1. Não importa o Quê, não importa Quando
É comum, no seio da História enquanto disciplina do saber, mas também no que sói designar-se como opinião pública, execrar-se o anacronismo como um elemento indesejável na compreensão de um qualquer processo social. É um fenómeno tão mais curioso quanto, frequentemente nos próprios textos denunciadores, ocorrem também vários anacronismos involuntários. A noção do seu perigo enquanto categoria explicativa do real não isenta o objector de consciência, portanto, de nele incorrer. Em História, cita-se o conhecido aforismo de Lucien Febvre, que conferia ao anacronismo a dúbia honra de «pecado mortal do historiador». Depreende-se desta definição um conceito impensável numa determinada época, como, por exemplo, uma maçaroca de milho em plena Europa medieval. Na imprensa escrita, o anacronismo é não raras vezes convocado como sintoma de algum atavismo persistente, por norma conotado com um ultrapassado e retrógrado sistema de classificação do mundo.
Um bom exemplo disto será a recentíssima polémica referente ao designativo a adoptar no museu alusivo à expansão portuguesa que a Câmara de Lisboa pretende inaugurar. A expressão «Museu dos Descobrimentos/das Descobertas» foi rapidamente rotulada de «luso-tropicalista» e «bafienta». Diga-se, em abono da verdade, que o consenso historiográfico actual desaconselha tal conceito, mas a celeuma da sua (agora improvável) utilização é bem ilustrativa de como parece crescentemente inaceitável, em 2018, o emprego de «Descobrimentos» ou, se se quiser, de como o conceito se tem tornado impensável. Outro exemplo foi a censura a que os clássicos desenhos animados Tom and Jerry, da produtora Hanna-Barbera, foram sujeitos por mostrarem a (agora) famigerada black face, que remetia para uma deontologia racista muito generalizada nos anos 40 do século passado, data dos começos da emissão do programa. No século XXI, a expressão já não é aceitável, pelo que as gerações mais recentes de espectadores não assistirão, futuramente, a quaisquer apologias desta índole na produção daquela companhia. A sua emissão tornou-se impensável.
Mas, sendo rigorosos, não é impossível que certos anacronismos se insinuem na linguagem porque são, eles próprios, a melhor forma de expressar uma ideia. É fácil depararmo-nos com a descrição de uma «classe» ou a composição de um «exército» no período medieval, ou, até, com a caracterização do «Estado» romano alto-imperial. O excesso de utilização de um certo conceito torna-o operatório. Não passaria pela cabeça de ninguém propor a substituição do termo «Idade Média», ainda que o mesmo remeta para o tempo apertado entre a Antiguidade e o Renascimento, associado às Dark Ages, hoje desacreditado. Os medievalistas serão, apropriadamente, os especialistas neste período, mesmo tendo consciência de que o termo, em si, não quer dizer muito (ou quase nada). É apenas uma maneira de se orientarem no mundo, de se auto e hetero-representarem.
O anacronismo desperta, neste sentido, sentimentos ambivalentes. Reduzido à caricatura (como um avião sobrevoando o céu da Grécia antiga), deve ser combatido. Como instância mais clara de exposição de um dado aspecto do real, deve ser salutarmente integrado, ainda que com a consciência de que a sua utilização não se justifica em toda a sua inteireza. Diz também algo acerca do poder inefável das palavras: como é que algumas palavras de utilização corrente caíram no desuso ou se tornaram inaceitáveis? Como é que certas palavras evoluíram de um significado malévolo para um benévolo e vice-versa? Como é que designações com um sentido primevo preciso acabaram por degenerar noutras de sentido bem diverso? Será que as palavras restringem a sua actuação ao mundo do papel e da escrita, não influindo de forma alguma no devir de uma sociedade? Afinal de contas, o que torna certas palavras alternadamente pensáveis e impensáveis em função da época em causa? Será mesmo possível pensar-se não importa o quê, não importa quando?
Esta última interrogação, colocando-nos perante o problema complexo da historicidade do anacronismo (isto é, de quando se terá teorizado a noção de impropriedade de certas palavras em certas diacronias), acarreta, a meu ver, duas ilações importantes: as condições de possibilidade do conhecimento e as condições de anulação do conhecimento ou, se se quiser, os limites epistemológicos de cada época e o extravasar progressivo dos ditos limites, com consequente imposição inconsciente de outros. No fundo, trata-se da construção e destruição sucessivas de regimes de verdade.
Este ensaio debruçar-se-á, centralmente, sobre estes dois aspectos, bem como sobre as suas consequências metodológicas para a actividade historiográfica, muito em particular a atenuação de leituras (inadvertidamente ou não) teleológicas e o reforço da marcada contingência dos demais processos históricos. Este esforço obrigar-me-á, também, a dizer algo mais acerca de cadeias de causalidade e do mantra consecutivamente repetido da necessidade de não se olhar o passado à luz dos critérios do presente. É minha convicção que tal máxima enferma de um vício de perspectiva, cuja explicitação espero poder tornar patente ao longo do texto. Finalmente, a todo este argumento subjaz a importância das palavras e a sua autonomização enquanto campo de estudo. Para tal, recorrerei a um texto, da autoria de António Manuel Hespanha, que problematiza a noção de categorias enquanto sistema classificatório do devir (Hespanha 2010). Debaterei, em simultâneo, a influência decisiva de Foucault em todo este processo intelectual, partindo, para tal, da metáfora dos aquários e dos peixinhos vermelhos, cunhada por Paul Veyne, que adiante explicarei.
2. Da Poiética das Categorias
Vinte e dois anos volvidos sobre a morte de Michel Foucault (1926-1984), Paul Veyne, o amigo mais próximo, e destacado classicista do Collège de France, escreveu um livro dedicado à exposição do seu pensamento, mesclado de algumas confidências biográficas acerca do filósofo e historiador francês (Veyne 2009). A primeira impressão de leitura é desconcertante. Tudo o que se julgava conhecer acerca de Foucault se esboroa perante a pena de Veyne: o «samurai», como é afectuosamente designado ao longo do livro, não era de direita, nem de esquerda, nem estruturalista, nem soixante-huitard, nem maoísta. Foucault é «somente» empirista, nietzschiano e céptico. Todos os argumentos de Veyne decorrem daqui, compondo-se os capítulos do livro da análise aos vários matizes do pensamento foucaultiano, ressalvando-se, aqui e ali, que o mesmo nem sempre foi claro nas suas proposições e que o seu vocabulário epistemológico fora notoriamente errático e fluído, quando não mesmo inadequado como expressão das suas categorias mentais. O melhor exemplo disto será o próprio conceito de «discurso», ainda hoje informalmente tomado na sua restrita acepção textual, o que aprofunda alguns mal-entendidos frequentes.
Veyne considera também que a originalidade de Foucault reside no facto de ter procurado responder a grandes interrogações filosóficas por via do método historiográfico. Daí resultara uma produção assinalável sobre variadíssimos tópicos (sexualidade, loucura, sistema carcerário, a biopolítica), mas também um método revolucionário de análise do devir humano. Veyne confessa, por fim, a sua incapacidade em praticar tal historiografia, visto não ter a capacidade de abstracção necessária para tal empreendimento. Mas quais são, enfim, as principais características desta proposta metodológica?
Foucault estava interessado no estabelecimento concreto de singularidades. Desconfiava de transcendentalismos e não acreditava que uma qualquer razão universal emanasse sentidos para o concreto. Pelo contrário, a sua historiografia assentava na consideração das condições empíricas que possibilitaram a eclosão de certos acontecimentos. Isso fazia-o desdenhar de chavões grandiloquentes que, então, como hoje, enxameavam a produção historiográfica, como o sejam as «raízes cristãs da Europa contemporânea». A meu ver, podem apontar-se vários problemas a este exemplo genérico: de que Europa se fala? Assume-se como boa a unidade anímica do Velho Continente, desconsiderando-se os particularismos regionais e os elementos pluri-religiosos conviventes com a (fracturada) religião cristã maioritária? «Contemporânea» reporta-se exactamente a que periodização? Não existindo consenso quanto às balizas temporais deste tempo, a aposição estereotipada de «contemporânea» não clarifica em nada qual a diacronia em questão. Em que plano estão situadas estas raízes? Política, sociedade, economia, cultura? Uma formulação tipicamente foucaultiana iria mais longe e atacaria, de pronto, a própria noção de raízes. Aqui entendida como origens de alguma coisa, as raízes remetem para um essencialismo inconciliável com a complexidade incapacitante de qualquer objecto histórico. Adjectivar o termo («cristãs») apenas acentua o erro, subalternizando outras dimensões que, por certo, terão também contribuído para a «germinação» de uma Europa contemporânea. Finalmente, as raízes implicam um olhar retrospectivo, que pretende desvelar, a partir do presente, elos com algum acontecimento passado. Se é verdade que a história é sempre situada, sendo, portanto, inescapável que se faça sempre a partir de preocupações presentes, invocar pretensas genealogias de acontecimentos poderá ser um exercício demasiado especulativo. Voltarei mais demoradamente a esta questão quando revisitar as leituras teleológicas.
Foucault, deste modo, não dava como garantidas certas ideias feitas, de índole mais geral. Advogava uma concepção historiográfica que singularizasse, num dado momento, num dado lugar, um acontecimento que fosse cognoscível, por via da análise das categorias conceptuais que estruturavam o senso comum da época em análise. E é aqui que a metáfora de Paul Veyne entra em cena. Analisando de perto o pensamento do amigo, Veyne relembra a centralidade do conceito de «regimes de verdade» (e a sua permeabilidade semântica com «discurso») em Foucault, ilustrando-os com a ideia de aquário. As palavras/categorias do pensamento não são sempre válidas, em qualquer espaço, em qualquer momento. A sua influência extravasa em muito o plano estrito do suporte onde estão inscritas (papiro, pergaminho, papel), criando realidade, sendo dotadas, por isso, de capacidade poiética. No entanto, não criam indefinidamente, nem a qualquer altura, o que quer que seja. A validade de cada conceito está indelevelmente ligada à época que o vê nascer. O aquário é, deste modo, o regime de verdade associado a uma determinada diacronia, isto é, os critérios de verdade e de falsidade específicos desse período temporal. Correspondendo a cada época o seu aquário (Veyne 2009, 17), os sujeitos que o habitam encontram-se lá involuntariamente aprisionados, sem disso terem consciência. São peixinhos vermelhos que nadam nos limites estritos do espaço onde lhes calhou em sorte viverem. O aquário é, ainda, um local com uma invulgar resistência ao choque, ainda que completamente quebrável. Quer isto dizer que metaforicamente a pervivência dos conceitos é extremamente duradoura, embora possa desvanecer-se e, mais tarde, desaparecer por completo. Procurar-se-á em vão, por isso, uma condenação da escravatura em autores quinhentistas, bem como uma descrição pormenorizada de um artefacto paleontológico antes de Cuvier ou a percepção da cirrose num fígado antes de Laennec (Veyne 2009, 31). Um camponês do Languedoc medieval poderia cruzar-se, no curso da sua vida, com um fóssil que tivesse acidentalmente desenterrado: a época onde lhe calhou viver nem sequer havia ainda conceptualizado o termo «fóssil», pelo que o artefacto, embora decerto exótico aos seus olhos, não teria para si qualquer significado adicional.
A história do devir humano é assim lida como uma sucessão descontínua e complexa de estilhaçamento e substituição de aquários, da mesma forma como a um paradigma se sucede outro. Paradigma não exactamente no sentido descrito por Thomas Kuhn ao caracterizar as estruturas das revoluções científicas, mas como sinónimo de «regime de verdade» ou de «discurso». A metáfora dos aquários, em todo o caso, embora sugestiva enquanto expressão de uma prisão, reduz em demasia a liberdade colectiva do corpo social, projectando-o como um tecido amorfo; mas, como mostrarei mais tarde, não deixa de ser coerente com o programa anti-humanista da filosofia foucaultiana.
3. Uma Questão de Recepção
Em quase toda a produção de António Manuel Hespanha perpassa o eco da dívida intelectual que o autor tem para com Michel Foucault. Por vezes di-lo claramente, em sessões públicas ou em textos vários. Quando não o diz, e embora não se esgotando jamais o universo das suas referências intelectuais no filósofo francês, ainda assim a sua influência é quase sempre determinante. O texto que comentarei de seguida debate extensamente a dimensão discursiva (no sentido foucaultiano) do regime jurídico dos estratos sociais inferiores da sociedade de Antigo Regime, problematizando os regimes de verdade daquela época. Testa o aquário ou, melhor dito, fornece as ferramentas que permitem medir a sua resistência ao choque. Mais do que os exemplos aduzidos, interessar-me-ão os mecanismos de análise enunciados por Hespanha. Não me coibirei, contudo, de dar eu próprio alguns exemplos oriundos da minha investigação que, penso, ilustrarão ou matizarão as posições expostas.
Quando inicialmente contactei com a obra de António Manuel Hespanha, por via de Vésperas do Leviathan (Hespanha 1987), impressionou-me que o autor desse tanta importância à literatura jurídica como fonte do estudo das dinâmicas concretas do aparelho estatal do Portugal moderno. Compreendia a opção pelo estudo serial do seiscentista Livro da avaliação de todos os ofícios do Reino de Portugal, que parecia um repositório historiável por ser resultado da composição por parte do oficialato, radiografando os ofícios do reino e a respectiva distribuição funcional e espacial, à semelhança do que, para períodos bastante distintos e com âmbitos diferentes, as Inquirições desenhavam para o século XIII e as Memórias Paroquiais para o século XVIII. Por outro lado, o estudo das proposições dos juristas parecia espúrio e poderia até induzir à aceitação de tópicos generalistas, pouco relacionados com a tangibilidade social da época, em suma, com o que era verdadeiramente histórico.
No entanto, após a leitura da obra, compreendi quão enganadora era a percepção inicial, já que compulsar a tratadística não induzia a cristalizar proposições desligadas da realidade, mas constituía-se, bem pelo contrário, como a mais empírica das tarefas. Hespanha argumenta persuasivamente que os tópicos daquela literatura eram os principais estruturadores do senso comum e, por consequência, uma aproximação válida a um problema historiográfico. O estudo das categorias do pensamento, materializadas nos conceitos que definiam, a priori, a realidade social e que com ela interagiam, surgia-me, então, como um desígnio digno do historiador.
Tratando o livro dos estamentos inferiores da sociedade do Antigo Regime (loucos, menores, pródigos, falidos, viúvas, rústicos, selvagens e bárbaros, pobres e miseráveis), Hespanha propõe-se estudar o modelo de ligação entre ideias (categorias) e interesses (realidade social) no seio da tratadística jurídica do período.
Começa por salientar o seguinte:
Deste modo, os textos jurídicos têm, ao nível da sociedade, uma estrutura semelhante à do habitus, tal como é concebido por Pierre Bourdieu. Por um lado, constituem uma realidade estruturada (pelas condições de uma prática discursiva embebida em dispositivos textuais, institucionais e sociais específicos), que incorpora esquemas intelectuais cuja adequação ao ambiente fora comprovada. Mas, por outro, constituem uma realidade estruturante que continua a operar para o futuro, inculcando esquemas de apreensão, avaliação e acção. (Hespanha 2010, 39)
Hespanha eleva o Direito a fonte conformadora do senso comum, não só enquanto criadora de uma realidade, mas também como campo aparentemente inesgotável de dinâmicas prospectivas. Não será alheio a isto a especial sensibilidade demonstrada pelo autor em matéria jurídica, sendo jurista de formação e tendo mantido uma produção muito regular na área de história e filosofia do Direito ao longo da sua carreira académica.
Porém, este aspecto é tão mais interessante quanto, a meu ver, ao considerar o Direito como um constituinte primordial das formações discursivas de uma época, o autor acrescenta uma outra dimensão ao sistema explicativo foucaultiano. A par dos dispositivos de produção textual (a que aludirei mais tarde), o Direito exorbita o âmbito preferencial da sua actuação, influindo decisivamente no regime de verdade da sua época.
Contudo, também aqui é-se confrontado com a resistência desse regime de verdade. No contexto do Direito, as palavras desligam-se do seu significado primevo por força da evolução do devir, mas continuam a ser usadas, embora reportando-se a outras coisas. Mesmo introduzindo paulatinamente inovações institucionais, os juristas acobertavam-nas em designações antigas, frisando o carácter imutável do elemento novo e ressalvando a estabilidade, a paz e a justiça como valores universais. O Direito apresentava, por consequência, um quase ilimitado poder poiético, modificando-se casuisticamente, mas alicerçando-se sempre em dispositivos linguísticos familiares. De outra forma não se explica que fórmulas administrativas de origem bizantina se mantenham vigentes no aparelho conceptual dos juristas do período moderno, mesmo já sem correspondência alguma com o seu sentido primevo (Hespanha 2010, 19).
Quais serão as consequências historiográficas desta atitude? Assumamos o intuito preceptivo da teologia, da moral e do direito como padrão de comportamento social. Será que a preferência por «fontes doutrinais» em detrimento de «fontes meramente aplicativas» traduzirá uma oposição, respectivamente, entre prosas denotativas, reprodutoras passivas do «estado das coisas», e prosas conotativas, onde o peso ideológico mistifica a sociedade, deformando a percepção do historiador?
Dá Hespanha o exemplo de que, para se estudarem as sensibilidades de época com respeito à morte, por razões de economia de tempo, deve o historiador ler «o que os teólogos e juristas ensinavam, longa e explicadamente, sobre, por exemplo, a morte, do que procurar, através da leitura de milhares de testamentos, perscrutar a sensibilidade comum sobre ela» (Hespanha 2010, 43). No entanto, a minha objecção passa pelo que a serialização dos dados resultante do perscrutar das fórmulas testamentárias acerca da morte poderia revelar da inculcação das categorias de senso comum nos redactores. Se se quiser, uma forma de medir a influência do aquário no movimento dos peixes. Não me parece que se deva ignorar umas em detrimento de outras, mas antes articulá-las numa prosa tão coerente quanto possível, mantendo presente que mesmo as fontes denotativas são muito mais estratigráficas do que se poderia conceber. E isto é assim porque nem todos os receptores captam as categorias que conformam um modelo de senso comum da mesma forma, omitindo, deturpando, treslendo e esquecendo muito do que lhes era incutido por diversas vias.
Do ponto de vista historiográfico, se se considerarem ambas as tipologias de fontes pelo seu valor facial, as cautelas metodológicas terão de prevalecer. São ambas, cada uma à sua maneira, representações situadas e imperfeitas do passado. No entanto, se a umas subjaz uma dimensão dogmática e estabilizadora, a outras subjazerá uma dimensão onde se entrecruzam situações concretas do devir mediadas pela referida dimensão dogmática. Por exemplo, com todas as reservas factuais que se lhe possam levantar, a Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara, relata a conquista de Ceuta pelos portugueses, em 1415, isto é, debruça-se sobre um acontecimento histórico concreto. A ideologia de Cruzada que lá perpassa, a noção de reconquista de um espaço anteriormente cristão ao infiel muçulmano, nas suas mais complexas ramificações, só ganhará pleno sentido se se consultarem os principais teóricos políticos medievais e uma série de bulas papais. É, deste modo, uma fonte denotativa, que, embora integre o senso comum epocal, não se constitui como uma sua reprodutora passiva, a recepção zurariana agindo como a instância mediadora neste particular.
Em suma, a consequência historiográfica mais duradoura deste segmento pode ser subsumida na expressão instâncias de mediação. Mediação entre o devir e o senso comum. Mediação entre a dogmática e a prática. Mediação entre matrizes pré-construídas de avaliação e sua aplicabilidade. Mediação entre o senso comum e a mundividência do receptor.
4. A Dogmática antes da Prática
A despeito da necessidade de se conciliarem tanto as fontes doutrinais como as denotativas, argumentaria, citando Hespanha, que «(…) antes dos momentos pragmáticos, existem sempre momentos dogmáticos» (Hespanha 2010, 21). Esta afirmação implica que um historiador deva estudar as fontes dogmáticas antes de penetrar no universo das pragmáticas. De contrário, poder-se-ia cair no erro de ignorar as instâncias mediadoras já enunciadas, replicando a divisão artificial entre as palavras e as coisas.
Hespanha adopta uma postura combativa perante esta atitude ou, se quisermos, entre a fractura entre práticas e representações, noção que aparentemente norteia a história social, que, no seu dizer, pretere os enunciados em favor das motivações dos compositores dos mesmos, aquilo que designa, um tanto jocosamente, como os interesses.[1]
A questão é que mesmo os autores consciencializados das mediações, refracções e criações inerentes ao processo histórico e da forma como isso se reflecte na composição das fontes, voluntária ou involuntariamente, se recusam a autonomizar as palavras como objectos independentes da atenção historiográfica. Hespanha considera esta prática uma reinvenção dos perigos sociologistas, bem como uma excessiva subordinação explicativa à dimensão material do processo histórico.
O autor vai até mais longe e salienta que a diferenciação entre prática e representação mascara a ideia corrente na história social de que as formações discursivas são apropriadas socialmente pelos sujeitos, subalternizando-as e convergindo toda e qualquer explicação na determinação dos agentes. No fundo, «(…) as representações (…) cantam ociosamente, enquanto as práticas, afanosamente, constroem a história» (Hespanha 2010, 17).
Contra esta posição, Hespanha manifesta-se pela existência de «matrizes gerais de percepção, avaliação e reacção», i.e., de um senso comum com impacto profundo no processo histórico e na própria agência individual. É uma posição que, como de resto já salientei, se configura como mais empírica do que propriamente a que se lhe opõe, uma vez que, em lugar de considerar, especulativamente, quais poderiam ter sido as motivações dos agentes, explora, a contrario, os quadros mentais que moldaram os intervenientes no processo, partindo de trás para a frente. Alicerçado num modelo historiográfico, o método faz-se quase dedutivista, estimulando a produção exaustiva de indicadores seriais, de índole diversa, que se podem ou não conformar ao padrão sistémico pré-estabelecido, em suma obrigando o investigador a mergulhar nas fontes. Não se trata, portanto, de um método que inquira as fontes, tendo em consideração a inserção social, intelectual e política dos seus fautores a posteriori; ao invés, tem como objectivo facilitar a penetração no cânone mental dos redactores, a partir do estudo das categorias textualmente fixadas em literatura dogmática e doutrinária sobre as imagines mundi.
Observe-se, parenteticamente, um exemplo da minha própria investigação. Em lugar de partir da análise da documentação quinhentista per se, analisei as Etymologiae de Santo Isidoro de Sevilha, uma das obras mais duradouramente influentes na construção da imagem do mundo de que os redactores eram tributários. Só depois é que me dediquei à análise serial da documentação produzida. Nada mais inapreensível para um investigador do século XXI do que uma concepção do mundo onde não figurassem todos os continentes e onde os oceanos fossem, ptolemaicamente, contidos no seio de uma Pangeia originária.
Este reposicionamento das categorias mentais antes da análise de fontes mais «concretas» traz consigo uma consequência metodológica de grande significado: evitar inscrever o já acontecido no que ainda não acontecera, estruturando cadeias causais sitas antes de um determinado evento, encaminhando-as, inapelavelmente, para aquele acontecimento concreto. É o que se pode designar como o vício teleológico, de que não estou, evidentemente, isento. O historiador possui o passado e o futuro do problema que está a analisar: sabe o que aconteceu e o que vai acontecer depois. Por exemplo, sabe que em 1415 os portugueses conquistaram Ceuta e que a cederão oficialmente a Espanha na sequência do tratado de 1668, que encerra as guerras da Restauração; sabe que, até 1458, foi a única possessão portuguesa no Norte de África. O que deve evitar fazer é assumir estes (e quaisquer outros) acontecimentos como inevitáveis. A tentação de estabelecer nexos causais necessários entre elementos que, muitas vezes, não têm qualquer relação, é demasiado grande. Se se conquista Alcácer-Ceguer em 1458, poder-se-ia ter tomado Tânger em 1437. Aliás, era essa a principal obsessão da Coroa. A tentativa saldar-se-ia num rotundo fracasso, mas, a ter acontecido, não teria chocado ninguém. O processo histórico é marcadamente contingente: de resto, num dado momento histórico, por norma, abrem-se uma série de probabilidades que podem ou não suceder. Ceuta foi tomada, mas equacionaram-se diversas outras hipóteses antes da decisão final, nomeadamente Granada. A fragilidade política de Sancho II quase implicava o desaparecimento do jovem reino português, cem anos depois de Zamora: aliás, o reino era uma possibilidade entre outras (Fernandes 2009). Sesnando Davides foi um caudilho de fronteira muito importante do século XI, cuja carreira política alternou entre a lealdade a Fernando Magno, a Afonso VI e a Al-Mu’tadid de Sevilha, mas não prefigurava, de maneira nenhuma, a existência autonómica de Portugal, apesar de ter actuado sobretudo em Coimbra, que se tornaria, mais tarde, a sede da emergente dinastia afonsina (Ramos 2014). O condado de Coimbra não era um proto-Portugal.
Porém, a desnaturalização dos acontecimentos leva, não raras vezes, à metodologia contrafactual (já chamada também «história dos possíveis»), de inspiração norte-americana, sintetizada na conhecida expressão «What if?» No contexto da história económica, a recorrência de modelos econométricos incorpora, à partida, uma série de cenários históricos alternativos. As resultantes destes modelos levam-nos a conclusões interessantíssimas sobre assuntos muito debatidos, como o peso relativo do império no crescimento económico de Portugal, na longa duração (Costa, Palma e Reis 2015). No entanto, alargar o âmbito temático desta metodologia a outras especializações historiográficas não me parece especialmente útil. É importante ter consciência do quão frágil era a posição de Churchill em 1940, nas vésperas de Dunquerque e ainda sem o (vital) apoio norte-americano. Construir um cenário historiográfico credível em que a Batalha de Inglaterra fora perdida e os nazis haviam ocupado facilmente a Grã-Bretanha não me parece acrescentar muito à compreensão do assunto. Parece-me muito mais proveitoso frisar que ambos os cenários eram, então, muito prováveis. A rendição incondicional do Japão e a entrada das tropas soviéticas em Berlim, em 1945, selaram a vitória dos Aliados, mas a história poderia ter sido outra. É importante, parece-me, ter noção das alternativas; não é tão vital, diria, aprofundá-las.
Enquanto exercício estético, a leitura de The Plot Against America, de Philip Roth, onde se imagina, contrafactualmente, que Charles Lindbergh ganhara as eleições presidenciais de 1940 contra Franklin Delano Roosevelt e se traça o cenário daí adveniente, é fascinante e constitui uma reflexão pungente acerca dos EUA pós-11 de Setembro; outro exemplo é The Yiddish Policemen’s Union, de Michael Chabon, no qual Israel nunca existira, instalando-se os judeus, ao invés, no Alasca, falando iídiche (porque o hebraico não extravasara nunca a sua condição exclusivamente litúrgica), o que ocasiona um violento conflito em Cuba nos anos 60 (de onde decorre que a crise dos mísseis cubanos, em 1962, fora um pouco mais longe do que o que sucedeu na realidade). As reflexões sobre a natureza do estado sionista, bem como as suas tensões internas entre obediências ortodoxas diversas, são aqui exploradas. O romance Soumission, de Michel Houellebecq, ficciona a eleição do líder de um partido filo-islâmico como presidente da República, num exercício contrafactual onde se debatem (e satirizam) a situação complexa dos muçulmanos franceses e a hipocrisia da sociedade francesa tradicional. Estes exemplos, contudo, reflectem, na verdade, as preocupações dos próprios autores acerca do mundo em que lhes calhou viver (e, dada a sua natureza romanesca, não são, nem pretendem ser, livros de História); são uma manifestação do aquário da época onde germinaram. No fundo, tendo de lidar com o ocorrido, o contrafactual complica desnecessariamente as variáveis, já de si complexas, incluindo o não-acontecido ou o apenas intuído. Ter consciência de que o que aconteceu poderia não ter acontecido (a contingência), não deveria, creio, autorizar a ficcionar historiograficamente conjunturas jamais existentes.
First things first seria o adágio em língua inglesa que resumiria esta discussão. Em História, deve proceder-se de trás para a frente: antepondo o senso comum à prática (não obstante a sua relação simbiótica), evita-se a anteposição dos fins aos meios, medindo-se a probabilidade do não-acontecido. Estas atitudes propõem, desejavelmente, a desconstrução de inevitabilidades causais e de leituras teleológicas desviantes.
5. A Autonomização da História das Categorias: que Dignidade Metodológica?
É neste sentido que as categorias conceituais escapam a uma história cronológica dos seus sucessivos usos, reclamando antes uma história da gramática abstracta que dá sentido aos seus usos verificados e a verificar (…) comportando, também, aspectos sistémicos. (Hespanha 2010, 22)
No entanto, o estudo da dogmática discursiva pressupõe um método próprio. É um método contra-intuitivo, uma vez que, como sublinha Hespanha, com base no Foucault de Les Mots et les Choses, recusa a análise diacrónica dos sucessivos usos das categorias conceptuais. Hespanha prefere estudar os aspectos sistémicos da gramática abstracta dentro da qual estas fazem sentido. De facto, o autor salienta que o conceito, dado o seu carácter técnico e formalista, resiste ao perigo da apropriação social, encontrando-se, por oposição, armado de uma certa imutabilidade que, idealmente, norteará as opções dos protagonistas históricos; por outro lado, tendo as categorias «sentidos preterintencionais», i.e., dizendo mais do que querem dizer, semanticamente convocam uma miríade de sentidos não raro antagónicos ou polissémicos: Hespanha relembra, neste sentido, que nenhum ateu está à vontade com a palavra Deus e dá o exemplo de que nenhum membro da nobreza portuguesa jamais pronunciará «vermelho», mas tão-só «encarnado». Refere-se, uma vez mais, ao habitus (Bourdieu, 1984), à influência determinante que o senso comum, fundado em categorias discursivas que se pensam universais, possui na definição de comportamentos e das estruturas sociais, que já tive ocasião de debater.
Como conciliar, então, esta gramática específica com as instâncias mediadoras entre as categorias e práticas de uma época? A simbiose complexa entre ambas resulta na compreensão de que os conceitos sofrem as alterações da sociedade, mas movem-se em função de uma lógica que lhes é própria, segundo as regras do discurso onde se encontram aprisionados, nos limites do aquário onde lhes calhou viver. Como já demonstrei, podem até sobreviver e assumir significados diversos, em função das fissuras que o aquário vai sofrendo; aliás, muitas vezes sobrevivem (ainda que desligadas do sentido primevo) apesar do estilhaçamento do aquário. As categorias moldam-se e adaptam-se progressivamente, evitando vergar-se sob o peso das contradições que, face à evolução concreta do devir societário, vão começando a surgir. Em certo sentido, as «coisinhas aparentemente voláteis e frágeis que são as palavras» (Hespanha 2010, 19) possuem o grande poder de inventar, recriar e ainda readaptar a realidade social, dentro de um determinado contexto discursivo, substituível, mas resistente. Por outras palavras, o vidro do aquário, embora quebrável, não se parte assim com tanta facilidade.
Como se faz uma história assim, que descentra o indivíduo, que recusa uma matriz humanista, seja sob a forma de um sujeito individual (psicologismo, racionalismo clássico), seja sob a forma de um sujeito colectivo (sob a forma do materialismo histórico da vulgata marxista ou qualquer outro)? Foucault, ainda segundo Hespanha, encontra a história desta gramática, da constituição dos discursos, nos dispositivos materiais da produção cultural. Negando a agência individual (pelo menos metaforicamente, já que quaisquer mecanismos culturais são de lavra humana), identifica as grandes categorias do pensamento da cultura clássica europeia, relacionando-as com a evolução tipológica do pensamento (Foucault 2002). Paradigmático disto mesmo será a relação que a passagem de um pensamento argumentativo, dominante até ao século XVI, materializado na Escolástica, para um pensamento sistemático se deveu, entre outras razões, à difusão massiva da imprensa e a uma nova organização da folha escrita (Foucault 1997).
No entanto, a despeito da importância do senso comum coevo e da rigidez dos padrões comportamentais nele assentes, não deve o historiador esquecer o dinamismo intrínseco do processo histórico. Por isso, Hespanha alerta:
Os discursos não vêm do nada, nem vêm de um Todo que seja a Razão universal. Mas também não são, tão pouco, a expressão, dócil e disponível, de intenções dos sujeitos. Vêm de práticas de discurso (…) [que] fazem parte da história, mas de uma história em que, no centro, não está o Sujeito, com o seu poder de atribuição de sentido. (Hespanha 2010, 23)
Neste sentido, para além de assestarem o coûp de grace na ideia de sujeito e de intencionalidade no centro da interpretação, oferecem ao historiador a possibilidade de estudar aspectos habitualmente negligenciados e, à luz de interpretações sociologistas, negligenciáveis: «a estrutura do trabalho editorial e as suas consequências no livro, a organização da página, os tipos, o uso das maiúsculas, a divisão do texto impresso, a “ilustração” do texto, o número de páginas, o formato do livro, a organização das bibliotecas e as suas políticas de aquisições, a própria forma escrita e os significados que ela pode revestir para os seus utilizadores» (Hespanha 2010, 25-26), i.e., todo o processo de composição das obras e a forma como tal influenciou o senso comum dos receptores. Destaque também para a recusa de um ente holístico como a «Razão universal», coerente com o empirismo foucaultiano e com a desconfiança face a um transcendentalismo centrípeto.
6. A Inteligibilidade como Fim
Tudo o que tenho vindo a discutir ao longo deste ensaio não pretende ser um debate teórico ensimesmado, sem quaisquer reflexos na hermenêutica da história. O seu fim último será o de aperfeiçoar os mecanismos de compreensão do passado, por forma a torná-lo mais inteligível. Singularizá-lo enquanto objecto dotado de especificidade. Expor os regimes de verdade que faziam um determinado discurso preterir certos conceitos em favor de outros. Deslindar o que era verdadeiro e falso de acordo com os critérios particulares desse discurso. Donde a exploração de conceitos como regimes de verdade, que impunham uma matriz que impossibilitava a conceptualização de não importa o quê, não importa quando. Donde, por fim, a importância de antepor a dogmática à prática, conferindo, por essa via, uma dignidade metodológica inusitada à história das palavras.
Para tal, recorri à metáfora veyniana do aquário, reforçando o seu carácter quebrável, embora invulgarmente resistente. Parece-me agora, à guisa de conclusão, o momento de retomar a crítica que fiz acerca de como a metáfora reduz, em demasia, a liberdade colectiva do todo social e a sua relação com as instâncias mediadoras.
Se é verdade que a metodologia foucaultiana reconhece o carácter metafórico inerente à atitude metodológica de remover, programaticamente, o sujeito do centro da interpretação, não deve, porém, fazer esquecer que, por exemplo, uma nova organização da página é um produto humano. Os conceitos podem ter a sua gramática própria (que a têm), mas são, em última análise, fruto da actividade humana. O sujeito, o todo social ou qualquer outro sinónimo não podem ser sumariamente apagados. O arbítrio humano determina essas mudanças e, por isso mesmo, a constituição do arquivo de que o historiador se socorre no decurso da sua profissão está sujeito aos impulsos da actividade humana, com todas as omissões, erros, mentiras, rasuras, selecções e outros processos de falsificação da memória conexos.
O arquivo deve ser aqui entendido duplamente enquanto espaço físico foucaultiano, ancorado na análise das condições materiais da produção textual, e enquanto espaço imaterial borgiano que, no caso vertente, se prende menos com a noção de «biblioteca total» do que com a figura de Funes, el memorioso, dotado da capacidade (aparentemente) prodigiosa de nada esquecer. Se o arquivo tudo armazena, é testemunho da verdade (o acontecido) e do erro (o nunca acontecido), na adaptação da frase lapidar do Venerável Jorge de Burgos em O Nome da Rosa. Conciliar esta dimensão com as vicissitudes da acção humana induz o historiador a assumir plenamente a condição arqueológica do seu trabalho, consciencializando-o da natureza contingente dos enunciados do passado. Por outras palavras, o que sucedeu poderia não ter sucedido.
Contudo, sendo também humano, o historiador, embora escorado numa tradição concreta (num aquário disciplinar, diria), não pode ser isentado do facto de ser também uma instância mediadora entre a complexidade do passado e o trabalho que produz. Esta dificuldade contamina a escolha do tema que estuda, a forma como o estuda e as conclusões que dele extrai. O historiador é um peixinho no aquário da sua época e no aquário da sua disciplina. O exercício a que se propõe é, por definição, eminentemente impressionista. Mesmo que alicerçado numa indispensável lógica de prova que o aproxima das ciências sociais, do contágio epistémico que sofre (traduzível em terminologia como «estrutura» ou «sistema») e na existência de estados da arte periódicos que estabelecem agendas de investigação, resvalará sempre para o domínio das Humanidades. Expressa-se pela escrita e vive da escrita. Embora dotado de inequívocos laivos científicos, não deixa de ter um referente situado no pretérito, cuja acessibilidade é dificultada por muito do que tem vindo a ser discutido. Não consigo conceber a disciplina de outra forma e, ao contrário do que por vezes se sustenta, não creio que este redimensionamento ontológico a menorize enquanto sede de conhecimento ou a apouque no seu estatuto epistemológico.
Por tudo isto, o mantra referente à necessidade de não se olhar o passado à luz do presente parece-me ser um cliché intrusivo de duvidoso valor metodológico. Evidentemente que não proponho o contrário. Mas seria desonesto negar que a mundividência do sujeito é indissociável do presentismo intrínseco a qualquer operação historiográfica, conformando-se, por tal, ao regime de verdade da época. Decorre então daqui que não só a prática da história é histórica, portanto filha do seu tempo, como os temas que escolhe estudar são emanações do discurso vigente, mensurável, por exemplo, em coisas tão prosaicas como a preferência por se financiarem certos projectos de investigação em detrimento de outros. O aquário age como espartilho do senso comum, excluindo algumas ideias e incorporando outras. É por isso impossível não julgar o passado, por muito desaconselhável que tal seja. A melhor forma de tal minimizar será não ignorar esta distorção primeva.
[1] «(…) aqueles que acham — decerto vacinados pela história tradicional das ideias — que, como a história se faz de actos humanos e não de palavras é lá, nesse plano dos actos e comportamentos, que a historiografia tem de assentar arraiais» (Hespanha 2010, 15).
Bibliografia
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