Samuel Johnson, num curto ensaio, defende que a preocupação para com a fama é uma preocupação juvenil.[1] Espera-se, então, que sejam os jovens a preocuparem-se com a fama. Na literatura é pouco comum haver narradores que estão mortos; mas, nos casos em que tal acontece, o que os liga não é apenas o estarem mortos, mas o estarem preocupados com a sua fama, isto é, com a forma como são pensados pelos vivos. Ora, ter preocupações é uma coisa dos vivos e não dos mortos. Assim, estes mortos preocupados com fama não aparentam estar verdadeiramente mortos, sendo mais parecidos com jovens do que com cadáveres. Têm, no entanto, uma vantagem: visto que não podem, supostamente, agir sobre a realidade, ninguém lhes atribui responsabilidades, logo, não são responsáveis nem pelo que dizem, nem pelo que fazem.

Na obra de Vladimir Nabokov há um romance que descreve este problema de forma exímia: Desespero. Nele, Hermann Hermann (narrador) planeia o assassinato de um mendigo que (crê ele) é parecido consigo. O seu suposto intento seria receber o dinheiro do seguro de vida e depois voltar à sua vida normal. A sua preocupação verdadeira é, no entanto, artística e não financeira: «E por isso, no intuito de ser reconhecido, para justificar e para salvar o fruto do meu cérebro, para explicar ao mundo toda a profundidade da minha obra-prima, divisei a escrita do presente conto» (Nabokov, 2017:169). Hermann descreve a produção do seu «conto» (o livro escrito por Nabokov) como a reação de um artista desagradado com a receção geral do público à sua obra. Na mesma senda, compara a polícia como «o crítico literário que, à mera vista do livro de um autor cujo nome não lhe merece simpatia, decide que o livro não vale nada» (Ibidem: 166). Para Hermann, a sua obra é desvalorizada por ser ele quem a produziu, sendo a obra avaliada na relação que tem com o artista.

No sexto capítulo, a relação entre obra e autor é descrita no argumento de Hermann sobre a não existência de Deus:

Impossível admitir, por exemplo, que um Jah sério, todo sabedoria e omnipotência, pudesse empregar o seu tempo de maneira tão inane como seja brincar com marionetas e ― coisa ainda mais incongruente ― restringisse a brincadeira às horrendas leis triviais da mecânica, da química, da matemática sem nunca ― veja bem, nunca! ― mostrar a cara. (Ibidem:97) 

O narrador considera que as pessoas fazem coisas e mostram «a cara», procurando os ganhos dos seus fazeres. Neste sentido, o artista, para Hermann, é uma figura à procura de reações ao que fez. Considera, também, que ninguém deixaria o mundo nas leis triviais das ciências exatas. A trivialidade prende-se com um problema para com a falta de organização no próprio universo, não parecendo haver uma ordem intencional, ou seja, uma mente por detrás de tudo. As ciências exatas são, neste caso, vistas como descrições de coisas que apenas existem. Por oposição, o leitor depara-se com um assassino que sente a necessidade de explicar a sua intenção artística. Para Hermann, a intenção artística é, então, o único critério que valida ou invalida uma interpretação.

Sobre o mesmo problema, Hermann afirma ainda que não quer acreditar em Deus visto que «o conto de fadas sobre ele não é bem [seu], pertence a outrem, a todos os homens» (Ibid.:97). O passo citado ecoa os problemas que Nabokov tem para com ideias gerais ― em «Wretchdness of Soviet Fiction (Essay, 1926)», por exemplo, descreve de forma pejorativa a produção literária vinda da U.R.S.S., sendo as personagens figuras gerais com um perfil unidimensional: «Mas descreverem uma pessoa como tendo um perfil unidimensional ― tal não está ao nosso alcance»[2] (Nabokov, 2019:43). Este tipo de figuras são o oposto do princípio artístico de Nabokov: o artista atua de forma individual sobre o universo, reordenando-o e tornando-o um pouco seu.[3] A posição de Hermann é, no entanto, uma hipérbole da posição de Nabokov: para si (ou para este tipo de artista) coisas que não sejam «suas» não lhe suscitam interesse, ou seja, ou as coisas são como ele gosta, ou então não existem.

A obra de Hermann, contudo, ao contrário das obras de artes comuns, é um assassinato em que é verdadeiramente necessário que o morto se assemelhe ao artista, ou seja, que as coisas sejam como Hermann quer que sejam. Caso o público não veja esta parecença, a obra falha. Visto que o público não vê a semelhança, ele escreve o «conto» como uma espécie de crítica que tenta ensinar as pessoas a ver o que ele quer que elas vejam. Hermann estar preocupado com a forma como veem a sua obra é estar preocupado com a sua fama, visto que para ele são coisas indissociáveis. Ele é, segundo Johnson, alguém com preocupações juvenis. A sua atuação (o objeto artístico), que seria passar por morto, é totalmente falhada a partir do momento em que começa a escrever o seu «conto» e ambiciona, depois, publicá-lo, visto que revela que está vivo e que tem as mesmas intenções que os vivos. Assim, a obra de arte falha enquanto obra e falha devido ao artista.

O seu «conto» é, também, uma confissão especial. Primeiro, porque enquanto numa confissão quem confessa procura corrigir algo seu, Hermann procura corrigir os outros, isto é, a forma como o público vê; segundo, porque Hermann, ao contrário de quem se confessa, defende que não é ele quem fala, ou seja, que não tem a intenção de se confessar: «Pedindo embora desculpa pelo desnorte díspar do meu contar, deixai-me repetir que não sou eu quem escreve, mas a minha memória, que tem os seus próprios caprichos e regras» (Nabokov, 2017:56). O pedido de desculpas é, contudo, irónico visto ser uma desresponsabilização da forma como o texto está escrito. O narrador está apenas a distanciar-se do «conto» falhado que escreveu. Ao dizer que não é ele quem escreve, o público deixa de lhe poder atribuir falhas. Este torna-se, assim, em alguém que não tem responsabilidade do que escreve.

Todavia, no primeiro parágrafo do romance, Hermann afirma que caso não tivesse talento para a escrita não teria escrito nada; logo, é ele quem controla a obra: «Além disso, teria chamado a atenção do leitor para o facto de, caso tais capacidade, habilidade [em escrever], etc., me faltassem, não só me abster de descrever certos acontecimentos recentes como não haver nada que se descrevesse, já que, gentil leitor, nada de nada teria acontecido» (Ibid.:15). Escrever é, aqui, fazer com que coisas aconteçam na realidade. Ora, o narrador não está apenas a dizer que o «conto» não é culpa sua. Visto que escrever é tornar real, então, Hermann está a dizer que o próprio assassinato não é culpa sua. Ele é como um Deus que se desculpa por coisas que foram feitas «através» dele. A própria forma jocosa como aborda o leitor aponta para a sua superioridade sobre quem lê o livro, parecendo sentir uma certa imponência perante o crime cometido. A desresponsabilização, todavia, dura pouco tempo, visto que iria contra os princípios artísticos de Hermann, ou seja, todas as obras de arte são feitas por uma mente de modo intencional. Ele é nada mais do que um artista a tentar recolher os louros do que fez bem e a desresponsabilizar-se do que fez mal.

Eis o grito de Desespero: independentemente do que Hermann faça para tentar receber um certo apreço do público, falha. A posição de desesperado leva-o a contradizer-se constantemente, a ocupar um espaço em que está vivo porque fala e morto por necessidade. Todo o universo que vê fecha-se, assim, sobre si mesmo e o público que procurava manipular queda-se desconfiado e confuso perante o seu texto.

Tanto as tentativas de desresponsabilização quanto a atuação do morto Hermann permitem recordar as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Machado de Assis, como Nabokov, também apresenta um suposto defunto que conta a vida. No segundo capítulo, Brás Cubas (narrador) revela o seu intuito em desenvolver um emplasto (que pode ser pensado como as próprias memórias), fazendo uma confissão:

Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influi principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. (Assis, 2024:38) 

O intuito era ser famoso. Dizer que gostaria de ser famoso é, no entanto, uma coisa reprovável pelos seus pares, tendo sido necessário que morresse para poder confessar esta intenção. O narrador conta, também, que quando era mais novo, de forma a vingar-se do Dr. Vilaça (personagem que o incomodou), revela perante as pessoas que estão numa festa que «O Dr. Vilaça deu um beijo em D. Eusébia!» (Ibidem:69). Como consequência, «a estupefação imobilizou a todos; os olhos espraiavam-se a uma e outra banda; trocavam-se sorrisos, segredos, à socapa» (Ibid.:69). Expor coisas de pessoas em público leva a que as pessoas sejam julgadas pelo público. O julgamento do público acaba por influenciar a vida das pessoas, podendo denegri-las com as suas descrições, ou louvá-las.

Brás Cubas não sofre consequências nem devido ao que diz na festa, nem devido à confissão de que gostava de ter sido famoso. Crianças e mortos, ao que aparentam, não sofrem consequências devido ao que dizem e fazem. O motivo comum para isto é que as crianças supostamente não têm perceção do que dizem e os mortos, caso estejam mesmo mortos, não podem influenciar a realidade, ou seja, não se pede responsabilidades aos mortos. Isto, no entanto, é falso. A criança Brás Cubas sabe o que está a fazer ao expor o Dr. Vilaça: revelar uma coisa que seria um segredo e que faria parte do mundo privado de Vilaça. Por outro lado, enquanto defunto, ao descrever o emplasto, Brás Cubas apresenta aquilo que quer alcançar ao escrever as suas memórias: «De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: ― amor da glória» (Ibid.:39). Utilizando a terminologia de Johnson, Brás Cubas é um defunto com intenções juvenis.

A preocupação de Brás Cubas ― «amor da glória» ― não é tanto a procura da imortalidade através da fama (mesmo que este seja um dos temas do romance), mas a tentativa de manobrar a forma como as pessoas se lembram dele. Esta preocupação é similar à preocupação de Hermann: influenciar a forma como as pessoas pensam nele. Por sua vez, ambas as personagens desresponsabilizam-se do que dizem e fazem: Brás Cubas dizendo que está morto e Hermann afirmando que não tem intenções sobre aquilo que faz, isto é, não ter sido mesmo ele quem fez o que quer que fosse. Parece, com isto, que para revelar que se está preocupado com a fama é necessário estar morto ou inerte. O que fazem, contudo, mostra que estão claramente vivos.

Brás Cubas é reescrito por Nabokov na personagem de Hermann Hermann. Também ele (Brás Cubas) é uma personagem em «desespero», que conclui as suas memórias com a preocupação que tem para com a sua falta de legado: «porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: ― Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.» (Ibid.:341) Visto que o romance é a vida de Brás Cubas, não é descabido considerar que é este o seu legado. O leitor, ao ler o livro, recebe o legado de Brás Cubas, tornando-se no seu filho. As memórias são então uma espécie de batismo em que o leitor recebe o papel de filho que preserva e reformula a imagem que tem do pai. Também o romance de Nabokov é um processo de conversão através de uma confissão. Nele, Hermann procura manipular a visão das pessoas de forma a convertê-las num público que carregue o seu legado, isto é, a forma como se deve ver a obra e se o deve ver a ele. Públicos e filhos são, aqui, espécies de templários que mantêm a imagem de pais e artistas perante pessoas que as querem deturpar. Hermann, por sua vez, é uma hipérbole de Brás Cubas: recusa todas as descrições de outras pessoas.

A reescrita que Nabokov faz de Brás Cubas, por sua vez, acrescenta mais um argumento: é que Brás Cubas não é verdadeiramente um morto, mas alguém a fazer-se passar por morto. Da mesma forma que Hermann está a fingir-se de morto, revelando que está vivo ao escrever o «conto», também Brás Cubas revela que não está morto visto que escreve, também, o seu conto.

Estes dois falsos mortos têm preocupações bastante similares e formas de falar parecidas. Há, ainda, um outro caso de um morto que aparenta estar vivo que vale a pena recordar: o Caçador Graco, de Franz Kafka («Textos sobre o Tema do Caçador Graco»). Ao contrário das outras duas personagens, que aparentam gostar de serem falsos mortos, Graco mostra-se desagradado com o seu destino: «Assim, eu, que queria apenas viver nas montanhas, vou viajando depois da minha morte por todos os países do mundo» (Kafka, 2023:239). Graco recebe exatamente o oposto daquilo que desejava: estabilidade. Como pequena solução, repete constantemente que é «o caçador Graco, a [sua] terra natal é a Floresta Negra, na Alemanha» (Ibid.:240). Dizer de onde é cria uma espécie de farol nas suas viagens: independentemente de onde esteja, sabe que vem da «Floresta Negra».

Graco, por sua vez, também se preocupa com aquilo que dizem e pensam sobre si. Num dos diálogos, o visitante que fala com Graco diz que:

Por muito estranho que te pareça [a Graco], eu próprio me admiro com isso, mas é assim mesmo, tu não és alvo de conversa na cidade, ainda que se fale de muitas coisas, tu não fazes parte delas, o mundo segue o seu curso, mas até agora nunca notei que se tenham cruzado. (Ibid.:243) 

As pessoas não falam de Graco, ou seja, ou não o conhecem ou não têm interesse nele. De certa forma, é como se Graco estivesse morto para toda a gente menos para si. Ora, Graco reage com incredulidade para com o que o visitante diz, afirmando que toda a gente sabe que ele é Graco da «Floresta Negra». A preocupação para com a sua fama prende-se com saberem a sua história, ou seja, o seu legado. Graco, como as outras duas personagens, também se preocupa com a imagem que as pessoas têm dele. A função desta imagem parece ser a de contrariar o movimento infinito de Graco, isto é, ao todos saberem que ele é Graco da «Floresta Negra», Graco passa a ocupar, para sempre, a «Floresta Negra», quebrando esta sua quase-peregrinação depois da morte. Graco é um morto que tenta construir a sua sepultura através do seu legado. A sepultura é um espaço por si ocupado.

As três personagens têm preocupações juvenis, e ter preocupações juvenis é ser-se como um jovem. Nos três casos, ser como um jovem é tentar que os outros pensem neles de uma forma específica, ocupando um espaço no imaginário do público. Hermann Hermann, Brás Cubas e Graco, quando confrontados uns com os outros, mostram que talvez ser jovem seja ser como um morto, ou, melhor dizendo, que ser jovem é estar morto.

[1] Ver: Samuel Johnson, «Ilusões Juvenis», Ensaios sobre a Virtude e a Felicidade, int., trad. e notas de Pedro Galvão (Silveira: E-Primatur, 2024), 51-4.

[2] Trad. do autor: «But to cut oneself like a one-dimensional profile―that’s beyond us.»

[3] É importante destacar que a aproximação entre Nabokov e Hermann não implica, no entanto, que um seja a alegoria do outro; mostra apenas que as personagens de Nabokov têm ideias suas.

Bibliografia citada:

Assis, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Lisboa: Tinta-da-China, 2023.

Johnson, Samuel. Ensaios sobre a Virtude & a Felicidade. Silveira: E-Primatur, 2024.

Kafka, Franz. Todos os Contos, trad. Álvaro Gonçalves. Porto: Livros do Brasil, 2023.

Nabokov, Vladimir. Desespero, trad. Telma Costa. Lisboa: Relógio D’Água, 2017.

Nabokov, Vladimir. Think, Write, Speak, trad. ed. Bryan Boyd & Anastasia Tolstoy.  London:  Alfred A. Knopf, 2019.

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