Dificilmente poderá haver um poema mais fanhoso do que «Caixadòclos», de Alexandre O’Neill. Procurarei no final justificar esta afirmação. Não utilizo aspas no adjectivo, já que tal significaria atribuí-lo num sentido figurado ou aproximativo, o que contraria o propósito deste texto. Tenta-se aqui dar a dignidade e amplitude semântica ao adjectivo que o próprio O’Neill tinha em mente quando se referiu ao músico Bob Dylan num texto muito apropriadamente intitulado «O fanhoso do Minnesota». Dizemos que alguém é fanhoso porque fala num tom de voz nasalado, ou pelo nariz. Também podemos utilizar a palavra vizinha «roufenho». Tanto uma como a outra sugerem algo que de tão áspero nos fere os ouvidos. Com efeito, essa é uma das acepções de roufenho, e atribuí-la a alguém que canta como Bob Dylan (tom de voz nasalado ou roufenho) é perfeitamente justificável em certos períodos da sua carreira musical. Dylan nasceu em Duluth, uma cidade do estado de Minnesota, mas o seu timbre é menos acidental do que este facto. A sua «fanhosez» —  e aqui utilizo as aspas no neologismo de O’Neill ao mesmo tempo que faço sinal à solidariedade interpretativa do leitor — não é só o atributo de alguém que fala pelo nariz; é antes um traço de personalidade, especialmente de alguém com particular gosto ou apetência para deflacionar expectativas. Mas porque terá o poeta escolhido uma palavra tão estranha ao invés de utilizar um substantivo menos irreal, por exemplo «fanhosice», como quem diz manhosice ou gabarolice? No texto de O’Neill sobre o fanhoso do Minnesota, percebemos que as descrições do poeta sobre alguém que padece desta condição, nomeadamente o músico norte-americano, são feitas à medida, ou seja, fanhosez só pode ter sido uma palavra inventada a pensar em alguém como Dylan.

 Diz-nos O’Neill que a fanhosez é mais do que uma particularidade vocal: o seu significado excede a mera voz nasalada. Outras palavras-chave no texto vão funcionando como setas que nos indicam caminhos mais pantanosos da análise discursiva: recusa, contenção e desmentir são três dessas palavras. Do outro lado da barricada estética ou ideológica contam-se expressões um pouco mais sofisticadas: «efusão do sentimento», «lugar-comum cantabile» e, por fim, a mais esclarecedora: «repositório comum de sentimentos pré-catalogados.» No final destas descrições, ficamos a saber que «Dylan não maiusculiza nada». Além disso, as suas letras são feitas com um «mínimo de suportes e de efeitos». Dir-se-ia que, se fossem casas portuguesas, estas letras assemelhar-se-iam à casa da Mariquinhas já no seu estado devoluto, exceptuando, claro, a má-reputação que sempre a assolou. Mas, se «chega a esta desgraça toda a graça» desta casa de passe, onde antes se viam umas janelas muito garridas «com cortinados de chita às pintinhas», nas letras de Dylan (lidas por O’Neill) nunca houve nem «graça», nem «chita» ou sequer «pintinhas»; muito pelo contrário, ficamos a saber que o caminho do músico é «de voluntária pobreza». Depois de lhe arranjar uma família (Woody Guthrie, Pete Seeger e Brassens) e de o retirar do bairro dos «maneirismos», O’Neill realoja Dylan no pobre mas honrado bairro da «integridade».

Naturalmente, não é o facto de falar (ou cantar) pelo nariz que habilita Dylan (e companhia) à condição de residente do bairro da integridade, mas sim a sua personalidade intelectual e artística inerentemente fanhosa. Esta personalidade é o cerne do texto de O’Neill, e as elaboradas descrições referidas anteriormente servem para o mapear. Em primeiro lugar, aquilo que consubstancia e valida o neologismo «fanhosez» é a recusa em ceder ao paisagismo de uma sensibilidade regulada pelo bom gosto, especialmente atreita a palavras maiusculizadas; não raras vezes, a palavra em maiúsculas coloca-se em bicos de pés para parecer mais alta e assim legitimar melhor o seu lugar privilegiado para a enunciação de uma intimidade cuja composição não passa, segundo O’Neill, «dos mais simplesmente sentimentos». A pobreza voluntária de um instrumento (a voz) defeituoso é coadjuvada pelo tipo de personalidade fanhosa que indiquei atrás. E, no caso de Dylan, esta personalidade revela-se menos no cancioneiro composto no bairro da integridade (refiro-me às chamadas canções de protesto do cantor, gravadas em discos como The Freewheelin’ Bob Dylan [1963] e The Times They Are a-Changin’ [1964]), ou no mundo invertido dessa integridade (Bringing It All Back Home ou Highway 61 Revisited, ambos de 1965) do que noutro género de criação musical que veio deflacionar o estilo muitas vezes sobreexcitado das letras e performance vocal dylanianas. Cinco anos depois, em parte por obrigações contratuais com a sua editora discográfica, Dylan grava o disco New Morning (1970). Sobre estas canções, veio muito mais tarde a escrever:

My reputation was firm in hand—at least these songs wouldn’t make any gory headlines. Message songs? There weren’t any. Anybody listening for them would have to be disappointed. As if I was going to make a career out of that anyway. Regardless, you could still feel anticipation in the air. When will the old him be back? When will the door burst open and the goose appear? Not today. I felt like these songs could blow away in cigar smoke, which suited me fine.[1]

Um músico que se satisfaça em compor uma canção que se desvanece tão facilmente como o fumo de um charuto é uma ideia intrigante, especialmente se tivermos em conta que o autor destas palavras escreveu canções frequentemente sujeitas a uma dissecação semântica que as impedia de se evaporarem de vez. Nos textos de canções como «Blowin’ in the Wind» e «Mr. Tambourine Man», os temas tratados são sonantes: o tempo e o homem à sua passagem, o sofrimento e o sonho, a desolação e a esperança. Estas são definitivamente palavras maiusculizadas. Porém, no disco New Morning os assuntos são sobretudo pautados por uma economia doméstica, tanto da mente como dos sentidos, e não deixam transparecer ambições universalizantes. Ao recordar o momento em que escuta as canções deste disco no estúdio, Dylan usa as expressões «No stellar explosions» e «It sounded okay».[2] Foi o próprio O’Neill a sugerir que a sua própria poesia era «de curto alcance»[3]. Poderá dizer-se que este «soar razoavelmente» é outra versão dessa ideia. Mas o que significa, afinal, uma poesia de curto alcance? Parece insinuar o mesmo tipo de volatilidade que caracteriza o fumo do charuto.

Referindo-se ao fanhoso do Minnesota, O’Neill escreve: «a força comunicante do trovador está, principalmente, no partido que ele tira da monotonia, repetição e progressão “fanhosas” de um texto maravilhosamente aliado à música. Este é um caminho de voluntária pobreza.»[4] E esta pobreza (de recursos ou efeitos estilísticos, embora o discurso de Dylan esteja pejado de maneirismos de expressão) é também constitutiva da fanhosez do próprio O’Neill. Não só a «monotonia, repetição e progressão “fanhosas”» são mecanismos sobejamente utilizados nos seus versos como também essa utilização se revela operante no desenho particular de muitos poemas o’neillianos. Isto revela-se sobretudo numa estratégia discursiva de O’Neill a que, para efeitos práticos, descreverei como «achincalhar o fanhoso», ou seja, uma espécie de autoderisão deliberada que, ainda assim, é menos importante do que a escolha dos seus interlocutores acusatórios. A propósito, Dylan escreveu uma canção perfeitamente alinhada com esta ideia, «I Shall Be Free No. 10», na qual, depois de se apresentar como o paladino da mediania («I’m just average, common too»), o narrador é exposto às maldades de uma namorada abusiva e de um amigo que sonha em asfixiá-lo com um cachecol, terminando rejubilante «I’ve got a million friends!» No caso do poeta português, porém, tenho em mente o poema que indiquei no início deste texto: «Caixadòclos». Nestes versos, a postura de recusa e de contenção expressiva associada à fanhosez deixa-se descobrir precisamente pelo seu reverso, através dos comentários e interjeições de interlocutores ostentosamente seguros de si mesmos, gente que talvez prefira o «lugar-comum cantabile» e faça das palavras «vazadouros dos mais simplesmente sentimentos.»

Comecei por dizer que dificilmente poderá haver um poema mais fanhoso do que «Caixadòclos». O mesmo poderei afirmar da palavra-título e da forma como é grafada, reveladora de todo um programa de minusculização da linguagem e da própria noção do que significa ser poeta para O’Neill. A discrição mesmo no alarde e o zelo estilístico até no poema mais desbragado são duas características da sua fanhosez, à qual não poderia faltar o gesto verbal ronceiro, muitas vezes rasteiro e perverso que está contido numa alcunha, neste caso a do título do poema. Alcunhas ferinas como esta, nascidas na juventude, estão muitas vezes associadas a objectos partidos, brigas de rua, pavilhões escolares e tempo chuvoso. Em certa medida, moldam a personalidade de quem as usa (leia-se a letra de «A Boy Named Sue», canção famosamente interpretada por Johnny Cash). O portador da alcunha aprende (ou não) a valer-se por si. Tal se aplica naturalmente ao gesto criativo. A personalidade intelectual e artística fanhosa é aquela que aprendeu a superar a sua fanhosice e a conviver com a sua fanhosez (a integridade da sua diferença). Em «Caixadòclos», assistimos ao momento em que o poeta procura fazer-se valer. O que recebe em troca é a acusação incessante daqueles que tomam a sua voz nasalada (o traço circunstancial da sua pessoa) pela sua fanhosez (fruto de uma autocriação culpada). De um poeta, os seus interlocutores esperam ouvir somente «o lugar-comum cantabile», todo o «repositório-comum de sentimentos pré-catalogados». Por isso estranham a loucura moderada de alguém que fala sozinho na rua e nunca tem dinheiro.

A personalidade fanhosa de O’Neill em «Caixadòclos» revela um grau de inconformismo (conformado, mas este é o trabalho da ironia) inversamente proporcional ao conformismo dos seus interlocutores. A fanhosez do poeta é a de alguém que conversa sozinho e faz perguntas tão soberbas quanto inúteis («Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?»), que é medroso no tom delicado com que procura fazer-se valer («Público em geral, acaso o meu nome…»), que fala para as paredes na tentativa de quebrar uma solidão endémica à condição de fanhoso («Campdòrique, então, não dizes nada?», «Rua do Jasmim, anda, diz que sim!»), que procura e vê frustrada a compreensão dos seus pares possivelmente fanhosos («Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você…») e que, por fim, descobre a sua fanhosez vagamente reconhecida com a esmola de uma referência nas páginas de um jornal («Ah, agora sim, fazem-me justiça!»[5]). Porém, no que respeita a esta legitimação tardia da fanhosez, não esqueçamos que O’Neill, ao sugerir que a sua poesia possa ser «de curto alcance», não parece incomodar-se demasiado com a ideia de que a escrita de versos, à semelhança de algumas letras de Dylan, padeça da mesma transitoriedade dos anéis de fumo. Do mesmo modo, nada parece perder-se da sua cidadania de poeta por nesses versos não existirem «explosões estelares». A única explosão estelar é o elemento diferenciador do seu timbre mal-amado, que tanto pode resultar em brilhantismo cósmico como no cumprimento dos serviços mínimos de uma mediania em que basta os versos «soarem razoavelmente». E, segundo a sóbria advertência de O’Neill, é aconselhável esperarmos a raridade do primeiro caso: «Não há “p’la certa”, poeta! // Mas em todo o acaso acerta / Nem que seja a um verso por ano...»[6]

Sendo assim, o que será que habilita O’Neill à condição de residente no bairro da integridade, tornando de algum modo especial a «voluntária pobreza» em que vive, tal como o seu vizinho norte-americano? O que é que faz da sua fanhosice algo mais do que um mero defeito de ordem técnica, elegendo-a a uma mais digna e profunda fanhosez? Sabemos que no bairro da integridade, ao contrário do bairro dos maneirismos, não há lugar para palavras que são «vazadouros dos mais simplesmente sentimentos». E também não se encontram armazéns com um «repositório-comum de sentimentos pré-catalogados». Neste bairro, as palavras são sempre menos e mais do que realmente são: recusam-se a andar em bicos de pés, e o seu possível valor reside em usar as suas insuficiências na lapela (sem arrebiques, elas pautam-se pela «monotonia, repetição e progressão “fanhosas”»). Para responder a estas perguntas teremos de procurar o seu contrário, ou seja, o outro género de monotonia, das certezas maiusculizadas, em que uma insuficiência crónica da imaginação se cruza com um mal-estar epidérmico perante o menor rasgo lírico. Em contraste com a pobreza voluntária do poeta, o novo-riquismo do sentimento soa corrosivamente céptico e espiritualmente falido, e algumas interjeições lançadas do bairro dos maneirismos comprovam isso mesmo: «Vai mas é vender banha de cobra!», «Este é dos que fala sozinho na rua…» ou «É o do terceiro, nunca tem dinheiro…»

[1] Bob Dylan, Chronicles, Vol. 1, Nova Iorque: Simon & Schuster, 2004, p. 138. Em português: «A minha reputação estava garantida — ao menos, estas canções não fariam manchetes sórdidas. Canções com mensagem? Não havia nenhuma. Quem as procurasse acabaria por ficar desiludido. Como se eu fosse fazer carreira disso, já agora... Fosse como fosse, era ainda possível sentir a expectativa no ar. Quando voltará o verdadeiro [Dylan]? Quando é que a porta se abre para deixar passar o pateta-mor? Não será hoje, de certeza. Achava que estas canções se poderiam desvanecer numa nuvem de fumo de charuto, o que me calhava bem.»

[2] Ibid., p. 138. Em português: «Nenhuma explosão estelar» e «soava razoavelmente».

[3] Alexandre O’Neill, “Diz-lhe que estás ocupado”. Conversas com Alexandre O’Neill (ed. e org. Joana Meirim), Lisboa, Tinta-da-China, 2021, p. 154.

[4] Alexandre O’Neill, Uma coisa em forma de assim (ed. Maria Antónia Oliveira), Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 244-245.

[5] Alexandre O’Neill, Poesias Completas & Dispersos (ed. Maria Antónia Oliveira), Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 249.

[6] Ibid., p. 77.

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