Há certos estrondos, estampidos, explosões ou detonações que, ao invés de representarem o natural desfecho de uma história, podem significar precisamente o seu começo. Um bom exemplo disso é o que acontece no início de O Sangue (1989), filme de Pedro Costa. Nesses primeiros segundos, após uma «longa imagem negríssima», como diz João Bénard da Costa, o espectador é confrontado com um gesto violento, investido de uma forte carga simbólica: um pai dá uma bofetada ao filho e, de seguida, abandona-o, a ele e ao irmão mais novo. Bénard da Costa capta a violência desta cena ao descrevê-la com precisão: após a «longa imagem negríssima», surge «esse plano claro de Vicente [o filho mais velho], onde Vicente nos olha pela primeira vez, ou olha o pai pela última vez.» Sem nada que aponte nesse sentido, «uma mão entra no plano, que já não é o mesmo plano, e dá-nos a primeira bofetada violenta do filme, tão violenta que, como Vicente, quase fechamos os olhos e viramos a cara. Não é um gesto de fuga nem de defesa, apenas um reflexo, um instinto, coisas diferentes, eu sei, mas que nesse plano se fundem.»[1]

O filme desenrolar-se-á no sentido não da submissão ou retraimento do filho, mas da morte do pai e da subsequente emancipação moral, emocional e intelectual do jovem. Retomo a descrição de Bénard da Costa: «depois, o plano do pai, que outro nome não tem senão o nome de pai. Uma árvore mais alto ergue-se lá no fundo. É o pai, já disse. Depois, de novo Vicente a dizer […]: “Faça de mim o que quiser.” Submissão, jamais. É a primeira insurreição do filme. Até Vicente voltar para carrinha e o pai recusar o convite para essa viagem, para o regresso ao lar. “O que é que eu digo ao Nino?” Ainda do Nino nada sabemos nem nada vimos. “Diz-lhe que morri,” responde o pai, virando-lhe as costas, a ele, e avançando de frente para nós. Mesmo quando o pai morrer, Vicente nunca dirá ao irmão que o pai morreu. É o segredo.» Este segredo será o motivo central e o elemento-chave de uma crescente cumplicidade entre os dois e de uma segunda educação partilhada.

Este é o primeiro estrondo ou embate, que servirá de prelúdio para os vários momentos transfiguradores de Vicente, que se fará homem apenas e só após a morte do pai. A bofetada aqui descrita parece deixar romper e entrever algo que até então não existia. A segunda descrição que proponho é de Bruce Springsteen, quando este discursa a propósito do ingresso de Bob Dylan no Rock and Roll Hall of Fame, em 1988. No seu discurso, Springsteen conta o seguinte: «Da primeira vez que ouvi Bob Dylan, encontrava-me no carro com a minha mãe e estávamos a ouvir a WMCA, acho, e então surgiu aquela tarola que soava como se alguém tivesse aberto uma porta da nossa mente ao pontapé, de “Like a Rolling Stone.”»[2] A descrição é conhecida, não tanto quanto o som brusco da tarola que dá início a uma das mais famosas canções da história da música popular norte-americana e do próprio Dylan. A bofetada no segmento inicial do filme de Pedro Costa e a brutalidade nela investida parecem ficar a ecoar nos ouvidos do espectador ao longo do filme, servindo de contraponto e justificação (quase um caso de justiça poética) para cada gesto subversivo de Vicente na busca de uma identidade, na sua tentativa de inscrever a individualidade da sua voz no tecido da sociedade em que se insere, uma forma de vida com a sua assinatura. Do mesmo modo, a tarola que se ouve no início de «Like a Rolling Stone» parece preparar-nos para a violência catártica da performance de Dylan ao longo dos seis minutos e treze segundos desta canção. Springsteen relembra o som de uma tarola que soava como se alguém tivesse aberto a porta para a nossa mente ao pontapé. A violência está patente nas descrições de Bénard da Costa e de Springsteen. De certo modo, a bofetada e o pontapé parecem ecoar ou repercutir-se entre si, e, contudo, estes sons não representam um fim, mas o princípio de algo. Se os colocarmos em diálogo, teremos como que duas folhas em branco, contendo múltiplas possibilidades expressivas ou discursivas que, antes do seu advento, simplesmente não existiam. Trata-se igualmente de dois casos que prometem uma forte autodeterminação, reduzida a um mínimo de interferências exteriores na liberdade concomitante ao seu desenvolvimento. Retomarei este aspecto a seguir.

A forma como Vicente reage à bofetada do pai «não é um gesto de fuga nem de defesa, apenas um reflexo, um instinto, coisas diferentes, eu sei, mas que nesse plano se fundem», diz-nos Bénard da Costa. Esta fusão é importante: ao instinto podem ser associadas as noções de ímpeto e de convicção pessoal, veiculadoras de consecutivas rejeições implicadas no processo de escolha e, portanto, da já referida autodeterminação. Não existe fuga nem defesa, e, mesmo quando, após a bofetada, Vicente diz ao pai «Faça de mim o que quiser», estas palavras operam mais num plano de insurreição do que o seu contrário. Não aceitar a forma de vida que o pai lhe impõe, ou mesmo rejeitar uma assimilação e digestão da coerção que lhe é imposta, atribui às palavras aparentemente submissas de Vicente um avesso insurrecto. «Submissão, jamais. É a primeira insurreição do filme»,  como Bénard da Costa sublinha, e é isso mesmo que se verificará ao longo do filme. Tomando emprestadas as palavras de Isaiah Berlin, não há aqui uma retirada ou um recuar para a «cidadela interior» do sujeito em causa, no sentido em que os estóicos ou os sábios budistas nos ensinavam a fazer. Berlin escreve: «Desejo ser senhor do meu reino, mas as minhas fronteiras são extensas e pouco seguras, por isso contraio-as de modo a reduzir ou eliminar a área vulnerável.»[3] Ou seja, adoptamos uma disciplina interior que nos ensina a não desejar aquilo que por forças exteriores passámos a considerar inalcançável. Porém, a insurreição de Vicente, levando a vida que quer («agora, podemos fazer o que quisermos», diz ele ingenuamente ao irmão mais novo), motivada por um segredo que sustenta a sua relação com o irmão (segredo esse que é, por assim dizer, a assinatura da forma de vida que engendrou para ambos), é mais uma declaração de interesses, uma primeira tentativa de reconhecimento da existência de ambos aos olhos dos outros, do que um bater em retirada ou uma tentativa de silenciar o mundo à sua volta. Ocorre aqui não uma redução de fronteiras, mas uma expansão das mesmas, e a área vulnerável a que Berlin se refere fica inteiramente exposta a toda a espécie de sortes e acasos. Os irmãos preparam-se para a aventura da escolha. Sucede o mesmo, parece-me, na descrição de Bruce Springsteen ao relatar a sua experiência da primeira vez que escutou «Like a Rolling Stone». A tarola que se ouve no início da canção não só abre uma porta da mente, mas escancara-a com um pontapé. Mais uma vez, ocorre um movimento de dilatação ou expansão, e não o contrário.

Dificilmente associaríamos as noções de fuga, defesa ou submissão à canção de Bob Dylan. Antes, a pancada ou estrondo da tarola promete o início da insurreição congénita à voz reinventada de quem conta uma história pela primeira vez, investido da sua autodeterminação e convicção pessoal («Once upon a time…»). Se a liberdade negativa, nos termos de Isaiah Berlin, é a liberdade como não-interferência ou o domínio, maior ou menor, em que nos achamos libertos de interferências exteriores à nossa vontade, existe uma forma de atribuir uma conotação «positiva» a certas regras que constrangem uma liberdade total, nomeadamente assimilando-as e tornando-as necessárias para mim. Escreve Berlin: «sou livre se, e apenas se, planear a minha vida em conformidade com a minha própria vontade; os planos implicam regras; uma regra não me oprime ou escraviza se eu a impuser a mim mesmo de forma consciente, ou se a aceitar livremente, tendo-a compreendido, tenha essa regra sido inventada por mim ou por outros […].»[4] A necessidade de nos reconhecermos como agentes autónomos e autodeterminados é um elemento fundamental da forma como Berlin define a liberdade positiva. Esta espécie de liberdade, porém, acarreta os seus perigos, e o filósofo deixa claro que privilegia o género de pluralismo de valores associado à liberdade negativa, contrapondo-o à cegueira ideológica das várias estruturas autoritárias que marcaram alguns momentos históricos. O importante aqui parece-me ser a espécie de aceitação serena contida numa postura que é, por definição, autodeterminada ou fruto de uma forte convicção pessoal. Essa serenidade não se deixa desmoronar com as inquietações ou inseguranças metafísicas intrínsecas à agonia da escolha. Ou seja, a vontade não se deixa contaminar pela febre de um cepticismo radical que parece orientar uma noção de liberdade totalmente afastada de interferências exteriores (ou inteiramente coincidente com estas), por sua vez sustentada por um princípio único orientador da experiência. Diz-nos Berlin que podemos acreditar em certos princípios sem os declararmos eternamente válidos, residindo também aí o pluralismo de valores numa sociedade: «o próprio desejo de garantias de que os nossos valores sejam eternos e seguros num qualquer paraíso objectivo será talvez apenas um ansiar pelas certezas da infância ou dos valores absolutos do nosso passado primitivo.»[5] A busca pelo éden privado da infância e a celebração comunal do nosso passado primitivo serão possivelmente o resultado da nossa «incurável carência metafísica», como Berlin refere. Esta inquietação metafísica contrasta com uma curiosa fusão entre aceitação e recusa, em que mais uma vez parecemos ouvir as palavras de Vicente após a bofetada: «Faça de mim o que quiser.»

Se eu impuser uma regra a mim mesmo de forma consciente, assimilando-a, ou se a aceitar livremente, posso dizer com alguma justiça que vivo em liberdade. No caso das artes, por exemplo, posso demonstrar a mim mesmo que a existência de certas regras (na pintura ou na música, digamos) é necessária, ainda que seja com o objectivo de as subverter ou ignorar. Se considerarmos a tradição musical nos termos em que Isaiah Berlin considera a liberdade política, ou seja, como um conjunto de regras, obstruções ou interferências que nos podem coagir a actuar de determinada forma, ou que podem impor-se à nossa liberdade criativa, a assimilação livre e consciente dessa mesma tradição poderá resultar na espécie de liberdade positiva anteriormente aludida, cuja definição não se limita apenas ao domínio mais ou menos vasto da não-interferência dos outros, ou seja, a medida de liberdade possível que me é concedida sem perder de vista toda uma série de regras, leis e imposições, estendendo-se também à condição em que sou capaz de explicar as minhas decisões fazendo referência às minhas próprias ideias e propósitos.

Seria demasiado simplista dizer que a violência repentina do gesto subversivo (neste caso, a tarola que abre «Like a Rolling Stone») é uma reacção à brutalidade da coacção ou do castigo (exemplificado pela bofetada que inaugura o filme de Pedro Costa). O segundo estrondo não tem de ser a repercussão inevitável do primeiro, numa relação causa-efeito que visa a negação de toda a autoridade por meio da destruição. Pelo contrário, creio que ambos coexistem numa dimensão temporal que se prolonga, numa complexa reciprocidade e num espaço dialéctico que exige a sua simultaneidade. Para clarificar o que pretendo sugerir, recorro à forma como Greil Marcus descreve uma canção tradicional norte-americana de inícios do século passado. Curiosamente, alguns dos versos desta canção serão apropriados por Dylan em 1966, na canção «Stuck Inside of Mobile With the Memphis Blues Again». Marcus escreve: «em 1924, um advogado da Carolina do Norte, de quarenta e dois anos, Bascomb Lamar Lunsford, gravou a balada tradicional “I Wish I Was a Mole in the Ground.”» O crítico musical conta-nos que, embora transmita o desejo de alguém que quer ser uma toupeira debaixo da terra, a canção não é sobre animais, mas sim «um relato de misticismo quotidiano: um homem deixava o arado, sentava-se no chão, tirava as botas e evocava sonhos que nunca iria realizar. […] Aquilo que o cantor pretende é óbvio e, ao mesmo tempo, impossível de abranger na totalidade. Ele deseja sair daquela vida e tornar-se uma criatura insignificante e desprezada. Não quer ver nada nem ser visto por ninguém. E é tudo o que quer. […] É quase uma negação absoluta, no limite do puro niilismo, a vir dizer-nos, na sua busca do nada, que o mundo nada é e que, apesar disso, é um lugar reconfortante.» O mais importante, porém, surge quando Marcus dá a entender que esta carga negativa da canção nunca se resolve, sendo antes a sua irresolução de importância fulcral, necessária como uma força propulsora. Em primeiro lugar, é referida a «sua peculiar mistura de fatalismo e desejo, aceitação e raiva», e depois, aludindo já a outra canção, «Mystery Train», de Elvis Presley, Marcus escreve: «nessa fundadora declaração ele abria o caminho à afirmação, dissimulando o negativo sem o dissolver nunca, mantendo o negativo como princípio de tensão, de fricção, que foi sempre o que deu força ao carácter afirmativo do rock ‘n’ rol.»[6] Aqui, naturalmente, ainda não estamos no domínio do caos, do punk e da mensagem anti-sistema dos Sex Pistols, assuntos que Marcus irá abordar no seu livro, e é esta tensão entre o negativo e o positivo que torna o caso particularmente interessante, fazendo da canção de Lunsford uma contemplação tranquila da negação: não sendo ou significando nada, o mundo continua a ser, ainda assim, um lugar reconfortante.

As toupeiras gostam de estar debaixo da terra, daí se depreenda o lugar privilegiado que o narrador procura no mundo. Há dois aspectos curiosos nesta canção, por diferentes razões, sendo o primeiro relativo ao verso «If I’s a mole in the ground I’d root that mountain down» (na tradução portuguesa: «Como faz a toupeira, faria ruir aquela montanha»). Uma das interpretações deste passo poderá ser que, se fossem oferecidas a este homem as condições de existência que ele reclama para si mesmo, algo de grandioso, que extravasa a sua natureza humana, poderia acontecer. A dimensão do feito entra naturalmente em contraste com a metamorfose do homem transformado numa toupeira, um estado que o diminui do ponto de vista exterior, mas que parece engrandecê-lo no seu íntimo ou, pelo menos, alargar as suas perspectivas de futuro (por muito árido que este possa parecer). O segundo aspecto, mais trivial, embora tenha ligação com o que se dirá a seguir, é o facto de outro verso da canção conter uma expressão que surgirá no título de um álbum de Bob Dylan de 2020: «I been in the bend with the rough and rowdy men». Dylan estava familiarizado com a colectânea em que foram amplamente divulgadas algumas canções tradicionais como «I Wish I Was a Mole in the Ground», intitulada Anthology of American Folk Music, tal como lhe era familiar a canção «My Rough and Rowdy Ways» (1929), de Jimmy Rogers. É precisamente no álbum Rough and Rowdy Ways, de Dylan, que se encontra uma canção que parece conjugar e ilustrar alguns aspectos do que tenho vindo a dizer sobre violência, coacção, liberdade e autodeterminação. A canção em causa é «Key West (Philosopher Pirate)» e tem sido analisada em parte como a descrição de um lugar idílico em que se fundem os planos da memória histórica ou colectiva e da memória biográfica ou pessoal.

O lugar reconfortante que antevemos para o homem que deseja ser uma toupeira e viver debaixo da terra representa a ideia de um lugar idílico bastante comum nas canções de Bob Dylan. Porém, esse lugar nem sempre é imaginado e procurado com o ímpeto da fuga ou da defesa (lembremo-nos da reacção de Vicente à bofetada do pai), mas, com essa «mistura de fatalismo e desejo, aceitação e raiva» que Greil Marcus descreve. Em «Key West (Philosopher Pirate)», surgem alguns versos bastante pertinentes nesse sentido: «Twelve years old and they put me in a suit / Forced me to marry a prostitute / There were gold fringes on her wedding dress / That’s my story but not where it ends / She’s still cute and we’re still friends / Down in the bottom – way down in Key West». Um comentador[7] desta letra de Dylan sugere que o narrador se identifica com o rapaz de doze anos que, no seu Bar Mitzvá, «casa com a prostituta», ou seja, passa a ser responsável pelos seus actos (atinge a maturidade perante a lei judaica), eximindo o próprio pai desse papel, tornando-se oficialmente parte integrante da comunidade judaica. Segundo esta interpretação, Dylan terá assim sido forçado a ingressar na religião do Judaísmo. É sobejamente conhecida a sua descendência judaica, tal como é famosa a sua conversão, em finais da década de 1970, ao Cristianismo, a chamada fase cristã do músico, que terá terminado em inícios da década seguinte. Ainda assim, e de acordo com esta interpretação da canção, Dylan manteve uma relação amistosa com o Judaísmo (foi, por exemplo, fotografado em Israel, enquanto usava uma quipá, por ocasião do Bar Mitzvá de um dos filhos). Já as franjas douradas do vestido de casamento são comparadas às ornamentações que normalmente acompanham a Torá. O mais interessante, porém, não é a possível relação entre a letra e a biografia do seu autor, mas a coexistência de um prenúncio de raiva, originado pelo episódio violento, e a sua aceitação apaziguada. Ao fatalismo da canção («that’s my story») acresce ainda um vislumbre de desejo («she’s still cute»). A emancipação originada pelo casamento precoce (tanto no sentido literal como simbólico, se considerarmos a hipótese do ritual judaico) não estará muito longe da liberdade condicionada que a circunstância do abandono do pai concede a Vicente. Porém, o eco da bofetada, que é também aqui a situação forçada do casamento, prolongar-se-á até ao fim do filme (ou até ao fim da vida, que na canção parece terminar idealmente na cidade de Key West). Mais uma vez, a situação traumática ou negativa por definição transforma-se num «princípio de tensão, de fricção» que nunca se irá afastar da busca da plenitude ou do lugar idílico. Em «Key West», a violência da tarola que inicia «Like a Rolling Stone» resolve-se num ritmo compassado e contemplativo. Se a primeira não é inteiramente negativa, por lhe faltar o pendor destrutivo, podemos também dizer que o segundo não é totalmente positivo ou pacífico. Será antes indagador ou inquisitivo, tal como já sucedia no tom de canções anteriores, que existem igualmente a paredes meias com a ideia da mortalidade, como «Death is Not the End», «Standing in the Doorway», «Tryin’ to Get to Heaven» e «Not Dark Yet».

Isaiah Berlin relata um momento definidor da sua formação intelectual, quando, para seu grande choque, tomou consciência de que «nem todos os valores supremos que a humanidade buscava, agora ou no passado, eram necessariamente compatíveis entre si.»[8] Aquilo que Berlin considerava ser os «verdadeiros fins, verdadeiras respostas para os problemas fundamentais da vida» podiam, na verdade, invalidar-se e excluir-se mutuamente. Desde sempre avesso a ideias fixas, a ideais perenes ou fins últimos, em «I Shall Be Free No. 10», canção de 1964, Bob Dylan apropriava-se já da personagem-tipo do pai conservador cujo maior pesadelo é ver a filha casada com um comunista (recorde-se, por exemplo, a personagem de Archie Bunker e da sua relação com o genro na famosa série All in the Family), subvertendo-a com ironia e comicidade, ao mesmo tempo que, à semelhança de Berlin, parece olhar com suspeita tanto o conservadorismo (representado por Barry Goldwater) como os ideais e movimentos de esquerda então em voga no meio artístico: «Now, I’m liberal, but to a degree / I want ev’rybody to be free / But if you think that I’ll let Barry Goldwater  / Move in next door and marry my daughter / You must think I’m crazy! / I wouldn’t let him do it for all the farms in Cuba». Duas canções recentes de Dylan, a já referida «Key West» e «Murder Most Foul», têm o mérito de contrariar o monismo ideológico que Berlin denuncia, nomeadamente a noção de respostas verdadeiras ou absolutas para problemas genuínos, e de fazer conviver no mesmo plano emocional o trauma e o seu apaziguamento através de uma contemplação afectuosa da situação marcante (lembramo-nos aqui do título Contemplação Carinhosa da Angústia, de Agustina Bessa-Luís).

O princípio negativo de tensão e de fricção referido por Greil Marcus poderá então passar por esta incompatibilidade entre valores supremos, ou mesmo ter origem da noção errónea de verdades absolutas que compõem um todo harmonioso da experiência humana. Tanto em «Key West» como em «Murder Most Foul», o estado negativo de fricção é gerado de imediato com a alusão ao assassinato de dois presidentes dos Estados Unidos da América: William McKinley e John F. Kennedy, respectivamente. A «bofetada» da memória colectiva ou histórica gera depois o alívio do lugar idílico, seja o património cultural composto por canções que fazem parte do imaginário norte-americano, no qual o próprio Dylan inscreve a sua canção «Murder Most Foul», seja o «paraíso divino» de Key West. O princípio negativo, propenso ao atrito, que nos é anunciado em «Key West» tem antecedentes. Nesta canção, é-nos dito: «I was born on the wrong side of the railroad track / Like Ginsberg, Corso and Kerouac». Muitos anos antes, porém, em «Don’t Think Twice, It's All Right», Dylan dizia já: «An’ it ain’t no use in turnin’ on your light, babe / I’m on the dark side of the road». Se remontarmos a um passado ainda mais distante, esse fatalismo era já adivinhado no verso inicial do rascunho de uma das suas primeiras canções: «Well, I'm bound to lose, bound to win / bound to walk to the road again». Esta espécie de viandante ou menestrel condenado ao movimento perpétuo sem lugar de repouso perdurará até «Key West». Nesta ilha idílica da mente (não obstante a sua verdadeira existência no mapa), o narrador da canção encontra um exotismo nos planos físico e conceptual com o qual não só convive bem, como parece também convergir intimamente com a sua diversidade e o seu pluralismo. Note-se, por exemplo, as referências à estranheza da fauna local, que é aceite com a mesma serenidade de espírito com que o casamento com a prostituta é resolvido numa amizade posterior. Alguns exemplos deste exotismo são evidentes: «The tiny blossoms of a toxic plant / They can make you dizzy – I’d like to help ya but I can’t»; «The fishtail ponds and the orchid trees / They can give you the bleedin’ heart disease». Ao mesmo tempo, vemos como este lugar idílico da mente não se presta a ideais ou certezas absolutas que só poderão existir, quando muito, num domínio conceptual: «I’ve never lived in the land of Oz / Or wasted my time with an unworthy cause». A narrativa pastoral de Dylan tem antecedentes muito anteriores. Em 1974, o narrador pedia-nos (como se pedisse a si mesmo): «Try imagining a place where it’s always safe and warm / “Come in,” she said, “I’ll give you shelter from the storm”». O abrigo emocional e as promessas de pureza e simplicidade que surgem na canção «Shelter from the Storm» são transportados e definitivamente materializados em «Key West», um lugar que é descrito com uma singeleza enganadora, com expressões aparentemente triviais e tipificadas como «paradise divine» e «fine and fair». O verdadeiro paraíso, porém, é o do conhecimento e da autodeterminação, a que acresce sempre uma medida de liberdade negativa. Isaiah Berlin elucida-nos a este respeito: «o conhecimento liberta-nos não ao oferecer-nos mais possibilidades abertas entre as quais podemos escolher, mas ao salvaguardar-nos da frustração de tentar o impossível.»[9] Curiosamente, este género de libertação, que não passa por um alargamento de possibilidades, mas por um mapeamento cuidadoso das já existentes, está bem patente nas palavras de Dylan (que servirão como princípio orientador do seu percurso musical) quando, num quarto de hotel em Londres, em ensaios com Robbie Robertson, durante a sua famosa digressão em 1966, afirma de forma convicta: «I know what I can do and what I can’t do.»[10]

O «paraíso» da mente que aceita a coexistência de ideais por definição incompatíveis entre si, sendo incomensuráveis, igualmente válidos e assimiláveis por uma inteligência hábil, torna-se evidente nos seguintes versos de «Key West»: «I play the gumbo limbo spirituals / I know all the Hindu rituals / People tell me that I’m truly blessed». Posteriormente, o narrador contar-nos-á o seu casamento forçado aos doze anos com a prostituta que usa franjas douradas no vestido de casamento, uma figura que foi já interpretada como simbólica do seu ingresso oficial na comunidade judaica. Note-se que é o único momento em toda a canção em que o baixo e a bateria acentuam a cadência discursiva, mais precisamente quando o narrador pronuncia as palavras «gumbo limbo spirituals» [entre os 5:19 e os 5:21 minutos]. Este realce dado à diversidade dos rituais e respectivos credos não é acidental. De certo modo, a mera enumeração de diversas práticas e crenças representa a sua assimilação metódica e o motivo pelo qual o narrador é «abençoado».

O choque ou a bofetada inaugural que anuncia a incompatibilidade de valores entre pai e filho constitui, ao mesmo tempo, uma rejeição do paternalismo, o maior dos despotismos, segundo Berlin (na esteira de Kant). No caso de Vicente, a personagem do filme de Pedro Costa, a bofetada desencadeia o espanto perante essa incompatibilidade, gerando ao mesmo tempo o despertar da autodeterminação do filho, que, por definição, exclui os valores do pai. O paternalismo impediria o seu reconhecimento enquanto ser-humano com propósitos, vontades e valores próprios, a sua visibilidade perante o outro (interprete-se aqui o termo reconhecimento no sentido cavelliano de acknowledgement). O rompante da tarola que se ouve no início de «Like a Rolling Stone» poderá ser considerado nos mesmos termos, ou seja, como uma recusa, da parte de Dylan, do paternalismo associado ao movimento purista folk dos Estados Unidos da América de meados do século passado que constituiu, ainda assim, o seu ponto de partida como escritor de canções. O segredo que Vicente guarda perante o irmão, nomeadamente a morte do pai de ambos, é o atrito necessário para a reescrita da sua vida nos seus próprios termos, inaugurando um espaço para a sua voz individual no mundo. O mesmo se poderá dizer de Dylan, cujo segredo será sempre um lugar idílico da mente criativa que tem em «Key West» o seu culminar definitivo, embora se mantenha sempre à distância de uma promessa: «Key West is on the horizon line».

No episódio «A Stop at Willoughby» (1960) da célebre série The Twilight Zone, um homem cansado da vida que leva como executivo publicitário, além de insatisfeito com o ambiente doméstico que partilha com uma mulher rezingona, adormece na viagem de comboio que a rotina o obriga a cumprir diariamente de casa para o trabalho e vice-versa. Para seu grande espanto, acorda numa carruagem do século XIX e numa cidade, Willoughby, de que nunca ouviu falar. Dizem-lhe que a data é Julho de 1888. Esse lugar apresenta-se idílico aos seus olhos, e nele todas as complexidades da vida são tornadas simples e aprazíveis num ambiente bucólico. No seu comentário final ao episódio, Rod Sterling decreve-o da seguinte forma: «Willoughby? Talvez seja uma esperança vã instalada num lugar oculto da mente do homem, ou talvez seja a última paragem no vasto desígnio das coisas.»[11] Na sua canção, ouvimos Dylan afirmar: «Key West is the place to be / If you’re lookin’ for immortality». Neste caso, a última paragem, «Key West», poderá existir tanto nessa parte oculta da mente do homem referida por Sterling como poderá ser o último destino (o lugar da imortalidade) no vasto desígnio das coisas. Em Dylan, estas duas possibilidades parecem fundir-se numa só, fazendo da sua criação a imortalidade possível em vida. No final de outra canção sua, «Ballad in Plain D», o narrador faz uma pergunta intrigante: «Ah, my friends from the prison, they ask unto me / “How good, how good does it feel to be free?” / And I answer them most mysteriously / “Are birds free from the chains of the skyway?”» Tomamos por vezes os pássaros como as criaturas mais livres que podem existir, precisamente pelo facto de poderem voar. Porém, aqui é sugerido que até no firmamento existem cadeias ou correntes, algo que interfere com a capacidade de movimento. É possível que Dylan esteja a dizer-nos que nunca somos totalmente livres, não só porque existem interferências naturais ou não deliberadas que impossibilitam a nossa ideia de liberdade absoluta, mas também (embora não só) porque a liberdade de uns implica a imposição de restrições à liberdade de outros. As repercussões da bofetada (coacção) e da tarola (autodeterminação) coexistem e despertam a consciência para a existência de verdades por vezes incomensuráveis e incompatíveis. O choque e o trauma daí decorrentes perduram na obra de Dylan, fornecendo o atrito e posteriormente o alívio (através da aceitação e do modo contemplativo) necessários para a composição cada vez mais aprimorada, através das canções, de um lugar idílico da mente que coincide com a ideia de uma espécie de eternidade em vida.

[1] Pedro Costa, O Sangue, Trópico Filmes, 1989. DVD (95 min.): Standard 1.33:1 [4:3] P/B. Extras: “Sangue Antigo e Sangue Novo” – um depoimento de João Bénard da Costa.

[2] Bruce Springsteen, “Bruce Springsteen: ‘Elvis Freed Your Body, Bob Dylan Freed Your Mind’”. Disponível online: https://www.rollingstone.com/music/music-news/bruce-springsteen-elvis-freed-your-body-bob-dylan-freed-your-mind-68215/ No original: “The first time that I heard Bob Dylan, I was in the car with my mother, and we were listening to, I think, WMCA, and on came that snare shot that sounded like somebody kicked open the door to your mind, from ‘Like a Rolling Stone.’”

[3] Isaiah Berlin, The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays (ed. Henry Hardy & Roger Hausheer), Nova Iorque: Farrar Straus and Giroux, 2013., p. 207. No original: «I wish to be master of my kingdom, but my frontiers are long and insecure, therefore I contract them in order to reduce or eliminate the vulnerable area.» 

[4] Ibid., p. 215. No original: «I am free if, and only if, I plan my life in accordance with my own will; plans entail rules; a rule does not oppress me or enslave me if I impose it on myself consciously, or accept it freely, having understood it, whether it was invented by me or by others […]»

[5] Ibid., p. 242. No original: «the very desire for guarantees that our values are eternal and secure in some objective heaven is perhaps only a craving for the certainties of childhood or the absolute values of our primitive past.»

[6] Greil Marcus, Marcas de Baton: Uma História Secreta do Século Vinte (trad. Helder Moura Pereira), Lisboa: Frenesi, 1999., pp. 21-22.

[7] Chris Gregory, Key West: An extract from “Determined to Stand: The Reinvention of Bob Dylan”, disponível online: https://chrisgregory.org/music/bob-dylan/key-west-an-extract-from-determined-to-stand-the-reinvention-of-bob-dylan/

[8] Isaiah Berlin, The Proper Study of Mankind, p. 7. No original: «[…] not all the supreme values pursued by mankind now and in the past were necessarily compatible with one another.»

[9] Ibid., p. 215. No original: «Knowledge liberates us not by offering us more open possibilities amongst which we can make our choice, but by preserving us from the frustration of attempting the impossible.»

[10] D. A. Pennebaker, Eat the Document (ed. Bob Dylan & Howard Alk), 1972 (54 minutos). Documentário disponível online: https://www.youtube.com/watch?v=M5X1-ijScm4

[11] The Twilight Zone (1959–60), Série 1, Episódio 30: “A Stop at Willoughby”, 1960 (25 minutos). No original: “Willoughby? Maybe it's wishful thinking nestled in a hidden part of a man’s mind, or maybe it's the last stop in the vast design of things.”

 

 Bibliografia:

Bruce Springsteen, “Bruce Springsteen: ‘Elvis Freed Your Body, Bob Dylan Freed Your Mind’”. Disponível online: https://www.rollingstone.com/music/music-news/bruce-springsteen-elvis-freed-your-body-bob-dylan-freed-your-mind-68215/

Chris Gregory, Key West: An extract from ‘Determined to Stand: The Reinvention of Bob Dylan’, disponível online: https://chrisgregory.org/music/bob-dylan/key-west-an-extract-from-determined-to-stand-the-reinvention-of-bob-dylan/

D. A. Pennebaker, Eat the Document (ed. Bob Dylan & Howard Alk), 1972 (54 minutos). Documentário disponível online: https://www.youtube.com/watch?v=M5X1-ijScm4

Greil Marcus, Marcas de Baton: Uma História Secreta do Século Vinte (trad. Helder Moura Pereira), Lisboa: Frenesi, 1999.

Isaiah Berlin, The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays (ed. Henry Hardy & Roger Hausheer), Nova Iorque: Farrar Straus and Giroux, 2013.

Pedro Costa, O Sangue, Trópico Filmes, 1989. DVD (95 min.): Standard 1.33:1 [4:3] P/B. Extras: “Sangue Antigo e Sangue Novo” – um depoimento de João Bénard da Costa.

The Twilight Zone (1959–60), Série 1, Episódio 30: “A Stop at Willoughby”, 1960 (25 minutos).

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