Em memória de Ana Luísa Amaral, para quem o pensamento de Judith Butler era um referencial importante.

1. Há que soletrar Judith Butler

Em dezembro de 1999, The Guardian publicava a informação de que Judith Butler tinha sido agraciada com o prémio «bad-writing», anualmente atribuído pela revista Philosophy and Literature. Tal prémio, esclarecia o mesmo jornal, pretende destacar as piores passagens, do ponto de vista estilístico, encontradas em livros e artigos académicos. O texto de Judith Butler que serviu de referência a tal «distinção» foi Further Reflections on the Conversations of Our Time, publicado na Revista Diacritics, em 1997.

Em fevereiro de 1999, Martha Nussbaum publicou no The New Republic, o célebre e polémico texto «The Professor of Parody», acusando Judith Butler de ter um estilo literário intencionalmente obscuro (cfr. Henriques 2016, 83-126). No contexto da polémica que a crítica de Nussbaum suscitou, surgiram vários outros textos relevando o mesmo aspeto obscuro da textualidade de Butler; nomeadamente, Cathy Birkenstein (2010) refere que a crítica de Nussbaum não é, sequer, original porque, no ano anterior, já Susan Gubar se tinha referido ao obscurantismo de Butler e, dois anos antes, Katha Pollitt tinha acusado Butler e outras académicas de escreverem de uma maneira tal que não se entendiam entre si (cfr. Birkenstein 2010, 271).

Sendo a linguagem e o seu poder, nomeadamente o seu poder performativo, uma das linhas de força do pensamento de Butler, como se explica esta convergência de perspetivas sobre o seu estilo e a sua textualidade? Que razões teóricas poderão suportar a designada obscuridade da textualidade butleriana? Penso ser legítimo dizer que a discursividade butleriana se relaciona com uma perspetiva filosófica e política e não se reduz a uma mera questão de elegância estilística.

Butler reconhece que, muitas vezes, pode ter havido um enclausuramento discursivo de uma certa crítica literária estado-unidense que falava para um círculo restrito de pessoas, exigindo o conhecimento dos mesmos textos e dos mesmos recursos retóricos para poder ser entendida. Isso dito, contudo, do seu ponto de vista, a clareza da linguagem não deve ser tomada como um valor absoluto. Nesse contexto, por um lado, reconhece que a transmissão de um certo tipo de conteúdos pode exigir um confronto com a padronização do discurso, mas, por outro, considera que é importante o questionamento ou a desconstrução da estrutura gramatical de uma língua para desocultar o trabalho de condicionamento que esta leva a cabo e de que não nos damos conta por causa da naturalização que enquadra a nossa relação com ela. Por esse motivo, defende que o investimento esforçado no trabalho interpretativo de autores e autoras e textos pode ser uma dimensão importante na formação de cada qual. Partindo da sua experiência de estudante da filosofia continental, refere o caminho interpretativo que teve de desenvolver para ler Hegel e Heidegger, por exemplo, e de como isso marcou a sua formação (cfr. Butler 2005, 93-100).

Uma coisa é clara para mim: estudar Judith Butler é uma empresa trabalhosa, que obriga à realização de múltiplos percursos de investigação e de compreensão. E o modo como ela concebe a textualidade filosófica não é uma ajuda. Daí que tenha recorrido à ideia de soletrar, ou seja, de silabar cada linha de pensamento, dando ao tempo a possibilidade de permitir um acompanhamento compreensivo de cada percurso. E, para além disso, procurar um apoio sistemático — sob a forma de um outro olhar de leitura, organizando um triângulo hermenêutico — nas entrevistas dadas pela autora, em circunstâncias especiais da sua vida intelectual, e onde ela desenvolve uma reflexão sobre as suas ideias e as suas obras, esclarecendo objetivos e conteúdos.

O soletrar que aqui me proponho fazer vai desenvolver-se em torno de três núcleos temáticos que são estruturadores do pensamento butleriano: género, violência e luto e que, por sua vez, convocam outros temas também determinantes do seu pensamento. Para além desta primeira secção, que funciona como uma espécie de introdução, o presente texto incluirá mais duas secções, divididas em subsecções dedicadas aos temas selecionados, e uma última secção, de balanço conclusivo.

 

2. Género e sexo: Gender Trouble e Bodies that Matter

No início da década de 90, Judith Butler publicou duas obras, com um intervalo de três anos entre si, que a colocaram no centro dos debates contemporâneos. Em 1990, publicou Gender Trouble, certamente a sua obra mais conhecida e, em 1993, Bodies That Matter que, no meu entender, pretende estabelecer um limite interpretativo a Gender Trouble.

Em Gender Trouble, Judith Butler assume e radicaliza  as  inquietações que se vinham a sentir no movimento feminista desde meados dos anos 80. A partir da publicação desta obra, a figura de Judith Butler torna-se um ídolo para alguns grupos que a usam como bandeira, muitas vezes sem se terem enfrentado seriamente com o seu pensamento, e uma figura demoníaca para outros grupos, que a vilipendiam, sem qualquer conhecimento do que ela escreveu ou defende, pretendendo apenas demonizá-la. Esta situação pública de Butler constitui mais uma razão para a necessidade de soletrar os seus textos e as suas ideias, colocando-as num campo de racionalidade que permita a compreensão crítica e desassombrada do seu legado intelectual. Porquê todo este alarido público?

Numa entrevista publicada na revista Radical Philosophy, em 1994, e retomada em 2005, numa publicação em língua francesa que reúne um conjunto de entrevistas suas (Butler 2005), Butler dá algumas informações que ajudam a compreender tal situação, além de mostrarem o modo como ela se relaciona com a receção de Gender Trouble e com o motivo do aparecimento de Bodies that Matter.

Uma primeira coisa interessante a ressaltar das suas respostas é o facto de Butler se ter surpreendido com o êxito e a popularidade de Gender Trouble, ao mesmo tempo que considera que isso advém do facto de que uma interpretação errónea das suas propostas adquiriu uma vida própria e se generalizou. Diz ela:

[…] em definitivo, penso que a popularidade do livro se deve a uma representação errónea daquilo que eu procurava dizer! (Butler 2005, 16-17).

Neste mesmo contexto, Butler considera que a aceitação e a popularidade do seu livro se prendem com um facto cultural. Gender Trouble teria dado forma e, em certa medida, acordado, algo que se encontrava subterraneamente adormecido dentro da dinâmica cultural. É duplamente interessante esta referência. Por um lado, a consciência de que a obra dá corpo ou expressão a uma exigência do seu tempo, o que poderia ser lido, em termos hegelianos, como o irromper da própria força da realidade. Mas, por outro lado, o reconhecimento da autonomia de um texto em relação a quem o escreve e do caminho próprio que ele pode fazer, criando um campo de significações que ultrapassa os desígnios de quem lhe deu autoria, podendo mesmo ir numa direção que não tinha sido projetada.

Independentemente de outras razões — que as há, certamente — penso que uma explicação lícita para o que Butler designa como «representação errónea» daquilo que queria dizer assenta no registo discursivo do livro e na sua intrínseca dificuldade de interpretação. Trata-se, na verdade, de um livro de filosofia que se entretece, argumentativamente, com perspetivas filosóficas de várias latitudes e que as articula sem grandes concessões para com quem vier a ser leitora ou leitor e não possuir qualquer formação, ou informação, filosófica. Nesse sentido, e fazendo fé na perspetiva de Butler de que o conteúdo do texto estaria a dar expressão a algo latente na sociedade, creio que faz sentido pensar que isso que, eventualmente, estava subterrâneo e adormecido se pode ter transformado em princípio hermenêutico de leitura, originando uma interpretação generalizada que, de alguma maneira, é paralela à obra e ao projeto que a gerou. Tendo isto como pano de fundo, apresentarei a seguir algumas linhas de reflexão em torno de Gender Trouble.

 

a) O registo discursivo e os contextos

Como já disse, Gender Trouble é um livro de filosofia que pretende questionar um sistema epistemológico/ontológico, como Butler afirma na apresentação que faz dele (Butler 2017, 44[1]), desenvolvendo-se no quadro discursivo da epistemologia e da ontologia. O seu horizonte de análise e de problematização é gerado por duas categorias: a de genealogia crítica e a de contrato heterossexual/heterossexualidade compulsória.[2] Nesse contexto, no imenso mundo de referências teóricas que constituem a intertextualidade da obra, ressaltam os nomes de Michel Foucault e de Monica Wittig. E não pelo facto de as suas posições serem aceites sem mais, mas porque um e outra fornecem os instrumentos categoriais com que Butler configura a sua posição. Ainda dentro do arsenal de referências, vale a pena perceber o peso determinante de alguns nomes, como é o caso de Simone de Beauvoir, Luce Irigaray e Julia Kristeva. E, de novo, não pelo facto de haver adesão ou concordância da parte de Butler, mas porque cada uma delas representa posições de rutura ou de inovação em relação à problemática em causa e a autora parece querer mostrar esses contributos, ao mesmo tempo que se demarca deles, por aquilo que considera serem limitações ou incoerências. O livro desenvolve duas perspetivas discursivas: a da análise crítica de um leque alargado de literatura sobre os temas em análise e a da proposição teórica pessoal. A primeira é muito clara e assenta num profundo conhecimento de autores e autoras convocadas. Embora, e naturalmente, cada posição seja apresentada pela ótica interpretativa da autora, quem lê pode seguir os argumentos postos em ação e compreender o que está em causa.

A segunda, a das propostas pessoais de Butler, não tem a mesma clareza ou precisão. O que ela quer propor aparece entretecido com a análise crítica que desenvolve e assume-se no quadro de uma vulnerabilidade conceptual — a proposta epistemológica fundamental do texto — que se demarca de todo o modo de pensar substancialista ou enraizado em estruturas conceptuais fixas e estáveis. Pelo contrário, a posição de Butler emerge de dentro da ideia de uma vulnerabilidade constitutiva do pensar ligada a um modo de entender o contextual que não é apenas condição do pensar, mas o seu meio próprio.

Todo o pensamento do livro se demarca do modo binário de pensar que aparece como próprio de um olhar substancialista, propondo a dissolução dos binómios categoriais: corpo/mente; natureza/cultura; masculino/feminino, superficial/profundo; interior/exterior; natural/artificial…. Todas as estruturas categoriais fixas e estáveis, todo o pensamento da unidade e da coerência decorrem de um voluntarismo de poder e de uma imposição explicativa redutora. Pensar tem de ser um processo de diferenciação dentro de um ambiente determinado pela incerteza e pela miscigenação, processo que se separa de um qualquer fundamento, de algo a partir do qual se deduzam ou induzam conceitos ou categorias. Nunca há um «antes» da instauração discursiva que a fundamente.

Nesse quadro, as propostas de Butler não podem ser precisas nem claramente definidas, mas antes, diria, representam ambientes e nuances de compreensão inscrevendo-se numa outra «categoria» que impregna o livro e o sustenta: a ideia derrideana de différance.

 

b) O feminismo como lugar de análise

Gender Trouble é um livro que se dirige aos feminismos e que assume o sentido do feminismo.

Na entrevista antes referida, Butler afirma-se, antes de tudo, como feminista. Diz:

Sou uma teórica feminista antes de ser uma teórica queer ou gay ou lésbica. [...] Gender Trouble é uma crítica à heterossexualidade compulsória, no seio do feminismo, e é aos feminismos que eu me dirigia. (Butler 2005, 13)

Estas declarações são importantes porque este livro de Butler organiza-se e assenta numa crítica radical ao designado «sujeito do feminismo» e à sua eficácia política. Tal crítica desenvolve-se em três frentes inter-relacionadas: (1) a perspetiva universalista que a sustenta, (2) a ideia de identidade que subsume e (3) a própria ideia de sujeito que representa um modelo fundacionista de pensar.

Para Butler, a necessidade que os feminismos têm de configurarem um sujeito de ação — no caso, as mulheres —, releva da sua inscrição num modelo moderno de pensar ainda dependente da ideia cartesiana de um cogito substante, autónomo, unificado e coerente e capaz de protagonizar as suas ações. Butler demarca-se dessa perspetiva, desconstruindo a ideia da possibilidade de um sujeito uno e coerente e também de uma autonomia pensada como uma anterioridade cultural/temporal/linguística. Ela não abandona totalmente a noção de sujeito, até porque a performance que preconiza supõe um agente, mas subtrai-a às perspectivas de unidade, estabilidade e fixidez, mostrando-a como uma entidade que é mais um efeito da ação do que a sua causa, uma vez que se constrói pelos atos que realiza. Neste contexto, salienta que os feminismos se deveriam afastar do que designa como «humanismos», porque eles assentam numa ideia de um sujeito universal e abstrato que, como uma ilha, é totalmente descontextualizado do feixe de relações em que se organiza.

A ideia de «sujeito-mulheres» como entidade de reivindicação de direitos, por um lado, decorre do binarismo masculino/feminino, da sua diferenciação consistente e, portanto, assenta e promove a ideia da naturalidade da heterossexualidade; por outro lado, é, em si mesma, redutora e discriminadora, para além de totalmente descontextualizada, ignorando outras determinações importantes para a ação política, como a classe ou a etnia. No contexto destas perspetivas, Butler afirma:

O que proponho é que a universalidade e unidade presumidas do sujeito do feminismo sejam, com efeito, comprometidas pelos constrangimentos do discurso representativo em que operam. De facto, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, entendido como uma categoria uniforme de mulheres, gera inevitavelmente inúmeras recusas de aceitação da categoria. Esses domínios de exclusão trazem à tona as consequências coercivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção teve por fundamento intuitos emancipadores. (Butler 2017, 59)

No quadro desta posição, a proposta epistemológica de Butler configura uma deslocação da problemática feminista, defendendo que, em lugar de reivindicar uma identidade feminina, a ação política feminista deverá antes investigar o modo como as identidades são construídas, na medida em que, reivindicar um sujeito-mulheres corresponde à reprodução e à manutenção de uma situação que foi naturalizada. Se a ação feminista pretende destruir as hierarquias que têm dominado as mulheres, deve deslocar o seu alvo crítico do patriarcado e dirigi-lo para a desocultação dos processos de construção das identidades, para a formação de categorias como «género» e «sexo» ou para a constituição discursiva dos corpos e do binarismo sexual. Por outras palavras, deve desenvolver uma genealogia crítica dos mecanismos do poder.

 

c) O nó górdio: género

O tema que atravessa e unifica Gender Trouble é a problemática da identidade,[3] aqui tomada como identidade de género, sendo que «identidade» e «género» correspondem, exatamente, àquilo  que Butler quer problematizar, ou seja, agitar, desinstalar certezas e obrigar a um questionamento de dados adquiridos.

Tendo sido «género» o recurso categorial que deu aos feminismos um instrumento argumentativo para defender a legitimidade dos direitos das mulheres, criando toda uma tradição cultural e configurando a sua ação política, é natural que Butler queira desfazer esse nó problemático.

E para poder ser esse recurso, «género» foi pensado como diferente e separado de sexo. Na senda de Beauvoir e da sua invenção discursiva on ne naît pas femme: on le devient, sexo e género foram concebidos e trabalhados em regiões separadas: o biológico e o cultural.

Nesta obra, como em outras, nomeadamente, em «Variations on Sex and Gender. Beauvoir, Wittig and Foucault», Judith Butler (1987) confronta-se com o pensamento de Beauvoir. E, embora denunciando que a questão da identidade é, em si mesma, uma ficção que serve objetivos vários de poder, a exploração que faz da posição da autora francesa deixa ver a originalidade filosófica da perspetiva beauvoiriana, embora, no meu entender, Gender Trouble coloque Beauvoir excessivamente em continuidade com Sartre. Na última parte da análise que faz da posição de Beauvoir, em Variations, Butler diz o seguinte: 

Com efeito, entender que a mulher existe na ordem metafísica do ser é entendê-la como o que já está realizado, sendo auto-idêntica, estática, mas concebê-la na ordem metafísica do chegar a ser é inventar a possibilidade para a sua experiência, incluindo a possibilidade de não chegar a ser nunca uma «mulher» substantiva, auto-idêntica. (Butler 2008, 169[4])

Este aspeto é muito relevante para a teorização de Butler porque a posição de Beauvoir resgata a ideia de «ser mulher» de uma perspetiva ontológica estática, de completude e mesmidade. Embora questionando o tema do género como escolha, Butler salienta que a perspetiva de Beauvoir não implica que a figura de «género mulher» seja, necessariamente, habitada por um corpo do sexo feminino. Para Butler, o assumir da invenção discursiva de Simone de Beauvoir pelos movimentos feministas acabou por substituir a biologia como destino por um destino cultural que parte do sexo como referência.

Duas coisas me parecem legítimas de identificar na argumentação de Butler. Por um lado, sexo e género são indiscerníveis, porque o sexo é, desde sempre, género no quadro das dinâmicas culturais. O sexo não tem uma identidade natural, biológica, sobre a qual se inscreve um género. Neste sentido, o género subsume o sexo. O corpo, diz Butler, «não é um “ser”, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada» (Butler 2017, 275). Por outro lado, por isso, perguntar pela articulação sexo-género, em certo sentido, é inconsistente e carece de fundamento. O género nunca é expressão. Tal como o corpo, o género não é uma entidade estável: é uma «temporalidade social constituída» (Butler 2017, 278). A perceção de estabilidade e de relação expressiva entre sexo e género é apenas uma ilusão que decorre da repetição. 

[S]e os atributos de género não forem expressivos mas performativos, […] então não há nenhuma identidade pré-existente por que se possa medir um acto ou atributo; não haveria actos de género verdadeiros nem falsos, reais ou distorcidos, e demonstrar-se-ia a postulação de uma identidade de género verdadeira como uma ficção reguladora. Que essa realidade do género se crie mediante performances sociais sustentadas tem como consequência que as próprias noções de um sexo essencial e uma masculinidade ou feminilidade verdadeira ou constante também se formem como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do género e as possibilidades performativas de proliferar as configurações de género fora dos quadros restritivos da dominação masculinista e da heterossexualidade obrigatória. (Butler 2017, 201) 

Este conjunto de afirmações com que termina o capítulo 3 de Gender Trouble é absolutamente decisivo, ao mesmo tempo, para a proposta pessoal de Butler e para aquilo que descreveu como uma «interpretação errónea» do que queria dizer.

Está sobretudo em causa, por um lado, a defesa das ideias da performatividade do género e das suas múltiplas possibilidades organizativas, defesa essa que corresponde, por outro lado, à recusa das ideias de haver géneros mais verdadeiros que outros ou de haver uma identidade estável ou preexistente ao processo repetitivo que a suporta. Esta perspetiva, articulada com a afirmação de que o corpo não é um ser, mas uma superfície regulada politicamente, está, certamente, na base das leituras que, usando Butler como referência, ignoram a materialidade do corpo/sexo, tomando o género como totalmente livre. Nesse quadro, a publicação de Bodies That Matter, em 1996, faz-se também para contestar as leituras de Gender Trouble que defendem que o sexo não existe, que só há género e que este, sendo performativo, é totalmente livre. Por isso, em Bodies That Matter, Butler considerou importante voltar à categoria de sexo e à materialidade do corpo. Diz ela:

Eu penso que passei demasiado rapidamente pela categoria de sexo em Gender Trouble. Em Bodies That Matter esforcei-me por retomar a análise e sublinhar o lugar do constrangimento na própria produção do sexo. (Butler 2005, 15)

No contexto daquilo a que se pode chamar a sua intervenção na compreensão de Gender Trouble, sobretudo, nesta ideia da materialidade do corpo, da sua constituição e do constrangimento que ela determina, Butler insistirá, em Bodies That Matter, na questão da performatividade. No quadro desta temática, distinguirá dois aspetos. O primeiro é o da diferenciação entre performatividade e performance, que, do seu ponto de vista, muitas leituras de Gender Trouble identificaram. A performatividade é a instância mais radical, aquela da ordem do discurso e que pretende pôr em evidência a capacidade da linguagem para produzir aquilo que nomeia. Diz Butler:

A performatividade é o veículo pelo qual os efeitos ontológicos são possibilitados. A performatividade é o modo discursivo pelo qual os efeitos são criados ou algo como isso. (Butler 2005, 18)

Uma das dimensões da performatividade da linguagem manifesta-se no poder das normas culturais na constituição da materialidade dos corpos, como desenvolverá em Bodies That Matter. Por sua vez, a performance supõe um agente e está também ligada às normas instituídas que são, como ela insiste, o seu limite e a sua condição. As normas culturais condicionam o sentido da performance e, portanto, a sua receção. O sentido da performance não é estabelecido pelo agente dela, pela sua possível intenção, mas pelo quadro normativo-cultural onde se desenrola (Butler 2005, 123-126). No espaço da reflexividade que pode designar as entrevistas que Butler dá — porque nelas retoma criticamente os seus textos e expõe com muita clareza as suas posições —, fica muito claro o papel estruturante das normas no modo como ela pensa a determinação cultural e, ao mesmo tempo, a potência de agir, configurando a possibilidade e a oportunidade da intervenção política.

 

3. Violência e luto: Precarious Life e Frames of War

No início do século XXI, Butler publica duas obras que podem ser lidas como uma intervenção política direta: Precarious Life (2004) e Frames of War (2009) que, no meu entender, sob a capa da guerra, levam a cabo uma reflexão ética e um questionamento profundo sobre o que é, afinal, um ser humano, além de defender a urgência de um espaço público democrático, onde caibam o dissenso e a crítica. Numa entrevista de 2003, sobre a paz como resistência, perante a surpresa de quem a entrevistava, Butler responde o seguinte:

Eu gosto sempre de falar de género […]. Mas parece-me que com o desencadeamento da guerra — que começou apenas 72 horas antes do início deste debate — impõem-se questões sobre a maneira como os seres humanos caraterizam o que fazem, em particular, sobre a maneira como fazem face à violência que eles infligem ou de que são vítimas, mas também sobre a sua inexplicável desrealização pelos meios de comunicação. (Butler 2005, 61-62) 

Pode-se dizer que essas questões representam o programa destas duas obras, propondo-se uma formulação ética que faça frente à violência e defendendo uma perspetiva sobre a vulnerabilidade constitutiva do ser humano e a sua exposição à violência.

 

a) Ética da não violência e precariedade da vida

Do conjunto de artigos que compõem Precarious Life, um deles tem o mesmo título da obra e, nele, Butler desenvolve um diálogo com Levinas no sentido de, segundo afirma, desenhar um quadro para a constituição de uma ética judia da não violência, para a poder relacionar com questões éticas contemporâneas. O processo de diálogo e de apropriação pessoal do pensamento de Levinas faz-se, naturalmente, pela análise da problemática do «rosto», explorando três linhas de reflexão: (1) a configuração do sentido e contexto da noção de «obrigação moral», (2) a análise do dilema implicado na ideia de «angústia ética» e (3) a articulação entre representação e humanização/desumanização.

A primeira linha reflexiva, em total continuidade com os trabalhos de Butler, quer instituir que a ética não é uma tarefa individual nem determinada por uma vontade legisladora a partir de qualquer subjetividade soberana na sua reflexividade. A ética configura-se no espaço aberto pela alteridade e pela interpelação que me vem de fora de mim. O sentido da «obrigação moral», como imperativo ético, radica na prioridade que o outro institui através do impacto da interpelação que me faz, interpelação essa totalmente inesperada, que não se pode evitar, nem prever. Nas suas palavras:

Com efeito, esta conceção do que é moralmente obrigatório não é algo que eu me imponho; não provém da minha autonomia ou da minha reflexividade. Vem até mim de um outro lugar, de improviso, inesperadamente e de forma espontânea. De facto, tende a arruinar os meus planos, e, que os meus planos sejam arruinados pode ser o sinal de que algo é moralmente obrigatório para mim. (Butler 2006, 165[5])

É, como se disse, através do tema levinassiano de «rosto» que a reflexão se vai desenvolver. «Rosto» que não tem a ver com uma concretude empírica específica, ou seja, que não é a cara de ninguém, mas um sinal da precariedade da vida humana. O «rosto», esclarece Butler, funciona como catacrese. Apropriando-se das palavras de Levinas, Butler diz:

[...] o «rosto» descreve as costas, o pescoço estendido, as omoplatas esticadas como «molas». E a seguir diz-se que estas partes do corpo choram, soluçam e gritam como se fossem um rosto, ou melhor, um rosto com uma boca, uma garganta, ou, inclusivamente, só uma boca ou uma garganta, de onde surge uma vocalização que não pode fixar-se em palavras. O rosto pode estar nas costas e na nuca, mas não é exatamente um rosto. O som que provém do rosto ou o atravessa é de agonia, de sofrimento. Podemos, então, observar que o «rosto» parece definir uma série de deslocações pelo que se representa como umas costas que, por sua vez, se representam como uma cena de vocalização agonizante. (Butler 2006, 168) 

Por isso, a injunção de «rosto» na expressividade linguística se fará por uma ordem: «não matarás!», pondo em evidência a complexidade ontológica de «rosto» que, como salienta, igualmente, Butler, Levinas separa sempre da ordem do ser, caraterizando «rosto» em enunciados sem verbo e, fundamentalmente, sem cópula.

A interpretação de Levinas que Butler leva a cabo, pela exploração do tema da precariedade, é muito interessante e conduz diretamente à questão da «angústia ética». Embora explicite que não é claro porque é que a posição de Levinas sobre a ideia de que a resposta mais imediata à precariedade do outro seja o desejo de matar, é com essa ideia que ela vai continuar a sua reflexão e configurar o tema da «angústia ética» como o conflito dilemático entre o temor pela própria vida e o temor de ter de matar:

Há temor pela própria sobrevivência e angústia por ferir o Outro, e estes dois impulsos estão em guerra como irmãos que se degladiam. Contudo, estão em guerra para não estar em guerra e isto parece ser um ponto fundamental. Pois a não violência que Levinas parece promover não provém de um lugar pacífico, mas sim de uma tensão constante entre o temor de sofrer violência e o temor de a infligir. (Butler 2006, 172)

Por mais apocalíptico que este quadro pareça, ele decorre, contudo, de duas determinações importantes: por um lado, um realismo sobre a complexidade da condição humana afastada de qualquer angelismo, e, por outro, o contexto de guerra em que a reflexão de Butler se desenvolve. O tema da precariedade conduz diretamente à questão da possível ou impossível ligação entre representação e humanização, que terá um desenvolvimento mais sistemático na obra Frames of War, que a própria autora considera a continuação de Precarious Life. Através do recurso a representações de rostos específicos que circularam nos Estados Unidos no contexto das guerras contra o Afeganistão e contra o Iraque, Butler vai argumentar que as representações de rostos individualizados podem ocultar completamente a realidade da precariedade da vida e servir para assinalar que vidas humanas são dignas e têm valor e que vidas não são dignas nem têm valor, marcando que vidas podem ser choradas e que vidas não têm esse direito.

Butler analisa dois tipos de «molduras» divulgadas pela imprensa americana: (1) os rostos de Osama Bin Laden e de Saddam Hussein e (2) os rostos das mulheres afegãs libertas do véu e da burka. Em ambos os casos se trata de personificações, ou de «marcos de guerra», ou seja, de representações do humano que, por um lado, o escamoteiam na sua constitutiva precariedade e que, por outro, ao mesmo tempo, são suportadas por esquemas normativos de inteligibilidade do que é ou deve ser o ser humano para que a sua morte possa vir a ser chorada publicamente.

Os rostos de Bin Laden e de Hussein personificam o mal, sob a forma do terror ou da tirania. Neste caso, o que é o paradigma do humano é o que não está lá. O que se mostra é uma deformidade, aquilo que é, eventualmente, lícito abater. No caso das raparigas afegãs, elas personificam, por um lado, o que deve ser a liberdade e a autonomia das mulheres, e, por outro, exaltam a vitória do exército americano na sua função de libertador, legitimando, assim, também a guerra, ao mesmo tempo que escamoteiam, completamente, o horror e a destruição que ela comporta. Os rostos das raparigas afegãs exibindo a sua libertação escondem a dor e as perdas decorrentes da guerra. Há, portanto, na sua exibição, uma desrealização que consiste em obliterar o sofrimento da guerra e a precariedade da vida. Neste contexto, estas representações exercem uma dupla violência: pelo que representam e pelo que ocultam.

No desenvolvimento da sua argumentação, Butler vai, de novo, explorar a ambiguidade do estatuto de «rosto» no pensamento de Levinas, afirmando o caráter paradoxal da representatividade do humano que não se identifica nem com o representado nem com o irrepresentável. O valor da representação do humano está, pois, exatamente, em exibir a não-linearidade entre representação e humanidade, devendo, antes, dar a ver a ambiguidade da relação. Mas os esquemas normativos de inteligibilidade do que é humano podem originar a total invisibilidade de pessoas e populações não consideradas como pertencendo à humanidade, negando-lhes o acesso à informação pública, tanto em vida como depois da morte, recusando-lhes assim a legitimidade de serem choradas e, por isso, subtraindo-as à possibilidade de um luto público.

Toda esta temática da precariedade da vida e da sua desigual distribuição geográfica e social, bem como do direito de todas as vítimas a serem choradas e de poderem ter direito ao luto público, integrando a memória coletiva das sociedades, vai ser retomada e desenvolvida por Butler em Frames of War, em que, como já foi dito, a autora considera que

[d]e certa forma, o livro é uma continuação de Precarious Life, […], especialmente quando sugere que uma vida específica não pode ser considerada lesada ou perdida se não for primeiro considerada viva. Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras. (Butler 2015, 12[6])

 

b) O luto público como discriminação e campo de batalha do poder

O centro da reflexão de Butler sobre o pensamento do humano é a ideia de vulnerabilidade. É a partir dela que Butler vai configurar uma perspetiva que possa servir a um entendimento progressista de uma vida coletiva que procure caminhos de convivência mais pacífica, no quadro da qual todas as vidas humanas possam ser conceptualizadas e representadas enquanto tal, humanas. Prosseguindo, de alguma maneira, as ideias do capítulo, «Violence, Mourning, Politics», de Precarious Life (Butler 2006, 45ss), a introdução de Frames of War expõe o quadro conceptual de suporte a uma intervenção no espaço público, por um lado, em defesa do dissenso democrático e, por outro, em prol de uma ideia de igualdade e de direitos que supere os quadros do individualismo liberal. A sua argumentação agrupa dois feixes conceptuais: (1) apreensão, inteligibilidade e reconhecimento e (2) marcos/enquadramentos representacionais, seletividade/exclusão e poder discriminador.

O que sustenta estas duas obras de Butler é a interrogação: o que faz com que uma vida seja apreendida como vida humana?, interrogação essa, por sua vez, ligada a outra: o que faz com que uma vida valha a pena e seja digna de ser chorada, ou seja, que a sua morte seja sentida como uma perda e seja passível de luto?. Nesse quadro, vai desenvolver o que chama uma ontologia social. É ontologia porque é um questionamento sobre o «ser» do corpo, mas não se vai ater a uma descrição formal das supostas estruturas fundamentais desse «ser» e sim olhá-lo no contexto das organizações sociais e políticas que habita, sendo, por isso,  social. Butler esclarece as razões da sua posição:

Não é possível definir primeiro a ontologia do corpo e depois as significações sociais que o corpo assume. Antes, ser um corpo é estar exposto a uma modelagem e a uma forma social, e isso é o que faz da ontologia do corpo uma ontologia social. Por outras palavras, o corpo está exposto a forças articuladas social e politicamente, bem como a exigências de sociabilidade […] que tornam a subsistência e a prosperidade do corpo possíveis. (Butler 2015, 14-15)

Esta ontologia social vai ocupar-se, então, da desigualdade humana dos humanos e mostrar que nem a morte os igualiza, porque os quadros normativos que sustentam as conceções antropológicas que partilhamos pensam uma humanidade constituída por seres que, mesmo teoricamente, não partilham o mesmo grau de humanidade. A estrutura fenomenológica da vida corporal, assim analisada, mostra-se com duas determinações: a finitude e a precariedade. A finitude ligada à dimensão mortal da vida humana. A precariedade ligada ao seu caráter exposto às condições do seu existir que não dependem apenas de um impulso interno para viver. São instâncias diferentes, sendo que a precariedade é o que torna a vida humana estruturalmente vulnerável e sujeita a todo o tipo de discriminação. Compreender esta perspetiva, supõe ter em atenção um conjunto de particularidades, nomeadamente, as seguintes[7]:

(1) que para chegarmos a ser um indivíduo necessitamos de ter sido alvo de cuidados, de ter sido inicialmente acolhid@s e de radicalmente dependermos desse acolhimento inicial.

(2) que somos seres fisicamente dependentes, expostos a algo exterior a nós que, além de remeter para a constitutiva interdependência humana, também expressa que o corpo de cada indivíduo, tendo estado originalmente ligado às suas condições de emergência, tem uma dimensão pública, sendo sobre essa situação que posso reconstruir o meu corpo, como corpo próprio.

(3) que a individuação é um processo e não um pressuposto e, por isso, não só não está nunca garantida como se realizará num quadro em que o meu eu corporal transportará sempre consigo dimensões extáticas decorrentes das suas condições de emergência e de desenvolvimento e, consequentemente, está marcado por uma vulnerabilidade constitutiva.

Ou seja, a vida humana é intrinsecamente precária porque é marcada por um desamparo e uma necessidade originais que a deixam exposta a qualquer tipo de devastação, sendo a violência, exatamente, a exploração deste traço:

[…] a violência consiste sempre na exploração deste laço original, desta forma original em que existimos, como corpo, fora de nós e para os outros. (Butler 2006, 54)

Portanto, sintetizando, sem significação social a vida humana não persiste. Contudo, embora toda a vida humana seja precária, há uma diferente distribuição geopolítica de tal precariedade da vida humana fazendo com que, em algumas latitudes ou situações, a precariedade passe de constituinte existencial a condição constante da vida e do viver de alguns grupos humanos que, por isso, podem ser definidos como vidas precárias, vidas essas que não chegam a ter valor humano, e que, por isso, podem não chegar a figurar na lista das mortes assinaladas como vítimas de que valha a pena fazer memória. Nas palavras de Butler:

São vidas em relação às quais não faz sentido o luto porque já estavam perdidas para sempre ou porque, melhor ainda, nunca «chegaram a ser», e devem ser eliminadas a partir do momento em que parecem viver obstinadamente nesse estado moribundo. (Butler 2006, 60) 

É a este nível que se configura a importância dos enquadramentos ou marcos, nomeadamente, os de guerra, porque, para além de sofrerem das limitações existentes entre representação e humanização, como se viu antes, eles correspondem aos mecanismos de que as forças políticas se servem para controlar a esfera pública, decidindo o que pode ou não aparecer nela, o que se pode ou não tomar como realidade ou, em última instância, quais são as vidas que valem como vidas e cuja morte se pode chorar.

Em Frames of War, Butler chama a atenção para o campo semântico de to be framed, que significa, simultaneamente, emoldurar um quadro e incriminar alguém quer seja culpado ou não. Nesse sentido, o enquadramento da realidade e das pessoas não é, nunca, uma representação linear e meramente descritiva. Pelo contrário, é uma operação de poder que quer delimitar o que deve aparecer publicamente e em que condições, fazendo-o de acordo com esquemas normativos de inteligibilidade. Diz Butler:

Os «enquadramentos» que atuam para diferenciar as vidas que podemos apreender daquelas que não podemos (ou que produzem vidas através de um continuum de vida) não só organizam a experiência visual como também geram ontologias específicas do sujeito. (Butler 2015, 15)

Ou seja, as operações de enquadramento condicionam a apreensão do que é uma vida, e, por essa via, o reconhecimento de quem vale ou não vale a pena ser chorado, de quem é «enquadrado» para ser apreendido em «estado moribundo». A este processo Butler chama «desrealização» porque transforma o humano em espectro. O processo de desrealização do humano inicia-se, antes de tudo, através do discurso que, a partir de marcos dominantes do que é humano, vai desumanizando quem não encaixa dentro do marco normalizador. Cristalizado o discurso e sedimentada na cultura a padronização do que é humano e daquilo que, por motivos vários, não encaixa nele, estão criadas as condições para a sua exposição absoluta a qualquer forma de violência, nomeadamente, a da destruição material. Nesse sentido, pode-se dizer que o processo de desrealização do humano se concretiza no quadro de diferentes níveis e modos de violência:

(1) uma forma de violência discursiva e normalizadora assente no não-reconhecimento da humanidade nas suas diferentes expressões.

(2) uma segunda, de violência material direta, pela destruição efetiva, por via militar ou natural.

(3) uma última, pelo apagamento na memória cultural das perdas resultantes de qualquer tipo de destruição efetiva, não permitindo o seu acesso a um luto público e a serem incorporadas na memória coletiva.

Esta dimensão de luto público como discriminação e campo de batalha do poder é uma linha fundamental de compreensão das ideias butlerianas, quer ao nível da ética, quer ao nível da política, sendo um princípio hermenêutico importante para ler o seu estudo sobre a Antígona de Sófocles, que publicou em 2000, sob o título Antigone’s Claim, kinship between Life and Death. Nesta obra, explorando, embora, toda a perturbação que a tragédia pode lançar quer na problemática da família tradicionalmente concebida, quer na própria problemática dos géneros e nos seus eventuais papéis, Butler enfrenta-se, evidentemente, com aquele que é o nó górdio da trama trágica: a proibição de enterrar Polinices e o ato de Antígona de transgredir a ordem, ou seja, de intervir sobre as normas. Para Butler, todas as vidas merecem ser choradas e, no âmbito da sua ontologia social, chorar uma vida perdida tem de ter uma dimensão pública e não pode ficar confinada a nenhum reduto pessoal ou familiar. É neste quadro que penso que se pode interpretar a reivindicação de Antígona.

 

4. Balanço Conclusivo

O percurso realizado neste texto assentou num diálogo direto com algumas obras essenciais de Judith Butler, diálogo esse ajudado pelos conteúdos de algumas entrevistas dadas por ela e onde, como disse, ela se repensa e explicita. Procurei dar figura a temas determinantes do pensamento butleriano, tendo desenvolvido mais uns do que outros. Contudo, tenho consciência da incompletude da reflexão que aqui se apresenta, sobretudo, no que diz respeito a três temáticas: a da linguagem, a da identidade e a da norma. Cada uma delas constitui um amplo campo de investigação dentro da obra de Butler e foram aqui apenas afloradas.

Por outro lado, sendo o objetivo fundamental do texto explicitar alguns temas do pensamento de Butler, configurando-os num quadro de uma análise racional para os subtrair à disputa pública — as mais das vezes, puramente ideológica — não foi desenvolvida uma perspetiva crítica ao próprio pensamento butleriano.

Finalmente, gostava de salientar que este soletrar de Butler me permitiu ter uma perceção muito interessante da autora, com destaque para a coerência do seu percurso, mesmo quando há evolução nas suas posições (como é o caso, por exemplo, da problemática do universal ou da legitimidade do uso de «mulher(es)» em determinadas situações) mas, sobretudo, para o seu profundo compromisso político e social com a democracia e com a igualdade que nunca deixa de ter como horizonte da sua teorização.

 

[1] A paginação aqui indicada refere-se à edição portuguesa da obra de Butler (Butler 2017).

[2] A designação «heterossexualidade compulsória» deriva do título do artigo de Adrienne Rich, «Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence».

[3] O tema da identidade também é um alicerce da obra de Butler, Giving Account of Oneself (2005). Aí a problemática da identidade aparece ligada à do reconhecimento e à da ética como possibilidade de violência. Nessa obra, procura-se igualmente desconstruir a possibilidade de uma unidade e coerência no designado si mesmo, bem como, afastar a hipótese da transparência do eu e de que ele se deixe dizer numa unidade narrativa.

[4] A referência de paginação é da edição portuguesa (Butler 2008).

[5] A referência de paginação é da edição em castelhano (Butler 2006).

[6] A referência da paginação diz respeito à edição brasileira (Butler 2015).

[7] Retomo aqui parte de uma crónica publicada em 2020, a 10 de Maio, no jornal online Sete Margens, com o título «“Vidas precárias” ou os Outros. Humanos?»



Referências Bibliográficas

Birkenstein, Cathy. «Reconsiderations: We Got the Wrong Gal: Rethinking the “Bad” Academic Writing of Judith Butler». College English, 72 (3), 2010: 269-283. JSTOR, https://www.jstor.org/stable/25653028. Acedido a 23 de setembro de 2022.

Butler, Judith. «Further Reflections on Conversations of Our Time». Diacritics 27 (1), 1997: 13-15.

Butler, Judith. «Variations on Sex and Gender: Beauvoir, Witting, and Foucault». In Seyla Benhabib and Drucilla Cornell (eds.), Feminism as Critique: Essays on the Politics of Gender in Late-Capitalist Society, Londres: Polity Press, 1987: 128-142. Versão portuguesa: Aavv. Variações sobre sexo e género. Lisboa: Livros Horizonte, 2008, pp. 154-172.

Butler, Judith. Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity (1990). Versão portuguesa: Problemas de Género: Feminismo e subversão da identidade. Trad. Nuno Quintas, Lisboa: Orfeu Negro, 2017.

Butler, Judith. Bodies that Matter. On the Discursive Limits of sex. Nova Iorque: Routledge, 1993.

Butler, Judith. Antigone’s Claim, Kinship between Life and Death. Nova Iorque: Columbia University Press, 2000.

Butler, Judith. Precarious Life. The Powers of Mourning and Violence (2004). Versão castelhana: Vida Precaria: el poder del duelo y la violencia. Trad. Fermín Rodríguez. Buenos Aires: Paidós, 2006.

Butler, Judith. Giving an Account of Oneself. New York: Fordham University Press, 2005.

Butler, Judith. Humain, inhumain. Le travail critique des normes. Entretiens. Paris: Éditions Amesterdam, 2005.

Butler, Judith. Frames of War: When is Life Grievable? (2009).  Versão Brasileira: Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?. Trad. de Sérgio Tadeu, Niemeyer Limarão e Arnaldo M. Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 

Henriques, Fernanda. «“Vidas precárias” ou os Outros. Humanos?». Sete Margens, 10 de maio de 2022. Acessível online: https://setemargens.com/vidas-precarias-ou-os-outros-humanos/

Henriques, Fernanda. «A modernidade normativa e universalista de Martha Nussbaum». In Martha Nussbaum. Uma filosofia comprometida com a cidade. Lisboa: Documenta, 2022: 81-126.

Rich, Adrienne. «Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence». Signs 5 (4), 1980: 631-660.

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