O Peri Hypsous (Do Sublime) de Pseudo-Longino constitui um dos textos mais enigmáticos e paradoxais da tradição teórica grega. Tal caracterização decorre não apenas da complexa questão autoral e cronológica da obra — aspectos ainda debatidos pela crítica —,[1] mas sobretudo da ambiguidade intrínseca ao próprio texto: é difícil determinar com precisão qual é a sua natureza e finalidade. Embora frequentemente classificado como um «tratado sobre o sublime», a obra não se apresenta, nem se estrutura, como uma technê rhētorikê, nos moldes das obras de Aristóteles ou do Corpus atribuído a Dionísio de Halicarnasso. O próprio autor não caracteriza o seu texto com o termo técnico grego correspondente ao «tratado», que seria technê (em latim: ars). Ele pode defender que existe uma «arte» do sublime — um certo método que o homem político precisa de combinar com uma inclinação natural para produzir um efeito sublime (cf. § 2) — mas este texto não nos apresenta, exactamente, este método; ou seja, não é um vade-mécum, uma série de regras que o leitor genérico deve seguir para se tornar autor de discursos sublimes. 

De facto, Pseudo-Longino não se dirige a um leitor anónimo e genérico, mas sim a um destinatário específico, Postúmio Terenciano, cuja onomástica indica inequivocamente a origem romana e a língua latina como idioma nativo. O nome de Terenciano é mencionado logo no início da obra: 

(§1) O pequeno tratado (syggrammation) que Cecílio (de Calacte) compôs sobre o sublime, meu caro Postúmio Terenciano, quando em conjunto o analisámos, como sabes, pareceu-nos não estar à altura do assunto que trata e não tocar os aspectos essenciais, não sendo, pois, de grande utilidade – ao contrário do que deve ser o principal objectivo de quem escreve. Além disso, não cumpre os dois requisitos que qualquer tratado técnico deve observar: em primeiro lugar, apresentar o seu assunto, em segundo – e este é o mais importante – mostrar de que maneira e por que métodos podemos chegar a ele.[2] 

Este início, que demostra alguns dos traços genéricos de uma epístola, introduz o assunto — o sublime — e um alvo de crítica: Cecílio, que escreveu um breve tratado não à altura do sublime, sobre o qual Pseudo-Longino e Postúmio Terenciano já falaram. A crítica detalhada à obra de Cecílio ocorreu numa conversa à qual nós, a audiência do texto, nunca poderemos ter acesso. O próprio «tratado» de Cecílio também não é exactamente um «tratado» em grego (a palavra technê só ocorre quando Pseudo-Longino diz que esta obra não cumpre os requisitos de uma technê). Para designar a obra do seu rival Pseudo-Longino usa a forma depreciativa syggramation (συγγραμμάτιον) — um diminutivo que sugere uma composição breve, modesta e sem pretensões doutrinárias. 

Embora esta abertura da obra possa sugerir a intenção de desenvolver um tratado de maior envergadura — uma technê propriamente dita — o autor mantém uma postura ambígua diante das exigências do discurso técnico. A sua crítica aos technographoi (τεχνογράφοι, «autores dos tratados técnicos», §12) não é acompanhada de uma exposição exaustiva dos métodos que o autor sugere como conducentes à produção do sublime. Este deficit é, pelo menos em parte, atribuído à existência de outras composições de Pseudo-Longino, que abordariam o tema com maior profundidade: (§39) «Acerca dela [da composição das palavras]», diz Pseudo-Longino, «escrevi já o bastante em dois livros (syntagmasin, συντάγμασιν) — tanto quanto me foi possível no que respeita à teoria — por isso apresentarei agora apenas o que é necessário para a argumentação (hypothesin, ὑπόθεσιν) presente». A escolha lexical aqui é reveladora: enquanto syggramation, que o autor usou para a obra de Cecílio, indica algo episódico, syntagma (σύνταγμα) comporta uma conotação de ordem, completude e rigor — é o termo aplicado, no contexto militar, a um batalhão; na política, à constituição de um estado; e nas obras escritas, a um tratado que inclui toda a doutrina necessária para dominar um assunto. Pseudo-Longino aparentemente escreveu tais obras, mas não é essa a categoria do texto que temos aqui; o que Pseudo-Longino nos apresenta é, em grego, simplesmente uma hypothesis, um argumento.

A distinção entre a obra de Cecílio e as do autor remete à primeira função que se pode atribuir ao Peri Hypsous: este texto é, entre outras coisas, um exercício de autopromoção literária. Neste contexto, torna-se relevante considerar a identidade cultural dos interlocutores. Pseudo-Longino é um grego; Terenciano, um romano. Pelas afinidades que este texto apresenta com o diálogo de Tácito sobre os oradores (De oratoribus), é possível supor que Pseudo-Longino viveu em Roma, comunicando regularmente com falantes de latim, em latim. Ele próprio nos indica o seu conhecimento da língua latina, quando compara Demóstenes (um orador grego da época clássica) a Cícero (o famoso orador Romano):

(§12) E nenhuma outra coisa senão esta, caríssimo Terenciano, me parece também distinguir Cícero de Demóstenes em matéria de grandeza (se é que eu, sendo grego, posso ter alguma opinião). Em geral, Demóstenes atinge o sublime abruptamente, Cícero derrama-se. O nosso pela violência, rapidez, força e veemência com que tudo queima e devasta poderia ser comparado a um relâmpago ou a um raio; Cícero, a meu ver, como um vasto incêndio, desenvolve-se e alastra por toda a parte, mantendo sempre consigo um fogo intenso e constante que se vai distribuindo por um lado e por outro e em si mesmo sucessivamente se alimenta.

Ainda que a formulação seja suavizada por uma cláusula de modéstia («se é que eu, sendo grego, posso ter alguma opinião»), o juízo final favorece Demóstenes, cuja eloquência é associada à súbita potência do relâmpago, em contraste com o estilo expansivo de Cícero, comparado a um incêndio «intenso e constante». Mesmo além do veredicto, que não desrespeita Cícero de maneira nenhuma, Demóstenes é «nosso» (grego) enquanto Cícero não. Neste gesto, é possível vislumbrar uma dimensão política e social do texto. Sendo plausível que Pseudo-Longino tenha vivido em Roma como escravo ou liberto,[3] eventualmente na condição de pedagogo helénico ao serviço de uma família aristocrática, a sua reivindicação de autoridade cultural adquire contornos estratégicos. De certeza que o autor não tem os mesmos privilégios (políticos e sociais) que um Romano. Se imaginarmos Pseudo-Longino a «vender» a paideia (educação e cultura) grega, em competição com outros profissionais, libertos ou escravos, a sua autopromoção como crítico literário e a promoção da sua língua e cultura ganham uma relevância diferente. O grego, neste contexto, surge como língua de prestígio, mesmo quando os seus falantes se encontram em posições subalternas. A ausência total de citações em latim nesta obra, apesar do conhecimento de autores latinos como Cícero, reforça a ideia de que o texto participa do paradoxo formulado por Horácio: Graecia capta ferum victorem cepit — a Grécia vencida venceu o seu conquistador por meio da cultura.[4]

É necessário, portanto, compreender o Peri Hypsous não apenas como texto técnico, mas como obra enunciada por um autor que se dirige a um interlocutor individual, de estatuto superior em termos políticos e sociais, mas culturalmente inferior. O contexto histórico, de facto, irrompe de forma explícita no final da obra, quando Pseudo-Longino transcreve um diálogo com um filósofo anónimo, no qual se debate a alegada decadência da literatura no presente:

(§44.2-6) Caríssimo Terenciano, para a tua boa instrução não hesitarei ainda em acrescentar e tentar esclarecer um último ponto sobre o qual há pouco tempo fui questionado por um dos filósofos. Dizia ele: «Acho estranho — e não serei o único — que nos nossos dias haja criaturas com o maior poder de persuasão e com competência para as funções públicas, sagazes, hábeis e sobretudo férteis na produção de agradáveis efeitos literários, mas nenhumas absolutamente sublimes e extraordinariamente grandes, a não ser muito raramente. De tal modo se universalizou a esterilidade literária no nosso tempo!» E acrescentava: «Ou será que temos de acreditar na opinião corrente de que é a democracia que alimenta a grandeza e, em geral, só com ela floresceram e morreram os grandes talentos literários? Diz-se que a liberdade é capaz de alimentar os pensamentos dos homens grandes, de lhes dar esperança e, ao mesmo tempo, de despertar neles o desejo de competirem entre si e de ambicionarem o primeiro prémio. Além disso, graças aos prémios propostos nas repúblicas para várias ocasiões, as superiores capacidades espirituais dos oradores são espevitadas pelo exercício e vão-se, por assim dizer, polindo e, como é natural, brilham livres juntamente com as suas obras. Mas nós hoje somos educados desde crianças no que parece ser uma legítima escravidão e não apenas somos como que enfaixados desde os nossos mais tenros pensamentos nos mesmos costumes e ocupações, mas ainda passamos sem provar da fonte bela e fecunda donde vem a arte das palavras, isto é, a liberdade. É por isso que nada conseguimos ser senão uns extraordinários bajuladores.» É por essa mesma razão — afirmava ele — que as outras faculdades existem também nos escravos, mas nenhum se torna orador, «pois, encontrando-se como que numa prisão e habituado a ser maltratado, nele se percebe logo a impossibilidade de falar livremente. De facto, como diz Homero, “o dia da escravidão leva metade da excelência.” Assim como — se posso dar crédito ao que ouço dizer — as jaulas (glôttokoma, γλωττόκομα) onde são criados os Pigmeus, a que chamamos anões, não só impedem o crescimento dos que estão fechados lá dentro mas também os tornam mais pequenos devido às ataduras que lhes põem à volta do corpo, do mesmo modo a condição servil, por mais justa que seja, se pode definir como uma jaula e uma espécie de prisão comum (desmotêrion,  δεσμωτήριον) da alma.» E eu respondi-lhe assim: «É fácil, meu bom amigo, e próprio do homem falar sempre mal das coisas presentes. Mas repara que não é a paz do mundo que destrói os grandes talentos, mas muito mais essa guerra sem fim que toma conta dos nossos desejos e ainda, por Zeus, aquelas paixões que dominam a vida moderna e a conduzem e arrebatam completamente. É o amor insaciável da riqueza, do qual todos padecemos, e o amor dos prazeres que nos escravizam e, mais ainda, afundam a vida com os homens lá dentro, se assim posso dizer.»

A forma dialogal do encerramento da obra, absolutamente surpreendente no contexto de um tratado técnico, aponta para o território genérico da epístola e do diálogo filosóficos. Não se trata, então, de uma coincidência que o autor dialogue com um filósofo: os filósofos, pelo menos a partir de Platão, não reconheciam nenhum grande valor na retórica.[5] Pseudo-Longino consegue, assim, articular um discurso que simultaneamente sugere e transcende as críticas filosóficas à retórica, uma vez que o filósofo anónimo reconhece o valor do sublime como algo que vai além da retórica — que tem a ver com a própria constituição da alma e que escapa a definições estritamente formais.

O argumento do filósofo anónimo é que todos os que vivem sob o império Romano, sem democracia, estão sujeitos a uma escravidão que lhes priva da capacidade de falar livremente, o que representa um bloqueio insuperável na tentativa de alcançar o pensamento e o discurso sublime. A imagem mais vívida utilizada para ilustrar esse argumento tem a ver com os pigmeus, vindos da África, escravizados e reduzidos a instrumentos mudos de diversão para uma população ávida de entretenimento.[6] Os pigmeus crescem confinados num contentor minúsculo; embora, numa segunda instância, o autor se refira a este local de cativeiro como uma prisão (desmotêrion), a imagem que prefere é a do glôttokomon. Esta palavra rara significa, à letra, «o saco onde se guardam as línguas» — «as línguas» neste contexto não são as línguas humanas, mas as palhetas finas que se colocam na boca de um instrumento de sopro e que produzem o som através da sua vibração. No mundo antigo o instrumento principal que utilizaria este tipo de palhetas era o aulo: às vezes traduzido como flauta,[7] o aulo é de facto mais parecido com o nosso oboé e produzia um som avassalador que levava até ao êxtase, como o próprio autor atesta:

(§39) Com efeito, não põe o aulo determinadas emoções dentro dos ouvintes, fazendo-os como que sair de si e enchendo-os de um delírio coribântico? E depois de mostrar uma certa cadência rítmica não força o ouvinte, «mesmo que seja completamente avesso às Musas» [citação de Eurípides, Estenobeia], a ir atrás dela dentro do ritmo e a acompanhar a melodia?

Precisamente pela sua capacidade de levar os ouvintes a uma experiência báquica de delírio, o aulo é um bom comparando para o sublime literário — ao mesmo tempo que é o instrumento banido por Platão no seu Simpósio: no início das actividades daquele banquete filosófico (176e4–9), Sócrates diz que a aulêtris (a escrava que tocava esse instrumento) devia retirar-se para deixar os homens dialogarem com coerência racional. A mesma condenação do aulo também surge no diálogo platónico Protágoras (347c–d), em que Sócrates censura os homens vulgares que não têm educação para se entreterem com as suas próprias vozes e que, por isso, pagam somas avultadas para contratar «a voz estranha dos auloi». O filósofo privilegia sempre o discurso lógico à emoção descontrolada provocada por este instrumento. Pseudo-Longino, por outro lado, consegue reintegrar o valor da experiência estética e emocional, transgredindo a tradicional oposição entre retórica e filosofia. O Peri Hypsous, mais uma vez, absorve as objecções filosóficas, transformando-se numa obra quasi-filosófica, que vai além do ideal racionalista do discurso filosófico, reconhecendo e não desprezando o valor da música que leva ao êxtase e da retórica que tem os mesmos efeitos. 

Contudo, permanece irresoluta a questão central: como se alcançar o sublime? A obra recusa-se a oferecer uma resposta normativa ou metódica. Na conclusão da obra, citada acima, Pseudo-Longino defende que, até no contexto não democrático em que os seus contemporâneos vivem, cada um deve conseguir a libertação da alma das paixões e dos prazeres e que essa liberdade interior irá permitir uma constituição conducente ao sublime. A metáfora predominante é a da alimentação da alma: No parágrafo 44 (acima) é a liberdade que alimenta, à letra, «os pensamentos / disposições daqueles que têm pensamentos / disposições grandes» (ta phronêmata tôn megalophronôn, τὰ φρονήματα τῶν μεγαλοφρόνων). A frase não é muito clara. Os megalophrones («aqueles que têm pensamentos / disposições grandes») já têm aqueles pensamentos grandes necessários para produzir o sublime; a liberdade só ajuda a mantê-los. O problema é recorrente e verifica-se também numa outra metáfora utilizada na obra: a da gravidez da alma — mais uma imagem retirada da tradição platónica. No nono parágrafo, por exemplo, Pseudo-Longino aconselha «alimentar a alma com vista à grandeza e fazer com que ela esteja sempre, por assim dizer, prenhe de uma nobre exaltação [...]. Escrevi algures o seguinte: “o sublime é o eco da grandeza interior” (hypsos megalophrosynês apêchêma, ὕψος μεγαλοφροσύνης ἀπήχημα).» À letra, na última frase, que é uma auto-citação do autor, «o sublime é o eco dos grandes pensamentos». Mas como é que nós nos vamos tornar em pessoas que têm pensamentos grandes? O problema reside na ausência de uma via segura para formar essa interioridade.

A tensão entre a dimensão técnica e a dimensão filosófica do texto é constante: se por um lado o autor se apresenta como mestre, instruindo Terenciano,[8] por outro, denuncia a superficialidade do ensino escolar e a artificialidade das figuras aprendidas na escola.[9] O texto tende a ser, em certos momentos, um tratado — um manual de instruções precisas sobre como construir frases e escolher palavras — mas também exibe uma tendência oposta e mais filosófica de investigar o que pode levar a alma a pensar e sentir de forma sublime. Pseudo-Longino explica o valor das figuras, mas também desaconselha as habilidades com as figuras (schêmata, σχήματα), porque geram desconfiança; são literalmente esquemas estilísticos que levam o ouvinte a pensar que o orador habilidoso o tenta enganar (§17.1).

Esta ambivalência em relação às regras dos tratados retóricos não é inédita. Na realidade existe uma longa tradição grega que considera ridícula a ideia de que se pode aprender retórica (ou a arte de falar e escrever bem) a partir de regras fixas. No Fedro de Platão, e no Contra os Sofistas, na Helena e na Antítese de Isócrates, a língua é pensada como um organismo vivo que está em constante evolução e que nunca pode ser totalmente explicada ou compreendida apelando a regras universais abstractas. Contra este grupo «anti-regras» se posicionam autores como Aristóteles e Anaxímenes, que afirmam a viabilidade de um sistema normativo — a possibilidade de estabelecer preceitos que vão regular em pormenor a forma como um discurso deve ser inventado, estruturado, elaborado, memorizado e proferido. O texto de Pseudo-Longino situa-se entre estes dois grupos: ele é simultaneamente pró- e anti- regras; estabelece algumas linhas de «boas práticas», mas ao mesmo tempo reconhece que pode ser precisamente a não observância dessas linhas e das regras dos tratados que leva ao sucesso retórico.[10]

A obra de Pseudo-Longino permanece deliberadamente ambígua: não é um verdadeiro tratado, mas também não é apenas uma carta pessoal nem uma epístola filosófica. Em vez de oferecer um manual, Pseudo-Longino oferece um ideal: a alma «grávida» de pensamentos sublimes ainda consegue produzir discursos sublimes, mesmo num contexto político adverso. A leitura e imitação dos clássicos surge como a única avenida segura para o sublime — mais segura do que o simples seguimento de regras técnicas fixas. Ainda assim, a distância que nos separa dos clássicos coloca obstáculos. No nono parágrafo, após citar vários versos da Teomaquia (batalha entre os deuses) de Homero, tirados principalmente do vigésimo canto da Ilíada, Pseudo-Longino faz o seguinte comentário: 

(§9.6-8) Vês, meu amigo, como abalada a terra desde os seus alicerces, o próprio Tártaro desnudo e o universo inteiro em convulsão, todas as coisas a um tempo — céu e Hades, mortais e imortais — travam o mesmo combate, expondo-se aos mesmos perigos? No entanto, todas estas coisas terríficas, se não forem tomadas como alegoria, são completamente ímpias (athea, ἄθεα) e impróprias. Pois parece-me que Homero, atribuindo aos deuses ferimentos, conflitos, vinganças, lágrimas, grilhetas e toda a espécie de paixões se esforça por fazer dos homens que combateram em Tróia deuses e dos deuses homens. 

O que torna os versos Homéricos sublimes, a transgressão dos limites da propriedade, é perdoável e compreensível em Homero porque se trata de Homero — a fonte e o pináculo de toda a literatura. O texto Homérico tem o luxo de ser interpretado de forma alegórica.[11] Qual seria o veredicto, se Terenciano (ou outro orador contemporâneo) falasse desta forma dos deuses? Não seria considerado simplesmente um ímpio? O contexto contemporâneo de Pseudo-Longino é um problema não só em termos políticos e sociais, pela ausência de liberdade e democracia; é também um problema em termos de ansiedades morais — mais uma herança da tradição platónica. O mundo de Pseudo-Longino é fundamentalmente diferente daquele dos seus modelos e, apesar do seu optimismo, não parece oferecer um método rigoroso e fiável para ressuscitar a literatura sublime. 

[1] O comentador mais recente da obra argumenta de forma convincente contra a atribuição da autoria a Cássio Longino; Stephen Halliwell, Pseudo-Longinus, On the Sublime, Edited with an Introduction, Translation, and Commentary (Oxford 2022).

[2] Todas as traduções da obra de Pseudo-Longino são de: Marta Isabel de Oliveira Várzeas, Dionísio Longino, Do Sublime. Tradução do Grego, Introdução e Comentário (Coimbra 2015). 

[3] O seu rival, Cecílio de Calacte, tinha sido um escravo e depois liberto (Suda kappa 1165.1-4).

[4] Horácio, Epístolas 2.1.156.

[5] Por exemplo, o Górgias de Platão é uma crítica feroz à arte do orador.

[6] Cf. W. Robert Connor, “The Pygmies in the Cage: The Function of the Sublime in Longinus,” in Literary Style, Measurement, and the Sublime: Disciplinary Assessment, eds. D. Heiland and L. J. Rosenthal (New York 2011) 97–114.

[7] Sobre o aulo e as suas características: Martin West, Ancient Greek Music (Oxford 1992) 81–122.

[8] V., por ex., a primeira frase citada acima, no excerto de §44.2: «Caríssimo Terenciano, para a tua boa instrução…»

[9] No §3, Pseudo-Longino fala com desprezo sobre «o pensamento escolar, cuja minúcia exagerada resulta em frieza. Deste género de defeito padecem aqueles que, buscando uma expressão extraordinária, muito trabalhada e, sobretudo, agradável, caem num tom pretensioso e afectado.»

[10] Esta posição também não é inédita no mundo romano: o orador e professor de retórica Quintiliano (Roma, séc. I d.C.) exprime ideias semelhantes (Institutos de Oratória 2.13.1–8).

[11] Por exemplo, na allegoresis estóica, os deuses neste episódio são só símbolos de certos elementos naturais que entram em conflito uns contra os outros.