Nota:
Este ensaio contém verdades, ficções, inferências lógicas e considerações subjetivas. Deve ser lido como um exercício de filosofia ficcional. A componente filosófica prende-se com o tema de fundo, o problema mente-corpo, objecto de uma extensa discussão filosófica. A componente ficcional resulta do autor defender uma posição claramente indefensável.
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A realidade é a totalidade das coisas que se podem transformar. Existem duas transformações possíveis. Podemos transformar a realidade juntando duas coisas numa só ou dividindo uma coisa em duas. Qualquer outra transformação pode ser descrita como uma combinação destas transformações primitivas. Por exemplo, cortando uma laranja ao meio, obtemos as suas duas metades. Transformando a laranja, transformamos a realidade. De modo geral, o trabalho consiste em transformar a realidade. Juntando ou dividindo, ao trabalhar fazemos mais coisas.
Aparentemente, em nenhum ponto da existência existem coisas suficientes. Na raiz desta aparência reside aquilo que se pode descrever como a incompletude da realidade. A incompletude manifesta-se na forma de dúvidas existenciais, questões cujo propósito não é produzir uma transformação. Estas são questões que se levantam a elas mesmas. Eis alguns exemplos. Aqui e agora são as minhas coordenadas metafísicas, o ponto ao qual me conduziram todas as decisões passadas. Poderiam estas coordenadas ter sido outras? Estar eu agora um passo à frente e outro à esquerda? Ou noutro mundo possível?
De acordo com o realismo modal, os mundos possíveis são tão reais como o mundo actual (Lewis, 1986). O seu proponente defende que tudo aquilo que é possível no mundo actual, é actual em algum mundo possível. O actual não esgota o real e, em algum mundo possível, uma versão do meu eu está um passo à frente e outro à esquerda. Ainda assim, tal como podemos contar laranjas e as outras coisas no mundo actual, podemos contar laranjas e as outras coisas nos outros mundos possíveis. Consequentemente, mesmo que o real ultrapasse o actual, somando todas as possibilidades, podemos contar todas as coisas que existem. Ao alcançar o fim desse inventário, deparamo-nos com o limite do real.
A teoria da relatividade diz-nos que o valor 299 792 458 m/s corresponde à velocidade da luz. A teoria de tudo diz-nos que, contando todas as coisas em todos os mundos possíveis, obtemos o valor 15 747 724 136 275 002 577 605 653 961 181 555 468 044 717 914 527 116 709 366 231 425 076 185 631 031 296 coisas.[1] Ambos os valores correspondem a constantes naturais. O primeiro identifica o ponto para além do qual nada pode viajar. O segundo identifica o ponto para além do qual nada pode existir. Mas as leis do pensamento obrigam-nos a contar além deste número. Aliás, de acordo com estas leis, todo o número possui um sucessor (incluindo o infinito). Portanto, o limite da realidade não é um limite do pensamento.
O domínio do real e o domínio do mental possuem extensões distintas. Esta diferença dá origem à seguinte versão do problema mente-corpo: o corpo existe enquanto é capaz de intervir na junção e divisão de coisas. Quando já não é capaz de o fazer, o corpo deixa de existir. Por sua vez, a mente existe só e apenas quando obedece às leis do pensamento. Como corpo e mente obedecem a conjuntos de leis distintos, podemos perguntar se mente=corpo?
Antes de abordar este problema, consideremos uma questão relacionada. Como acabámos de ver, a mente possui uma extensão ilimitada. Apesar disso, a mente conhece outro género de limitações. Nomeadamente, o eu. De acordo com a sabedoria budista, o eu está na origem de todo o sofrimento (Dalai Lama, 1998). Este sentimento pode ser sempre reconduzido a um de dois pensamentos: o arrependimento em relação ao passado ou a ansiedade em relação ao futuro.
Estes pensamentos existem graças à possibilidade de livre-arbítrio, uma vez que é a possibilidade de decidir que abre a porta ao erro. Por análise conceptual, ao eliminar a possibilidade de decidir, eliminamos a possibilidade de erro. E, por contraposição, a eliminação do arrependimento e ansiedade implica a eliminação do livre-arbítrio. Neste trabalho, definimos um método cuja implementação nos permite alcançar este objectivo. Como corolário, obtemos uma resposta para a questão mente-corpo.
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O demónio de Laplace presenciou o Big Bang e, como tal, assistiu ao nascimento de cada partícula elementar (Laplace, 1840).[2] Este demónio possui uma capacidade de cálculo infalível e conhece a equação que regula a interacção de todas as coisas. Tais características permitem-lhe reconstruir o passado até ao inicio do tempo e prever o futuro até ao seu fim. A mente do demónio de Laplace habita uma dimensão eterna, onde reina a necessidade matemática. Ainda assim, esta dimensão não é imune a erros. O desejo é constitutivo da mente e um simples capricho pode derrubar uma mente capaz de conceber a teoria de tudo.
Graças à psicologia cognitiva, sabemos que certos erros resistem à informação (Kahneman, 2011). Por exemplo, um enviesamento cognitivo é capaz de tornar o objecto do desejo mais atractivo que qualquer objecto abstracto. Por isso, apesar da solidez inabalável da sua capacidade de cálculo, a capacidade de decidir do demónio de Laplace é tão falível como qualquer outra mente. Nem a mente do demónio é estranha aos pensamentos gerados pelo livre-arbítrio.
Passamos agora a argumentar a nossa solução para o problema mente-corpo. A título introdutório, note-se que o fogo não anseia arder e o vento também não se arrepende de soprar. O fogo arde porque deve arder e o vento sopra porque deve soprar. As transformações das coisas definem-se unicamente pela necessidade que lhes é própria. Quando se dá uma transformação (e não a outra), ela acontece porque deve acontecer.
As coisas possuem um conhecimento inato da distinção entre condição suficiente e condição necessária. Uma mente pode dar-se ao luxo de não conhecer esta distinção. Mas, de uma maneira ou de outra, o seguinte não pode ser ignorado. Ao passo que na mente impera o desejo, na realidade o efeito segue-se sempre da causa. Aí, a necessidade do desejo nunca é mais forte do que a necessidade das coisas.
Um corpo é uma parte da realidade, assim como as suas partes o são. O olho, em particular, vê aquilo que deve ver e não vê aquilo que não deve ver. A ilusão é um erro da mente, não do olho. A necessidade do nosso corpo é imune a qualquer tipo de ilusão. Felizmente, vivemos numa época em que a tecnologia wearable pode mediar o conflito entre desejo e necessidade.[3] Uma pulseira Fitbit, por exemplo, é capaz de detectar, medir e gravar os meus sinais vitais.[4] A necessidade própria destas coisas percorre os seus circuitos, chips e transístores, produzindo uma imagem do corpo que reflecte única e exclusivamente a realidade. A pulseira pode ser vista como um órgão extra, também ele capaz de resistir à ilusão. A imagem produzida pelos sinais vitais não possui véus. Pelo contrário, ela é completamente transparente.
As capacidades da pulseira não se limitam à construção de uma imagem do corpo. Também é capaz de emitir instruções acerca do que devemos fazer (subir mais escadas ou tomar uma bebida isotónica são exemplos), as quais estão também elas alicerçadas nos nossos sinais vitais e, portanto, na necessidade das coisas. Adicionalmente, a imagem produzida pela pulseira pode ser complementada com outros instrumentos. O anel Ōura, por exemplo, monitoriza o nosso ritmo circadiano e quantifica o sono.[5] O seu giroscópio, acelerómetro e sensores infravermelhos traduzem sonhos em bits, tornando o conteúdo onírico completamente inteligível. O anel consegue reflectir a necessidade de ainda mais coisas e, dessa maneira, complementar a imagem e instruções produzidas pela pulseira.
Encontramo-nos finalmente em condições de descrever a solução que a tecnologia wearable oferece para o problema do livre arbítrio. Pulseiras e anéis como os que acabam de ser descritos conhecem as necessidades do corpo melhor do que a mente. Além do mais, a necessidade das coisas estabelece a manutenção do corpo como o fim último da existência. Portanto, deveríamos delegar à tecnologia wearable todas as nossas escolhas acerca do que fazer. Esta opção seria a derradeira aplicação do livre-arbítrio. A partir do instante em que se processa a delegação, deixa de existir a possibilidade de erro. Consequentemente, esta opção também nos permite erradicar os pensamentos de arrependimento pelo passado e de ansiedade pelo futuro. Resolve-se assim o problema do livre-arbítrio.
Como corolário imediato deste resultado, obtemos uma solução para o problema mente-corpo. Note-se que, ao emitir as suas instruções, a tecnologia wearable limita-se a verbalizar a necessidade das coisas. Como tal, o seu vocabulário só precisa de termos naturais como VO2 max ou BPM.[6] Qualquer outro vocabulário é supérfluo para a manutenção do corpo. Delegando as nossas decisões à tecnologia, não podemos deixar de adoptar a sua linguagem natural.
Alguém poderia criticar a adopção desta linguagem pela sua (alegada) pobreza expressiva. Não nos permite questionar a realidade a nível existencial, poder-se-ia argumentar. Contudo, tal como já salientado, procurar responder a este género de questões não acrescenta nenhuma transformação à realidade. Como contra-argumento, poder-se-ia pois perguntar: qual é o valor produzido por questionar a realidade a esse nível?
Note-se que a adopção de uma linguagem natural possui vantagens inegáveis. Uma frota de carros autónomos comunica entre si por meio de uma linguagem natural e, dessa forma, dá corpo a um Leviatã automóvel capaz de optimizar a circulação nas estradas. De forma análoga, a adopção de uma linguagem natural comum a toda a humanidade permitiria uma optimização das interacções humanas. A comunicação seria directamente regulada pelos wearables e, com mente e desejos fora da equação, os avanços civilizacionais tornar-se-iam inevitáveis.
Outra vantagem da adopção da linguagem natural seria a solução do problema mente-corpo. Vimos que, sem mediação tecnológica, a diferença entre a extensão do pensamento e a extensão das coisas é não-vazia. Também vimos que esta diferença tem a sua origem na incompatibilidade que existe entre leis do pensamento e leis das coisas. Ora, sabemos que não há pensamento sem linguagem e que os limites da linguagem definem os limites do mundo (Wittgenstein, 1922). E, como acabámos de ver, uma linguagem natural está perfeitamente sincronizada com a necessidade das coisas. Portanto, por definição, um pensamento formulado em termos naturais nunca pode entrar em conflito com a necessidade das coisas. Dito de outra maneira, com a adopção da linguagem natural, elimina-se qualquer diferença entre a extensão do pensamento e a das coisas. A adesão à tecnologia wearable deixa-nos assim em condições de responder à questão mente-corpo com uma afirmação inequívoca da igualdade entre ambos os lados da equação.
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A mente humana não é imune aos véus associados ao desejo, os quais toldam a sua compreensão do real. A tecnologia, por outro lado, é imune a tudo o que não seja a necessidade das coisas. Neste trabalho, defendemos que, através da mediação tecnológica, podemos eliminar as diferenças entre mente e realidade e, no processo, resolver o problema mente-corpo.