Sempre uma certa frustração. Não era aquilo, afinal. Não era aquele bispo-de-coroa-amarela, não era bem aquele bando de íbis-pretas, não era aquela cria de carriça que queria encontrar. Também não era assim que deveria ter ficado a fotografia do peneireiro juvenil (Falco tinnunculus), que, no entanto, esteve praticamente a posar para a câmara durante quinze minutos. Nenhuma, aliás, das várias fotos satisfaz a ideia que já devia estar formada antes de, completamente por acaso, surgir aquele peneireiro a sobrevoar o baldio, no meio de casas, onde ninguém espera cruzar-se com uma rapina descontraída.
Os pássaros escapam. É a grande arte que eles cultivam. Forma habitual: deixar-se ou fazer-se ouvir com toda a nitidez, conservando-se ao mesmo tempo na mais absoluta invisibilidade. Até que a luz desapareça, até já não ser mesmo possível avistá-los, a não ser numa eventual fugaz silhueta. Segunda forma típica: fugir ao mais leve sinal de que se aproxima um ser com pretensão de os «observar». A grande maioria dos pássaros desconfia da observação. Em geral, é uma ideia em que não acreditam — à excepção talvez de certas aves limícolas, sempre ocupadíssimas com os seres minúsculos que bicam no meio das rochas, do lodo e das algas, indiferentes ao problema de haver ou não haver puros «observadores», bípedes altos que não querem mais nada senão vê-las. Um pilrito, uma rola-do-mar, estão ali disponíveis para grandes planos, sem causar obstáculos, salvo a velocidade inesperada a que de súbito decidem ir para outro sítio e sair do enquadramento em que nem sabiam que estavam.
A maioria dos pássaros que se deixam ouvir bem sem se deixarem ver está quase sempre a aconselhar familiares, amigos ou parentes longínquos a ficar no meio do matagal porque anda ali um intruso suspeito. Só costumam rejeitar o conselho (e, portanto, aparecer a céu aberto) os parentes longínquos, provavelmente porque não percebem a língua daquele trinado. Sei que está ali uma toutinegra (oiço-a), mas, ao fim dum bom bocado de espera, sai-me de lá (ou de lá perto) um verdilhão ou um pintassilgo. Quem é que quer saber de pintassilgos, quando anda quase com insónias por causa duma toutinegra que se mostrou uma vez no topo dum arbusto (sete segundos), outra vez razoavelmente quieta (nítido, o anel orbital vermelho!), mas no meio de tanta silva, que nem se consegue focá-la decentemente — e depois desapareceu sem abandonar o mesmo sítio?
Sim, nos pássaros é essa a lei: quem está vivo sempre desaparece. Não admira que os grandes fotógrafos insistam em paciência e camuflagem. Também não admira que fotógrafos menores gostem bastante de cartaxos e garças-reais. Os primeiros são pequenos e vaidosos e ninguém nos convence de que não têm a noção da imagem: colocam-se em sítios fantásticos para todas as virtudes básicas de uma fotografia, incluindo contrastes, nitidez, singularidade formal, equilíbrio delicado, o diabo. E nunca têm pressa. As segundas têm a paciência incluída na codificação genética, ficam paradas por destino e necessidade, elegantíssimas mesmo quando estão só a pensar no próximo peixe que tragicamente as vai confundir com um pau fora de água. Até no meio de Alenquer, no rio que também se chama Alenquer, elas ali estão, paradíssimas, e à volta, dum lado e do outro, carros circulam, famílias passeiam, um grupo discute (três dias depois) se foi ou não foi penálti: no máximo, viram levemente a cabeça, para ver se o tipo que falou mais alto nesse grupo representa alguma vaga espécie de ameaça. Já nem ligam aos peixes, ou se calhar aqueles que ali deslizam não lhes convêm à dieta. A garça-real tem qualquer coisa de insondável.
Entre outras coisas, distingue-se um fotógrafo sofrível porque resiste à camuflagem com medo do ridículo e porque continua com a paciência em limites curtos, mal treinados. Deveria resistir horas, não dura mais que minutos. Ao mesmo tempo, tem sorte: nesses minutos, uma felosa não resiste às atrações dum canteiro de estrelícias plantado nas imediações do minimercado perto de casa (sem tempo para excursões, leva a máquina para deslocações curtas, aproveitando tudo da selva urbana); um corvo-marinho decide instalar-se — e demorar — na margem do lago artificial que só costumava albergar repetitivos patos-reais e monótonas tartarugas; algumas garças pequenas poisam num recorte da lezíria e desenham-se vivamente contra a erva bem verde. Mas mal chega a esconder-se, imóvel e silencioso, à espera de espécies mais esquivas. Entedia-se, depois, com séries excessivas de melros e alvéolas-brancas guardadas no disco rígido.
Ainda assim, não vale a pena carregar na melancolia.
Era sempre outra coisa, sim, e até escrever se pode tornar uma maçada porque, entretanto, o sol abriu e quem escreve podia estar do outro lado da ponte, a ver se conseguia por fim fotografar um colhereiro ou, ao menos, revê-lo nalguma lagoa, nem que fosse pelos binóculos. Mas que importa? Sabia lá, há tão poucos anos, o que era um colhereiro. Sabia lá onde é que pousava, onde nidificava, como se distinguia, à distância, no meio de garças e flamingos. Os pássaros ensinam a olhar. Décadas a cruzar-se com verdilhões e milheirinhas (só pode ser, porque estão por todo o lado) sem nunca os ver e, o que é mais absurdo, sem os ouvir. Como é que não se ouve um Serinus serinus, também conhecido por chamariz? Que doença da atenção torna alguém surdo à singularidade dum chamariz, além de cego ao amarelo vivo dos machos? Um fotógrafo de aves pode precisar de camuflagem, mas a milheirinha está convicta de que nem precisa de se calar, quanto mais de se esconder ou de se disfarçar. Há aves que não têm paciência para nada dessas bioquices, andam aí expostas e audíveis como se o mundo fosse um lugar tranquilo. E nem precisam para isso de sofrer da co-dependência dos pombos, já tão incapazes de procurar alimento por si próprios que até as praias invadiram, como se fossem alguma espécie de gaivota. Mesmo assim, pouca gente se lembrará de ter visto ou ouvido um chamariz. «Ah isso, para mim, é tudo pardais!»
Quem fala de pássaros e os descobriu tarde na vida não tem, de facto, muitos motivos para se deixar levar pela frustração. No fim de contas, é tudo triunfos. Até o distinguir a longa distância, sem ambiguidades, um largo bando de estorninhos, ou de imediato lhes reconhecer o alarido no meio duma árvore carregada deles ao fim da tarde, se converte num prazer integral. É verdade: até em bando os pássaros conseguem ficar invisíveis e chega-se a um ponto em que dos pássaros se ama, acima de tudo, o talento da invisibilidade, quer dizer, a arte suprema de, por fim, ensinar a não ver, a não querer ver. Claro que se abre, a essa regra, a excepção de todas as aves, porque depois de ter aprendido a ver e ouvir com os pássaros, mesmo os pardais se convertem em imagens únicas, inconcebíveis, intensamente desejáveis. Mas fora dessa excepção, quem, além de observador, se tornou fotógrafo, encontra um prazer singular naquela fotografia que já aconteceu a todos, profissionais ou amadores, e que, simples ramo (ou cabo elétrico) contra fundo azul, não pode ter senão um título: «Pássaro captado no momento exato do seu desaparecimento.»
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A partir de certa altura, noto, nas fotografias que fui tirando, uma obsessão nítida: registar o olhar da ave. Deito fora uma ou duas imagens porque — embora interessantes ou até belas — lhes falta esse elemento. Guardo aquelas em que, mesmo que seja numa direção bem divergente da câmara, o olhar da ave é nítido. Podem nem ser nada de extraordinário, mas não as elimino: o olhar da ave é onde a fotografia começa a fazer sentido — e onde definitivamente o perde.
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Fiquei a conhecer as aves por causa do estuário do Tejo ou, ao contrário, foi através das aves que me apaixonei pelo estuário e, agora, pelo Tejo todo?
É as duas coisas.
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Um dos sintomas mais óbvios de pouco interesse pelas aves: o desejo de voar.
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Segunda obsessão, muito exigente do ponto de vista técnico: captar a imagem das aves em voo. É tardia, na minha experiência. À custa dela, recuperei o interesse pelas cegonhas. Mas a obsessão ainda não é suficientemente forte para me levar a estudar mais a fundo o dispositivo técnico da própria máquina fotográfica. (Os fotógrafos menores, ou medíocres, são preguiçosos. Isso não é motivo para se deixar de fotografar.)
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Dificuldade de decidir o foco de maior interesse: as aves de grande porte, sobretudo rapinas, em particular águias e abutres, ou os passeriformes? Enquanto não fotografar um chapim-de-poupa, um chapim-real, um papa-figos ou um dom-fafe, vai ser impossível saber. Não tem muito que ver com as espécies esteticamente preferidas. Porque aí a escolha (e a revelação) já está feita quase desde que tudo isto começou: o alfaiate. É o pássaro perfeito. Nota-se que foi todo ele concebido em tinta-da-china.
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Alargar o conhecimento das espécies de aves e pássaros: uma das formas ativas de recusar a estupidez (moderna) dos que admitem que, afinal, «a natureza existe» só quando uma ventania de furacão lhes leva o telhado da casa de campo ou veem, perplexos, o carro meio afundado na lama que ficou das cheias. A «natureza» obviamente nidifica no meio da «cultura». E resiste-lhe. Se é que, considerando a perspetiva dum pássaro, faz algum sentido distinguir entre natureza e cultura; dá a impressão de que levam bastante à letra a ideia da selva urbana. (Veja-se, ali pelos lados de Oeiras, o caso do mainá-de-crista.)