There’s a place where lovers go
To cry their troubles away

Ricky Nelson, «Lonesome Town»

 

No princípio de Uma Fábula, António Franco Alexandre, falando através de Narciso, tem uma posição cética[1] para com o mundo, promovendo a ideia de que há algo a que não temos acesso:

É certo, julgamos sempre
olhar de frente o futuro
mas o que vemos é só
um braço de rio parado
muro de gruta pintado
a fazer vez de presente (p. 425)

Isto levanta dois problemas que estão relacionados: o primeiro é não termos acesso ao que está por detrás do muro da gruta e o segundo é que certas coisas fazem «vez de presente» quando julgamos «olhar de frente o futuro», ou seja, certas coisas bloqueiam o acesso ao futuro e tornam o nosso presente numa ilusão. Esta é uma posição cética por excelência; no entanto, como percebemos ao ler o poema, há uma cura momentânea: o sexo. Depois da consumação do ato sexual, o poeta diz:

vejo o mundo ilimitado
que a sua cegueira vê
Por isso pouco me importa
se só vejo simulacros
por trás de muros compactos
se a idade me trava o passo
e cada hora me traz
uma volta mais no laço (p. 426)

A ideia é simples: quando nos deitamos com alguém, vemos o que o outro vê. Este é um mundo que apenas parece ilimitado pois, tal como o poeta, também a pessoa deitada está cega, não tendo acesso a tudo. No entanto, por vermos aquilo que o outro vê, parece que há possibilidades infinitas, que vemos o curso completo do rio. A cura, no entanto, é momentânea e o poeta voltará às suas reflexões céticas e sentir-se-á isolado no mundo, incapaz de o ver por inteiro.

Este tema é exposto de diversas formas ao longo do poema, contudo, tem um lugar central nas reflexões sobre a poesia e as suas possibilidades. Segundo Rosa Maria Martelo, o poeta descreve o ato de fazer poemas como uma coisa avessa à viagem, uma espécie de ação anti-movimento, identificando-se a poesia como uma ilha ou uma prisão.[2] Os versos que melhor salientam esta ideia são «Agora, em ilha extrema / nativo náufrago eu / pintado de sexta-feira» (p. 429). Depois destes, propõe-se a fugir desta «ilha extrema». É necessário destacar o verso «pintado de sexta-feira», visto que, para além de ser uma referência a Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, dá-nos a entender que o poeta se pode pintar de certas coisas ou de certas personagens, ocupando diversas peles. Ao lermos «fica o sumário brutal / ter este rosto de tinta / e nenhum outro real» (p. 428), associamos a ideia de se pintar de algo com ter um «rosto de tinta» que se coaduna a certos contextos ― se a ilha extrema o torna num Sexta-Feira, as descrições do Jardim do Éden tornam-no na serpente do Éden: «rasteiro como um bicho horizontal / é na pele dos dias que deslizo» (p. 445).

Parece que o problema para com o mundo foi transferido para um problema para com o próprio poeta: agora, está preso não a ver um «muro de gruta pintado», mas a ser ele mesmo algo pintado numa folha, ou seja, palavras. Sabemos, também, que um poema depende sempre de uma boca, logo, esta face de tinta depende de alguém que a leia, pondo-nos a nós, leitores, na posição da figura que dá vida às palavras. Depois do poeta dizer que vai partir «deixar a vida / nos seus crivos entretida» (p. 433), afirma:

De ti nunca me despeço
minha sede meu senhor
tu que vês o que não digo
e o que não faço prevês
trazes a graça contigo
e o sentido que me dês (p. 433)

A sua partida não é um abandono total, havendo algo que o acompanha constantemente. Este algo, através destes versos, pode ser duas coisas: a primeira, uma figura divina que prevê coisas que o poeta ainda não fez e que vê coisas que o poeta não disse; a segunda, e a que nos parece mais verosímil, seremos nós, leitores. Recordemos que são os leitores que dão graça às palavras ao lê-las, que veem coisas que o poeta não diz e que preveem coisas não feitas pelo poeta. Estes versos descrevem o ato interpretativo. No entanto, não devemos eliminar a ideia da figura divina, visto que Franco Alexandre, um pouco mais à frente, referenciando-se a Êxodo 4, afirma:

Mas por força do desejo
e seres demónio aprendiz
acontece desta vez
ao contrário de moisés
que tu estás onde te vejo
eu estou onde não vês (p. 435)

Se é ao contrário de Moisés, que era quem estava à mostra no encontro com Deus, então, o poeta é um «moisés» de letra pequena que não é visto, enquanto nós, endereçados através do pronome «tu», ocupamos a posição de um «deus» à mostra. Não nos parece improvável que a ideia transmitida seja a de que, como Deus em várias representações artísticas ― pensemos na Anunciação, de Francesco del Cosa[3] ―, sejamos vistos debruçados não sobre o mundo, mas sobre o livro. Isto fará com que estejamos à mostra para o poeta, ocupando uma posição previsível. Ele, no entanto, continua a ter apenas um rosto de tinta.

A referência ao Êxodo não serve apenas para descrever as nossas posições no ato de leitura. Em Êxodo 4, 14-17, Deus, irado com os lamentos de Moisés depois deste lhe pedir para que escolha outro representante, afirma:

Não existe, porventura, Aarão, teu irmão, o levita? Eu sei que ele fala fluentemente. E ei-lo que sai ao teu encontro! Logo que te vir, alegrar-se-á no seu coração. Falar-lhe-ás e porás as palavras na boca dele. E Eu estarei com a tua boca e com a boca dele, e ensinar-vos-ei o que deveis fazer. Ele falará por ti ao povo: ele será para ti a boca, e tu serás deus para ele.

Nesta descrição, Deus é como um deus para Moisés e Moisés é como um deus para Aarão, surgindo uma ideia sobre processos de comunicação: aquele que põe as suas palavras na boca do outro é como um deus para com o outro. O poeta, de certa forma, põe-nos palavras na boca, devendo ser, por isso, como um deus. Este processo comunicativo tem, supostamente, a habilidade de manobrar as pessoas, ensinando-as a fazer certas coisas. Franco Alexandre, contudo, mostra-se reticente para com esta ideia.

Cremos ser proveitoso olhar para «O Captain! My Captain» (Whitman, 2006:253), que é referenciado em versos como «Meu terno e bom capitão / por ti tudo tenho escrito» (p. 436) e em «só eu sei como te deito / na minha mão debruçada» (p.428), que ecoa «Here Captain! dear father! / The arm beneath your head!», do poema já referido de Whitman. Neste poema elegíaco, também Whitman, como Franco Alexandre, fala de forma direta para o leitor, pois «capitão» é uma categoria suficientemente vaga para que nos possamos encaixar nela. Aquele que é o verso chave para fazermos sentido desta confusão é o pedido «O Captain! my Captain! rise up and hear the bells» que resulta em nada. As palavras que se tentam meter no corpo do leitor não o levantam da sua cadeira nem trazem à vida o capitão que está nos braços de Whitman, fazendo com que Franco Alexandre esteja a reescrever a citação do Êxodo: pôr palavras nas bocas dos outros não os manobra como Deus defende na citação do Êxodo. Para além disto, como já vimos, o poeta tem a face nas suas palavras, limitando-se a ser tinta. Talvez seja por isso que descreve o seu poema como «Esta canção que te dou, arbusto e fonte» (p. 446), levando-nos a acreditar que, ao contrário do arbusto por onde Deus comunica, o poema é tanto aquilo pelo qual se comunica como aquilo em que o ser que comunica se encontra, limitando-se às amarras da linguagem poética. O seu ceticismo, aqui, pode ser descrito de duas formas: as palavras não têm o poder que Deus lhes deu e o poeta não é mais do que o poema que escreve, ficando-lhe preso. A releitura que Franco Alexandre faz, através de Whitman, do processo comunicativo do Êxodo pode ser vista como uma forma de descrever o ato de leitura e a dependência inerente sofrida por quem estaria na posição de deus ao escrever o poema e ao meter palavras na boca do leitor. Isto, comparado com o facto de sermos também deuses que interpretam o poema, faz com que as posições poeta-leitor e leitor-poeta estejam em constante reversibilidade, pois num momento somos nós os deuses e no outro o poeta ocupa o lugar de deus.

Vejamos que Paul de Man, em «Autobiography as De-facement»,[4] descreve a leitura como um gesto em que se fornece uma face ao texto (a face do leitor), de forma que os poetas falem através da boca de quem lê. Com tal em mente, De Man reduz toda a leitura ao ato prosopopaico, resultando em: «namely that by making the death speak, the symmetrical structure of the trope implies, by the same token, that the living are struck dumb, frozen in their own death.»[5] Ou seja, quem lê um livro torna-se no morto da página, ocupando a posição do  livro como coisa morta quando não está a ser lido. Se há pouco éramos como deuses debruçados e víamos que o poeta é como um deus que mete palavras na boca de alguém, podemos fazer um paralelo entre a reciprocidade de posições do ato prosopopaico e a reciprocidade de posições no poema de Franco Alexandre: tal como o leitor ocupa o lugar do morto e o morto ocupa o lugar do vivo (leitor), também nós somos deuses que dão graça às palavras enquanto o poeta é o deus que nos mete palavras na boca; por sua vez, as posições em Franco Alexandre parecem ser simultâneas, ao passo que em Paul de Man parecem depender de se se está a ler ou de se se está a fazer outras coisas. Daqui nasce um gesto constante de reciprocidade de posições, sendo que este gesto, desenvolvido e teatralizado por Franco Alexandre, destaca a oscilação que há entre o texto concreto e o ato transformativo da sua leitura. O seu ceticismo parece nascer da perceção de que esta reciprocidade é dependente do leitor e não do poeta, alterando-se a sua face de acordo com quem estiver a ler o poema. O verso «pintado de sexta-feira» não é uma pintura que aconteça voluntariamente ou que seja apenas imposta pelo contexto: a pintura está dependente da face do leitor. O poeta acaba por se pintar de acordo com cada leitura. Assim se explicam os versos:

Mudas de rosto, de idade
mudas o gesto da mente
se abrindo as mãos me devassas
e em mim resta de quem és
sem memória nem promessa
um oco vácuo demente (p. 428)

Aos olhos de Franco Alexandre, mudamos de rosto pois não somos sempre os mesmos a ler o poema. Cada leitor tem o seu rosto e cada leitor tem formas diferentes de interpretar certas passagens, portanto, é normal que se devasse o poema, que apenas reste «um oco vácuo demente» «sem memória», visto que as palavras do poema não guardam coisas. Os versos «Sou-te fiel mude embora / nome corpo rosto e acto / sei-te na sombra o exacto / rumor do tempo previsto» (p. 429) recuperam bastante bem a ideia que estamos a discutir: o poema muda de rosto constantemente, no entanto, é sempre o mesmo («fiel»); ele sabe o «rumor do tempo previsto» pois o leitor lerá o que está escrito. Franco Alexandre, aqui, está a pensar, como De Man em «Autobiography as De-facement», sobre o processo de leitura. Este, por sua vez, causará ceticismo ao poeta ao compreender-se agrilhoado tanto à linguagem quanto à face de quem lê.

Estas ideias podem explicar a posição avessa à linguagem na segunda parte do poema («2. O Duplo»), em que lemos descrições sobre a força da realidade ― «A terra, o rio, são coisas sem remédio, / […] / dentro ou fora ao acordar nos ditam / como cantar ou não a horas certas» (p. 446) ― e sobre os pequenos incómodos que o poeta tem para com as palavras ― «Que vão trabalho agora de dizer / em língua escura o que diria um gesto» (p. 448). Os versos que talvez melhor caracterizem este tipo de ceticismo e esta impertinência contra as palavras são: «liberdade, porém, é não estar preso / por grade nem por lira ou cega imagem» (p. 446). Lira e grade são coisas que prendem o poeta; parece-nos que estas palavras são substituíveis por poema e olhar, pois o primeiro, como já vimos, é a tinta onde o poeta está preso e o olhar é definido como uma espécie de grade na última parte do poema:

Esqueçamos isto. Escrevias com as duas mãos
presas ao papel, como pássaros, e só o meu olhar
era gaiola, «a gaiola discreta» a fazer de janela
para um crime violento, éramos nós. […] (p. 453)

O olhar como gaiola equivale ao olhar cego que prende o poeta num mundo ilimitado depois do sexo, curando momentaneamente, como já vimos, o seu ceticismo. Várias são as vezes em que o olhar é descrito como o que enclausura o que está a ser lido ou visto, parecendo refletir uma das principais teses do filme a que se alude nos versos citados: A Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock ― em comparação com «a gaiola discreta». No filme, Jeff, personagem principal, apresenta a teoria ― por teoria dizemos gaiola, visto ser algo que enclausura a nossa visão ― de que o vizinho da frente matou a esposa; Jeff tentará convencer Lisa, a sua namorada, da verosimilhança da sua teoria. Ela acaba por acreditar nele e ambos começam a ver as coisas através desta gaiola: não é ao acaso que o filme se passa com Jeff sentado a ver de uma janela, sem se conseguir mexer dali. Está preso àquela visão, assim como ficará preso à sua teoria. O que diferencia Hitchcock de Franco Alexandre é que este continua a ser um cético, enquanto Hitchcock mostra que as nossas gaiolas, por vezes, permitem-nos chegar a verdades, por exemplo, quem é que assassinou quem.

Tudo isto que dissemos até agora leva-nos ao início, ou, melhor dizendo, à epígrafe. Ao citar Ricky Nelson, desejamos falar de um espaço onde os amantes choram as suas dores até que estas desapareçam. No caso de Franco Alexandre, esse espaço é a cama em que nos deitamos com alguém. O grande segredo, que não é assim tão secreto, é que o escritor se deita connosco, os leitores, pois, endereçando-nos, diz: «Da tua cegueira sou / desastrado escriturário» (p. 433). Esta é a mesma cegueira que apaziguou por momentos o seu ceticismo no início do poema. É no nosso olhar cego que se vê um mundo ilimitado, contudo, somos também nós que parecemos atormentá-lo por estarmos sempre a destruí-lo com a nossa face; somos nós que fazemos de «muro de gruta pintado», que fazemos «vez de presente». Nós somos a gaiola do poeta. Por motivos de reversibilidade, o poema é a nossa gaiola; temos, contudo, mais poder do que o poema, podendo parar de o ler. O poeta arranja, no final, uma solução para nos ultrapassar: se o magoamos por estar fora do poema e por lhe darmos a nossa face, em «3. Epimítio», ele transforma-nos e insere-nos no poema como personagens. Daí que a última parte comece com «Agora vai ser assim: nunca mais te verei.» (p. 453) Este «nunca mais te verei» não quer dizer que desaparecemos, mas que, pelo contrário, fomos trazidos para dentro do poema, agrilhoados à linguagem e, agora para sempre, dependentes das mãos de outrem:

e já todos me ensinam em linguagem simples
que somos mera fábula, obscuramente
inventada na rima de um qualquer
cantor sem voz batendo no teclado; (p. 460)[6]

Era uma vez um cético que ficou extremamente chateado com a sua gaiola. Então, agarrou nela e pô-la ao seu lado, para que sofressem em conjunto perenemente.

 

[1] Nota prévia: o termo cético é utilizado de forma pouco específica ao longo do artigo.

[2] Rosa Maria Martelo, «Metamorfose e Repetição: Uma Fábula, de António Franco Alexandre», Em Parte Incerta, p. 235.

[3] https://artsandculture.google.com/asset/the-annunciation/fQG94E2UYJ9y5Q

[4] Paul de Man, «Autobiography as De-facement» MLN 94, noº5 (1979), https://doi.org/10.2307/2906560.

[5] Id. ibid.: 928.

[6] Itálico nosso.

Bibliografia citada:

Alexandre, António Franco. Uma Fábula. In Poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2021.

Man, Paul de. “Autobiography as De-Facement.” MLN 94, no. 5 (1979): 919–30. https://doi.org/10.2307/2906560.

Martelo, Rosa Maria. Em Parte Incerta: Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea. Porto: Campo das Letras, 2004.

Whitman, Walt. «O Captain! My Captain!». The Complete Poems of Walt Whitman. Intr. e notas de Stephen Matterson, 253. Hertfordshire: Wordsworthe Editions, 2006.

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