiis (Sobre os edifícios, 1.2.2–1.2.12):
E, no topo destes [degraus de mármore], ergue-se uma coluna de tamanho extraordinário, não sendo, porém, um monólito, mas sim composta de grandes pedras em formações circulares, cortadas de modo a criar ângulos nas faces que se juntam, e ajustadas umas às outras pela experiência dos pedreiros. E o mais fino bronze, fundido em painéis e faixas circulares, cobre as pedras de todos os lados, tanto servindo para amarrá-las com segurança, quanto cobrindo-as como adorno, e dando ao todo, mas particularmente à base e ao capitel, a aparência de uma coluna. Esse bronze, na sua cor, é mais ameno que o ouro puro e o seu valor não é muito menor do que o de um peso igual de prata. E, no cume da coluna, está um cavalo de bronze excessivamente grande (hupermegethês), voltado para o oriente, uma maravilha digna de muitos discursos. Ele parece prestes a andar e a avançar esplendidamente. Levanta facilmente a sua pata esquerda dianteira no ar, como se estivesse prestes a dar um passo na terra à sua frente, enquanto a outra é fixada na pedra em que ela está, como se estivesse pronta para dar o passo a seguir; as patas traseiras ele mantém juntas, para que possam estar prontas sempre que ele decidir mover-se. Sobre este cavalo está montada uma figura do imperador, colossal, feita de bronze. E a figura tem o hábito de Aquiles, ou seja, o traje que ele veste é conhecido por esse nome. Ele usa botas curtas e as suas pernas não são cobertas por grevas. Ele também usa uma couraça à maneira heróica e um capacete cobre-lhe a cabeça, dando a impressão de que se move para cima e para baixo, uma luz deslumbrante brilhando dele. Pode-se dizer, em linguagem poética, que aqui está aquela estrela do Outono. E ele olha para o sol nascente, dirigindo ο seu curso, suponho, contra os Persas. Na sua mão esquerda ele segura um globo, pelo qual o escultor indica que toda a terra e o mar lhe estão sujeitos (dedoulôtai), mas ele não tem espada, nem lança, nem qualquer outra arma, mas uma cruz está sobre o globo que ele carrega e foi apenas com esta que ele obteve o seu império e a sua vitória na guerra. E esticando o braço direito em direcção ao sol nascente e estendendo os dedos, ele ordena aos bárbaros daqueles lados que permaneçam nas suas terras e não avancem mais.[4]
O De aedificiis apresenta-se como um panegírico da renovatio imperii sob Justiniano, um imperador cujos grandes feitos arquitectónicos são, às vezes, atribuídos a uma inspiração divina. Se tivéssemos só esta obra do autor, Procópio seria provavelmente considerado um bajulador de Justiniano. Contudo, de Procópio chegou até nós também a História secreta, uma vituperação vitriólica contra Justiniano e a sua esposa, Teodora. O De aedificiis também revela indícios de descontentamento. A descrição da coluna é um bom exemplo. Justiniano nunca é mencionado por nome nesta passagem. O seu monumento tem a «aparência de uma coluna — finge ser algo que não é. O cavalo é «excessivamente grande (hupermegethês)», dando a ideia de uma obra gigantesca, fora da medida, uma espécie de hubris artística e arquitectónica. O globus cruciger que a estátua segura indica que todo o mundo «está sujeito» ao imperador, mas o verbo que Procópio usa, dedoulôtai, também se poderia traduzir por «está escravizado» por ele. A estátua, embora revele já algum poder talismânico ao ordenar aos «bárbaros» para não avançarem mais, também não é inequivocamente um símbolo de vitória definitiva (que Justiniano nunca obteve contra os Persas). Os «bárbaros» continuam a causar distúrbios na fronteira oriental e o texto dá a entender que não são só os Persas («dirigindo ο seu curso, suponho, contra os Persas»).
A parte da descrição de Procópio que mais intrigou os investigadores é provavelmente a identificação do hábito do cavaleiro como sendo «de Aquiles». É bastante claro em que consiste esse «traje de Aquiles»: uma couraça «heróica» que deixava pernas e braços descobertos, botas curtas, e um capacete — a chamada toupha — que não era bem um elmo mas uma espécie de diadema decorado com penas que pareciam de pavão. A caracterização do hábito do cavaleiro como «de Aquiles» não é uma invenção de Procópio. Um mosaico do século quarto d.C., encontrado em Tellaro, perto de Noto, na Sicília, representa Aquiles, identificado com legenda, a usar exactamente este traje, incluindo o impressionante capacete com penas de pavão. É possível que os mosaicos desta villa na Sicília remontem à iconografia propagandística usada na corte de Constantino e dos seus sucessores. Não raramente, os imperadores romanos identificavam-se com a iconografia característica de Alexandre, o Grande, cujo ídolo e modelo era Aquiles. A triangulação entre imperador Romano / Alexandre / Aquiles era quase universal e a dinastia constantiniana não seria uma excepção em promover uma associação com Aquiles e Alexandre. Ao apropriar a estátua equestre de Teodósio, Justiniano também apropriava uma iconografia constantiniana e apresentava-se como um Aquiles / Alexandre / Constantino para a nova época.
O problema para Justiniano (e a oportunidade para Procópio) é que Aquiles era um modelo extremamente complicado, uma vez que mitos e textos (incluindo, claro, a Ilíada) o apresentavam como consistentemente irado, verdadeiro arrasador de inimigos, mas também de amigos, e incapaz, muitas vezes, de controlar os seus vários impulsos.[5] Procópio aproveita esta tradição literária. Ao dizer que se podia comparar a estátua, «em linguagem poética», àquela «estrela do Outono», Procópio alude a uma passagem em que Homero compara o próprio Aquiles, no meio da sua raiva contra Heitor (Ilíada 22.26–31), a esta estrela, que era considerada um prenúncio de febre, doença e morte. De facto, no ano em que a coluna foi completada, a famosa «peste de Justiniano» já tinha começado a espalhar-se em Constantinopla. Segundo Procópio (De bellis / Sobre as guerras 2.23.2), no seu pico esta pandemia provocava dez mil mortes por dia só na capital. Tal como Aquiles foi responsável pela morte de milhares de Troianos (mas também, indirectamente, de Aqueus), Justiniano e a sua ímpia estátua podem imaginar-se como responsáveis pela dizimação da população de Constantinopla.
Um discurso negativo acerca de Justiniano e da estátua persistiu, especialmente em círculos conservadores ortodoxos. Uma colecção de Patria (um género literário grego que visava louvar cidades, as suas origens e maravilhas) reúne, no século décimo, narrativas e lendas acerca de Constantinopla e dos seus notáveis monumentos. No quarto livro desta colecção, encontramos uma narrativa acerca da construção da Hagia Sophia, cujo arquitecto diz-se ser um certo Inácio (na verdade, os arquitectos da igreja chamavam-se Antémio e Isidoro). Ao mesmo Inácio a narrativa atribui o projecto da coluna de Justiniano. O engenho e a mente brilhante de Inácio tornam-no tão popular que Justiniano receia que ele seja aclamado imperador pelo povo, que nunca acolheu o próprio Justiniano com agrado, especialmente depois dos massacres da revolta de «Nika», que a narrativa faz questão de recordar. O desconfiado Justiniano planeia então a morte do genial arquitecto. Ordena que, após concluída a coluna, o andaime seja retirado, enquanto Inácio estivesse lá em cima a instalar a estátua, e que ele seja abandonado lá para morrer de fome. A coluna, impiamente alta, viria a ser um sepulcro aberto para aquele que a conseguiu construir. Seguindo padrões folclóricos, o arquitecto prova ser demasiado esperto para morrer. Durante a noite, apercebe-se que tem com ele uma corda bastante grande e que, atando-lhe todas as suas roupas, que tinha rasgado, conseguia chegar ao chão. Ao mesmo tempo, uma vez que todos na cidade já tinham ouvido falar do infortúnio do arquitecto condenado a morrer, a sua mulher chega ao pé da coluna para se lamentar. Ele pede-lhe que procure uma corda mais grossa e tão longa como a coluna, que a esfregue com breu e que volte durante a noite seguinte. E ela assim faz. No meio da noite, ele deixa cair a corda que tinha feito com as roupas, a mulher amarra a esta aquela que tinha trazido e Inácio puxa tudo para cima. Fixando a corda coberta com breu à pata do cavalo, desce e depois queima a corda de modo a não deixar vestígio nenhum da sua fuga. Durante três anos, ele e a sua família vivem incognito em Adrianopla. Um confronto final vem provar a superioridade do arquitecto face ao imperador. Disfarçado de monge, Inácio viaja até Constantinopla e, no meio de uma procissão religiosa, aproxima-se do imperador, pedindo em voz alta que lhe desse a sua palavra que não o tentaria matar. Justiniano, que reconhece imediatamente Inácio, vê-se obrigado a prometer o que o arquitecto tinha pedido e, fingindo não ter tido nada a ver com a tentativa de assassínio, proclama: «Olhai, quem Deus quer que permaneça vivo, mil pessoas não matarão».
Esta narrativa totalmente fictícia sugere que alguns círculos em Constantinopla, os mais próximos da Igreja, não viam com agrado nem a coluna nem Justiniano. De facto, para estes, Justiniano representava, provavelmente, uma espécie de Anticristo.[6] A coluna, neste contexto, é o monumento que demonstra os excessos do seu egocentrismo e a sua corrupção moral. Na competição de poder entre Igreja e estrutura imperial, a coluna ficava definitivamente do lado imperial — um claro desafio à excepcionalidade da Hagia Sophia. Contudo, o alinhamento da coluna com o poder imperial tornou a sua segurança e integridade em motivo de grande preocupação para os imperadores bizantinos. Em 839/840 a toupha — o capacete da estátua — caiu. O imperador de então, Teófilo, fez questão de ordenar a sua restituição imediata. Segundo a crónica de Simeão Logoteta (130.40), todos estavam perplexos porque, enquanto voltar a fixar a toupha na cabeça do cavaleiro seria relativamente simples, subir a coluna era impossível. O homem que finalmente o conseguiu fazer tinha habilidades não só de artífice mas também de acrobata. Subiu ao telhado da Hagia Sophia, disparou dali para a coluna uma flecha com uma corda amarrada a ela, subiu por meio desta corda e voltou a colocar a toupha no seu lugar. Teófilo deu ao homem cem moedas de ouro como recompensa e passou a integrar a toupha na sua iconografia numismática. A restauração da estátua de Justiniano reforçava assim o seu poder e legitimidade.
Graças ao engenho dos arquitectos de Justiniano e ao cuidado dos seus sucessores, a coluna e a sua estátua mantiveram-se estáveis e intactas durante os séculos seguintes. A sorte da coluna só iria mudar com o saque de Constantinopla pelos exércitos da Quarta Cruzada em 1204 e com o estabelecimento de um Império Latino no território bizantino entre 1204 e 1261. Durante este período, inúmeras estátuas de Constantinopla foram transportadas para o Ocidente como espólio ou foram partidas e derretidas. O historiógrafo bizantino Nicetas Coniates (Historia 649) lamenta-se da ganância dos Latinos e afirma que a estátua equestre no fórum de Teodósio, que tinha sobrevivido até essa altura, foi então entregue às chamas. Todo o revestimento de bronze à volta da coluna de Justiniano teve a mesma sorte: foi retirado e derretido, deixando as pedras visíveis, assim como os furos onde estavam os pregos que seguravam as placas de bronze. A estátua de Justiniano em si, contudo, escapou. Há boas razões para isso, que não se prendem só com a dificuldade de acesso à estátua. Com a passagem dos séculos, a identificação do cavaleiro com Justiniano deixou de ser óbvia. Quando os cruzados olhavam para o cavaleiro em cima da coluna, eles viam não Justiniano mas Heráclio, o seu próprio antepassado ideológico, o imperador cristão que recuperou a Cruz Verdadeira das mãos dos persas sassânidas e a trouxe de volta a uma Jerusalém libertada (630 d.C.). Quando Heráclio morreu, em 641 d.C., todas as províncias orientais, incluindo a Palestina, já tinham sucumbido a um novo inimigo, os árabes muçulmanos. Os cruzados aspiravam a uma vitória definitiva contra estes mesmos inimigos e a uma repetição da restitutio crucis em Jerusalém — um evento que ouviam ser glorificado no contexto da festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada no dia 14 de Setembro, e cujo grande herói era precisamente Heráclio.
Um romance da segunda metade do século XII, escrito por Gautier d’Arras e intitulado Eracle, conta uma vida ficcionalizada de Heráclio, como se este fosse um cavaleiro tardo-medieval, e acaba com um poema em que a coluna é louvada como um monumento absolutamente extraordinário que os habitantes de Constantinopla ergueram para comemorar o seu imperador mais heróico. O autor proclama a antiguidade da coluna e da estátua, a sua eternidade («ainda é vista e sempre será vista») e diz que Heráclio, ao apontar com a mão para os territórios «pagãos», ameaça-os e persegue a causa honrada de Deus. Roberto de Clari, um cavaleiro francês que presenciou o saque de Constantinopla, deixou-nos uma crónica em que descreve vividamente os monumentos e a arquitectura da cidade. Nela também se identifica a estátua equestre como sendo de Heráclio — o imperador proto-cruzado. Roberto alega que a identificação com Heráclio é avançada pelos próprios habitantes da cidade, o que pode indicar, se não for uma invenção de Roberto, uma adaptação dos habitantes de Constantinopla às expectativas dos seus novos senhores. Na sua descrição, Roberto também diz que o imperador estende a mão contra os «pagãos», mas curiosamente acrescenta que havia letras inscritas sobre a estátua que transmitiam um juramento de Heráclio: que os Sarracenos nunca teriam paz com ele. Como veremos mais adiante, havia de facto uma inscrição sobre o cavalo, só que revelava algo completamente diferente. De qualquer modo, a crónica de Roberto deixa claro como um cruzado estava disposto a crer que a estátua representava o primeiro imperador cristão a encarregar-se de uma «guerra santa».
Quando Constantinopla foi reconquistada aos latinos por Miguel VIII Paleólogo e a corte bizantina voltou de Niceia para a capital em 1261, a cidade estava devastada. A coluna de Justiniano era provavelmente o único monumento, além da Hagia Sophia, a fazer lembrar as suas antigas glórias e a ligar as duas épocas, o antes e o depois da catástrofe do saque latino. O historiógrafo da reconquista, Jorge Paquimeres, descreve a coluna, comparando o seu estado actual ao que Procópio relata. Como diz Boeck, Procópio serve como um guia para a cidade que os Bizantinos perderam e recuperaram,[7] mas agora em estado quase irreconhecível. Paquimeres nota a falta das placas de bronze — bronze que não era inferior à prata em valor (um eco de Procópio) — mas aproveita esta falta para expor com mais pormenor do que o seu antecessor o tipo e a posição das pedras que foram usadas na construção da coluna.[8] Ao contrário de Procópio, Paquimeres menciona Justiniano pelo nome e foca-se no pedestal sobre o qual a estátua estava fixada, especificando as suas dimensões. Em comparação com a descrição de Procópio, a de Paquimeres é mais encomiástica, especialmente em relação ao cavaleiro, aos seus movimentos e à maneira como ameaça os inimigos sem se precipitar. Ao mesmo tempo, é óbvio que algumas informações que constam na descrição de Procópio já não fazem sentido (ou não fazem o mesmo sentido) na época de Paquimeres. A palavra Augusteum, que originalmente se referia à praça onde se erguia a coluna, passa a designar a própria coluna, nomeada assim em honra de «Justiniano Augusto». O «traje de Aquiles», na interpretação de Paquimeres, refere-se ao manto do cavaleiro, talvez por ser a única peça das suas vestimentas que ainda fazia parte dos trajes dos imperadores bizantinos da sua época. O globus cruciger, embora continue a simbolizar o mundo, agora é chamado «maçã» com cruz. Por fim, Paquimeres transmite uma informação interessante sobre a toupha: o autor relata que esta tinha sobrevivido intacta até à sua época, mas que, numa tempestade violenta, duas das suas penas tinham caído (depois seriam substituídas). Estas duas penas provaram ser muito maiores do que aparentavam quando vistas do chão e «até hoje», diz Paquimeres, foram guardadas no Tesouro da Hagia Sophia — uma indicação de que eram vistas como relíquias de um monumento sagrado.
Nos anos seguintes, mais peças da estátua caíram, causando alarme entre a população da cidade e forçando os imperadores Paleólogos a investir cada vez mais dinheiro na sua recuperação. Nos anos de Andrónico II (1282–1328), filho de Miguel VIII, caiu a cruz do globo. Em 1317, provavelmente pela primeira vez desde a construção da coluna, um enorme andaime surgiu a toda a sua volta e vários artífices chegaram à estátua para voltar a colocar a cruz e verificar o estado do monumento. O que viram foi preocupante: a estrutura de ferro que suportava o cavalo estava totalmente corroída e havia risco de a estátua cair. Os artífices criaram novos suportes para o cavalo (provavelmente incluindo um poste de ferro a fixar a sua barriga ao pedestal). Também tiraram a cabeça e o globo do cavaleiro, douraram-nos e voltaram a colocá-los no sítio. Por fim, para encher os furos que os Latinos deixaram na coluna quando retiraram o bronze, cobriram-na toda com gesso forte e alisaram-na. No século seguinte, a estátua deve ter dado, mais uma vez, sinais de risco de queda. A solução encontrada foi amarrar a estátua ao pedestal com enormes correntes de ferro, que eram visíveis do chão. Segundo Pêro Tafur,[9] um viajante espanhol que viu a coluna em Constantinopla em 1437–38, esta reparação custou oito mil ducados — um valor suficiente para comprar um milhão de quilogramas de trigo e só dois mil ducados menos do que o tributo anual que os Bizantinos pagavam aos Otomanos. Tendo em consideração os recursos cada vez mais limitados que os imperadores Paleólogos tinham ao seu dispor, com o seu território a diminuir constantemente, este nível de investimento revela a importância que os imperadores atribuíam a esta estátua emblemática da cidade.
Dois viajantes relatam que na década de 1420 viram a estátua sem o globo,[10] o que significa que em certo momento este símbolo de domínio universal caiu, mas deve ter sido reposto na década a seguir, uma vez que Tafur o viu lá em 1437–38. A queda do globo foi interpretada, nas fontes ocidentais, como um prenúncio do declínio irresistível e da queda final do Império Bizantino.[11] Mais uma vez, a identidade do cavaleiro mudou. Tafur menciona o seu nome não como Justiniano, mas Constantino, o fundador da cidade. O nome evoca profecias apocalípticas que circulavam no séc. XV e que diziam que, tal como a cidade fora fundada por um imperador Constantino, também seria destruída nos anos de um imperador Constantino. (Isto não só acabou por se verificar, quando Constantinopla ficou em poder dos Otomanos nos anos de Constantino XI Paleólogo, mas uma outra coincidência se acrescentou a esta: só estes dois imperadores Constantinos tinham uma mãe chamada Helena.) Para Tafur, a parte do mundo para a qual o cavaleiro aponta já não é a terra onde os «bárbaros» ou «pagãos» deviam permanecer, mas de onde haveria de vir a «destruição da Grécia» («Este cavallero dizen que es Constantino e que prenusticó que de la parte donde señalava con el dedo avíe de venir la destruición de la Grecia«, em Andaças e viajes, 151). Nas vésperas da queda de Constantinopla, lendas dizem que o globo (chamado nos tempos dos Paleólogos «maçã») caiu duas vezes.[12] Após aquele dia fatídico em Maio de 1453, quando a cidade finalmente caiu e Constantino Paleólogo foi morto, Maomé II procurou o corpo do seu adversário, decapitou-o e afixou a cabeça na coluna de Justiniano, para que fosse vista por todos. A coluna que proclamava o poder dos imperadores bizantinos também vinha, assim, a anunciar o fim do império. Poucos anos depois, a estátua foi retirada da coluna, que seria destruída em 1519. Quando Maomé completou o palácio de Topkapı (c. 1460), ou a estátua inteira ou fragmentos desta foram transferidos para lá, onde Pedro Gílio, um estudioso francês, viu no fim da década de 1540 a perna e o nariz do cavaleiro, antes de estes serem derretidos para fazer canhões.
A existência física do monumento chega, assim, ao seu fim. Resta contar como é que ficámos a saber que a estátua equestre não era inicialmente de Justiniano mas de Teodósio. Só uma fonte contemporânea nos transmite essa informação: na crónica de João Malalas (18.94), uma breve frase afirma que Justiniano instalou no cume da sua coluna uma estátua de Arcádio, retirada do fórum de Teodósio. Graças ao esforço de um viajante italiano do século XV, as origens teodosianas da estátua puderam ser verificadas cientificamente, de acordo com as predilecções antiquaristas do Humanismo dessa época. Umas três décadas antes da queda de Constantinopla, Ciríaco de Ancona, um homem fascinado por arqueologia e hoje considerado o «pai» da epigrafia, visitou a cidade e fez questão de inspeccionar a estátua. Provavelmente aproveitando um andaime usado nas inúmeras operações de restauro da coluna naqueles últimos anos da sua existência, Ciríaco observou a estátua de perto e notou que o cavalo trazia uma inscrição nunca antes registada: Gloria[e] fons Theodosi perennis (em latim, «fonte eterna da glória de Teodósio» ou «fonte da glória eterna de Teodósio») e Πατρόφιλος πλάστης ἐποίησε[ν] (em grego, «Patrófilo o escultor fez»). Um desenho proveniente dos círculos de Ciríaco (o manuscrito, do século XV, menciona o nome de um seu colaborador, João Dário) mostra o cavaleiro com a inscrição latina proeminentemente sobreposta ao cavalo.[13] Ciríaco e os seus colegas humanistas procuravam as raízes de uma cultura europeia na antiguidade clássica — tentavam estabelecer os significados originais de palavras, ideias e imagens através de metodologias científicas. Para estes estudiosos, o sentido original era o mais fulcral e o «dono» original da estátua é que seria o «verdadeiro». Contudo, como a história milenar da coluna demonstra (e como os debates dos nossos tempos indicam), muitas vezes as mudanças na apreciação de uma estátua e as «conversas» que as pessoas têm com os monumentos à sua volta são igualmente interessantes e fulcrais.
[1] Boeck, E. The Bronze Horseman of Justinian in Constantinople: The Cross-Cultural Biography of a Mediterranean Monument (Cambridge: Cambridge University Press, 2021) inclui todas as fontes históricas e as informações técnicas (por ex., sobre as medidas) aqui apresentadas. O meu interesse neste monumento surgiu no contexto de um projecto sobre Aquiles na antiguidade tardia. O projecto é financiado pela FCT (PTDC/LLT-LES/30930/2017; fundos nacionais).
[2] Kaldellis, A., Romanland: Ethnicity and Empire in Byzantium (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2019) é o estudo mais completo sobre o tema.
[3] De Aedificiis 1.1.46.
[4] Tradução do texto grego, a partir da edição de Wirth, G. Procopii Caesariensis opera omnia (Leipzig: Teubner, 1964).
[5] Analiso este tema com mais pormenor, em relação aos discursos panegíricos tardo-antigos, em: Hadjittofi, F. «“All the Famous Deeds of Achilles are Yours”: Homeric Exemplarity in Late Antique Panegyric», Arethusa 54 (2021), no prelo.
[6] Dagron, G. Constantinople imaginaire. Étude sur le recueil des «patria» (Paris: PUF, 1984) 306; tradução francesa do texto na íntegra: 191–314.
[7] Acima, n. 1, pág. 216.
[8] A descrição de Paquimeres é transmitida num manuscrito da Historia de Nicéforo Gregoras. Texto em Schopen, L. Nicephori Gregorae Byzantina Historia (Bonn: CSHB, 1830) vol. 2, 1218–20. Tradução inglesa em Mango, C. The Art of the Byzantine Empire 312–1453: Sources and Documents (Toronto: University of Toronto Press, 1986) 111–13.
[9] P. Tafur, Andaças e viajes (ed.) M. Á. Pérez Priego (Seville: Fundación José Manuel Lara, 2009).
[10] J. Schiltberger, The Bondage and Travels of Johann Schiltberger, a Native of Bavaria, in Europe, Asia, and Africa, 1396–1427, trans. J. Telfer (London: Hakluyt Society, 1879) 79–80 e G. Majeska, Russian Travelers to Constantinople in the Fourteenth and Fifteenth Centuries (Washington, DC: Dumbarton Oaks Research Library and Collection, 1984) 166.
[11] Boeck (acima, n. 1), cap. 11.
[12] Boeck (acima, n. 1), 317.
[13] O manuscrito é da Biblioteca da Universidade de Budapeste: Cod. Ital. 3, fol. 144v.