Não é raro ser-se informado de que este ou aquele escritor holandês fixou residência no estrangeiro. Habitualmente em França, se possível em Paris. A Holanda, 17 milhões num território pouco maior que o Alentejo, cedo se torna abafante, e Amesterdão rebenta pelas costuras de talentos e mesmo de génios.

Ainda assim, a partida rumo a Portugal de Gerrit Komrij (1944-2012) causou, por 1985, algum desconforto nos cafés literários da capital. Não que a sua presença no mundo da cultura holandesa fosse fonte de geral felicidade. Não era. Quer na imprensa quer na televisão, Komrij (leia-se komm-réi) impusera-se como crítico feroz de figuras públicas e gurus da moralidade. Não poupava a política, a administração pública, a cultura dominante. Um dia mais tarde, numa entrevista à Ler, dirá que só aceitaria o Ministério da Cultura para imediatamente aboli-lo... Também não poupava os ideólogos, de qualquer marca que fossem, quebrando costelas em tudo aquilo que hoje, confortavelmente, designamos por «correcção política».

Disputado pelos meios de comunicação, vorazmente lido, temido pelos muitos alvos duma ironia tão inventiva quanto desapiedada, Komrij era decerto bem visto pelas costas. E, contudo, trazê-lo debaixo de olho garantiria alguma segurança mais. De que não seria capaz esse gavião longe do ninho?

Não seria, porém, a distância, nem a ausência da rumorejante Amesterdão, a lentamente amansar o furibundo e elegante publicista. Foi, mais provavelmente, a fuga aos caminhos batidos, aos temas e abordagens previsíveis, ou o simples cansaço de tanto bater, que também dói.

Facto é que, vivendo agora longe, o crítico continuou, até ao fim dos seus dias, requisitado por instâncias holandesas para conferências, colóquios, debates, entrevistas, artigos, cursos universitários. A este continuado reconhecimento juntaram-se os prémios, os maiores que a Holanda reserva para os seus consagrados. Em 2000, foi escolhido pelo público como primeiro «Poeta da Pátria», eleito por cinco anos. Nunca mentalmente ele deixou o seu país, nunca o país o deixaria sossegado, menos ainda esquecido.

Certo: nada disto transpira nos seus romances autobiográficos «portugueses», Atrás dos Montes (1997) e Um Almoço de Negócios em Sintra (1999). Faz todo o sentido. A realidade do autor definitivamente aplaudido laureado só estragaria a narrativa do escritor exilado que cortou atrás de si todas as amarras.

*

Quando, nos anos de 1990, Gerrit Komrij compõe Um Almoço de Negócios em Sintra, o observador e o estilista estão, para dizê-lo à antiga, no auge das suas faculdades. Digo «compõe», já que, por mais que o autor ansiasse por que fosse tido como romance, o livro denunciará sempre a sua vigorosa génese: a de crónicas de jornal.

O poeta e o ensaísta Komrij são de primeira água, mas será, ouso supor, como colunista que ele perdurará. Não seria caso único. Romancistas há que vemos perdidos num casaco largo em demasia, quando o conto, ou a crónica de jornal, lhes são medida mais justa e mais feliz. Um Almoço de Negócios em Sintra é, efectivamente, um conjunto fortíssimo extraído das inumeráveis crónicas que, ao longo de decénios, Komrij escreveu no diário «de referência» NRC-Handelsblad.

O primeiro cenário é, já poderíamos esperá-lo, Sintra. Também Lisboa se revelará um ambiente estimulante. Mas será, quase sempre, de uma aldeola pacata, Vila Pouca da Beira, que o olhar vai estender-se sobre Portugal, a distante Holanda e o demais Mundo.

Sintra fornece o palco para um primeiro embate com a realidade. O recém-chegado e o companheiro procuram casa, que não precisa de ser logo modesta. Mas a incomensurável moradia que certo herdeiro, obnubilado pela visão de fartas bolsas estrangeiras, os leva a percorrer extravasa todo o concebível. Na realidade, temos aqui um primeiro e frisante exemplo do investimento hiperbólico que, vezes sem conta, assomará na obra. O presumível objecto da compra é nada menos que o esplendoroso Palácio da Regaleira, que o próprio autor saberia tão apetecível e tão inalcançável como o pedaço da Lua proposto ao papalvo.

A visita fora precedida pelo «almoço de negócios», na vila, com o agente intermediário, pretexto para o seguinte retrato:

 

Um almoço de negócios em Portugal é uma comezaina de cinco pratos diariamente repetida, que precede outra quase idêntica — essa, das sete às onze da noite —, em que o último prato apresenta o atractivo de com ele se nos varrer totalmente da ideia o género de negócios que nos levara a reunir-nos. E, tendo por hipótese sido nossa intenção juntar, no desfecho da sobremesa, persistência suficiente para vender três cabras, está mais que escrito que, após o golpe de misericórdia do café e aguardente, verificaremos ter acabado de comprar sete burros.

 

Facto ou, mais provavelmente, episódio ficcionado, ele dá vazão aos vários fôlegos de que Gerrit Komrij se sentia possuído: o da narração envolvente, o dos estudados jogos conceptuais, o da pujança estilística, o da reconstituição pilhérica do mundo.

Lisboa revela-se espaço de deambulações entre o blasé e o caricato, do consumo ainda oculto de drogas «leves», de passagens nocturnas por bares e casa de fado. Há esta pintura da cidade em tons feéricos e intimistas:

 

Às oito e um quarto, em Setembro, Lisboa é presa dum milagre. A cidade incendeia-se de labaredas rútilas. O pálido crepúsculo transmuta-se dum momento para outro numa vermelhidão que — enquanto algumas fachadas e ruas se tornaram já dum escuro ameaçador — irmana tudo quanto por ela é atingido, as paredes corroídas dos palácios mouros, os quiosques e os inúmeros miradouros, as cúpulas das igrejas e as esplanadas de mármore, as águas calmas do Tejo e o sobranceiro Castelo, para depois, com a mesma rapidez, se esbater no cálido aconchego da noite.

 

A visita a uma casa de fado é pretexto para uma caracterização exemplar:

 

Ouvimos o fado. Cantam mulheres o amor e o sofrimento. Em humildes e aporcalhados cafés, cantam também homens idosos sem voz e miúdos pequenos, olhados com orgulho por pai, mãe e irmãos. Os fados são para se escutar, não são música de fundo. Enchem a noite e trespassam-nos até à medula. Também a nossa amiga se ergue e canta. Em que sítio do mundo há um amigo nosso que, de repente, se levanta para contar em música o que tem de mais íntimo? Não sou capaz de definir a força do fado. É, sem haver vento, cantar vencendo a força do vento. É amargura que por instantes te faz feliz, uma nostalgia que te permite, um momento só, sentires-te em casa. É sentimental de alto a baixo, sem nunca ser vulgar. É a canção das putas e dos chulos, dos marinheiros. Dos andrajosos que, cantando, são reis.  

 

O abandono de Amesterdão e a morosa instalação em Vila Pouca da Beira formam o restante quadro da narrativa.

A complicada exportação de cinco gatos, a ausência de qualquer gesto «oficial» de despedida, um último passeio pela amada e ingrata cidade, eis assuntos suficientemente ponderosos para um detalhe páginas a fio.

A partir da aldeia beirã de Vila Pouca, descrita sem filtros poéticos mas com amorável precisão, vai Portugal ver-se observado. Um primeiro objecto de ponderação: os incêndios florestais.

 

Nas matas, dá-se em geral com muitos passeantes, como sejam os que andam eternamente na boa-vai-ela, os camponeses a caminho do seu campito, os caçadores apostados em perdizes e tudo o mais que queira voar, e os resineiros. Muitos passeantes fumam. E é assim que o fósforo português, produto da madeira queimada, se encarrega de novos fogos, que fornecem nova madeira queimada, boa para por exemplo fósforos. A mata devastada prossegue a sua devastação por próprias forças.

 

Ou a burocracia das nossas repartições públicas:

 

As pirâmides do Egipto hão-de ser realmente impressionantes, os jardins suspensos da Babilónia realmente assombrosos, que nada infunde tanto respeito como a burocracia portuguesa. A quem couber, regularmente, a honra de dar, olhos nos olhos, com os funcionários portugueses, esse apercebe-se da verdadeira necessidade de, querendo contar o que se passa nas repartições às pobres almas que nunca se acharam em tal estado de graça, fazê-lo muito doseado e de maneira deploravelmente atenuada. Caso contrário, muito simplesmente não acreditarão nele. Numa descrição da burocracia portuguesa, nada soa mais inacreditável do que a verdade inteira.

 

Ou ainda a inescrutável «alma» portuguesa:

 

Os portugueses discreteiam com prazer sobre o enigma da alma portuguesa. A elevação, a prolixidade e a imprecisão com que o fazem, com um cardápio de descaminhos semânticos e de ardis gramaticais, denunciam sobretudo quanto a questão da identidade lhes anda atravessada. Quanto maior o enigma sugerido, tanto mais provável a presença de uma (evidentemente indestrinçável) solução.

 

Enfim, uma confissão que, feita a páginas 155 do pequeno volume, já é deliciosamente supérflua: «Eu sou um apaixonado por Portugal, mas não um apaixonado cego».

*

Um Almoço de Negócios em Sintra encontra-se, hoje, esgotado e sem planos de reedição. É pena. Trata-se de um raro e precioso olhar, feito de curiosidade e ternura, sobre nós, os nossos hábitos, as nossas insuficiências, as nossas invejáveis qualidades. Gerrit Komrij soube observar-nos, aquilatar-nos, cobrir-nos de atenções. Não é todos os dias que um amor terno e feroz nos torna objecto de tanto cuidado, tanta compreensão, e tanto talento.

Komrij acreditava que a identidade portuguesa era, sobretudo, europeia. Desta convicção nasceu, em 2001, o seu libreto para a ópera de câmara «Melodias Estranhas», de António Chagas Rosa, que representa os encontros do jovem humanista Damião de Góis com um já idoso Erasmo de Roterdão. «Vivo convencido», afirmou na altura Komrij, «da existência de uma cultura europeia a unir-nos. Não somos dois navios que se cruzam algures na noite». Não. Mas, às vezes, parecemos.  

 

Do autor em português:

Uma Migalha na Saia do Universo. Antologia da Poesia Neerlandesa do Século XX, Assírio e Alvim, 1997, selecção de Gerrit Komrij, trad. Fernando Venâncio.

Atrás dos Montes, Asa, 1997, trad. Patrícia Couto.

Um Almoço de Negócios em Sintra, Asa, 1999 (2.ª ed.), trad. Fernando Venâncio.

Contrabando. Uma Antologia poética, Assírio & Alvim, 2005, trad. Fernando Venâncio.

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