O «Caracóis» estava sentado com a cabeça entre as mãos, os cotovelos na mesa, e os olhos cegamente fixos na porta entreaberta. A luz do sol daquela tarde espalhava-se em raios dourados por entre as filas de carteiras vazias. As janelas estavam abertas e com a luz do sol entravam as cantorias dos pássaros, o zumbido contínuo dos insectos, e, de vez em quando, uma exaltação ruidosa, breve.

No recreio, sob o mais azul dos céus, com uma brisa fresca perfumada pelos trevos a refrescar-lhes as testas suadas, os rapazes da Escola Willard jogavam a terceira, e decisiva, partida de basebol contra os nove da Academia Durham.[1] Mas o Caracóis não ouvia os vivas nem estava com a cabeça no jogo.

O nome verdadeiro do Caracóis era Isaac Newton Stone. Tirara o curso de «A. M.»[2] em Junho passado, numa universidade do Oeste, e acrescentara o seu nome à longa lista daqueles que querem ser professores.

À medida que o Verão avançara, a sua esperança diminuíra. Em Setembro deu por si sem colocação. Ao longo do Outono e do início do Inverno, esperou, chamando a si a filosofia ainda possível, estudando afincadamente com vista à obtenção de um doutoramento.

Então, em Fevereiro, uma vaga imprevista na Escola Willard deu-lhe o lugar de leitor de grego e alemão.

Na Willard, é uma questão de princípio praxar os professores novos. Não foi feita excepção no caso de Isaac Newton Stone, A. M.

Tinha 23 anos, mas parecia muito mais novo. Era pequeno, franzino e seco, com olhos de um azul pálido, nariz arrebitado e pele viçosa branca e rosada. O cabelo era de um tom indeterminado, entre castanho e cor de areia, e formava caracóis apertados junto à cabeça, como os de um bebé. Três dias depois da sua chegada à Willard, ficara universalmente conhecido como Caracóis.

Guiados pela experiência, os professores anteriores da Willard, mesmo sem entusiasmo, tinham tolerado o processo da praxe com bom humor, pelo menos aparentemente. Mas o Caracóis, um novato, sentiu a autoridade ameaçada, a dignidade atacada. Os cabecilhas do acto, cinco ao todo, demoraram precisamente dois segundos a serem suspensos.

A turma ficou atónita. Nunca tal tinha acontecido. A praxe foi morta e enterrada e o Caracóis saltou subitamente para a fama, enquanto tirano.

Caracóis não se prestava minimamente ao papel de déspota de mão de ferro, nem o desejava, mas tendo-o adoptado a dado momento, tinha por força de continuar a desempenhá-lo. Nem por um momento se atrevia a desfranzir o sobrolho; inspirar medo era o único caminho a seguir.

O quadro da Escola, entretanto, observava estes acontecimentos com descontentamento. Por uma ou duas vezes, os castigos do Caracóis não foram avante. Em Maio, foi informado de que, caso não conseguisse manter a disciplina sem tal severidade, ver-se-iam forçados à obrigação dolorosa de pedir a sua demissão. A escolha dele para o lugar tinha sido levada a cabo à laia de experiência, explicou-lhe gentilmente o director, e a todas as experiências fracassadas tinha, naturalmente, de se lhes dar um fim.

A experiência fracassara. Estávamos em Junho e o Dia dos Finalistas era já daí a duas semanas. Esta manhã tinha havido problemas na aula de alemão e, como resultado disso, dois alunos tinham sido suspensos. Dar-se o caso de um deles, o Rogers, ser o melhor lançador[3] da Escola, e de a ausência das suas qualidades implicar com toda a probabilidade a derrota dos nove de Willard neste jogo decisivo, constituía um infortúnio lamentável. Sem dúvida que o Rogers mereceu o castigo que teve, mas a Escola não levou isso em consideração, e a indignação foi generalizada.

O próprio Caracóis, sentado na sala de aula silenciosa, reconheceu, por fim, o fracasso. Olhou para o relógio. Passavam quinze minutos das três da tarde. Com um suspiro, chegou até si o papel, mergulhou a caneta no tinteiro e começou a escrever.

A carta era breve, mas mesmo assim levou-lhe quase dez minutos a escrever. Quando por fim a terminou, faltando apenas a assinatura, leu-a de seguida. Não tentara explicar-se ou desculpar-se; antes agradecera aos membros do quadro pela sua gentileza e paciência, lamentando tê-los desiludido e implorando-lhes que aceitassem a sua demissão. Despediu-se com «Respeitosos cumprimentos, Isaac Newton Stone», selou a carta e endereçou-a ao director.

Feito isto, juntou os seus livros, pegou no chapéu e desceu do estrado. O corredor fazia eco e ouviram-se passos: uma cara corada e transpirada espreitou pela porta. De seguida, um rapaz de dezasseis anos apressou-se pela sala adentro.

— Senhor Stone, professor — exclamou —, pode ajudar-nos? É o início da sexta entrada[4] e a pontuação está 8-6 a nosso favor. Atiraram o Willings para fora da área,[5] professor, e não temos mais ninguém. O primo do Apthorpe diz que consegue lançar, e… e queremos saber se vem jogar connosco, professor — terminou ele já a faltar-lhe o ar.

— Mas… Não estou a conseguir perceber.

— Então, professor, conseguimos aguentá-los até à quinta, mas depois fizeram seis pontos.[6] Talvez tenham marcado mais. Se pudesse vir já!

— Mas, Turner, quem é que disse que eu sabia lançar?

— O primo do Tom Apthorpe, professor. Ele veio para domingo.

— Mas como é que ele soube?

— Bem, professor, ele conheceu-o no liceu, e…

— Como é que ele se chama?

— Harris, professor. Ele disse…

— Jack Harris! — os olhos do leitor iluminaram-se. Atirou os livros para a mesa. — Volta para lá a correr e diz-lhes que vou assim que deixar esta carta no gabinete do Dr. Willard.

Ouviram-se vivas do recreio. Não eram vivas pela Willard. O Turner escutou, desiludido.

— Não pode vir já, professor? — implorou. — Pode ser demasiado tarde. Eles estão a bater como nunca se viu. Não pode deixar lá a carta depois, professor?  

— Bem, talvez possa — disse o Caracóis. Meteu-a no bolso, pôs o chapéu e avançou a passos largos em direcção à porta. — Anda, Turner!

Ao longo do terreiro do recreio, debaixo dos ulmeiros, estavam os espectadores — os rapazes de ambas as escolas e os amigos deles. No sopé do terreiro, mesmo por trás da primeira base, um toldo às riscas resguardava do sol um pequeno grupo de professores e as respectivas famílias. No campo, estavam espalhados os jogadores que envergavam as meias azuis da Willard, e num banco por trás da terceira base, uma fila de rapazes que vestiam as camisolas vermelhas da Academia Durham esperava a sua vez ao taco. Foi esta a vista de Caracóis ao atravessar o terreiro.

Até que um homem alto e de ombros largos se dirigiu a ele com um sorriso aberto e a mão estendida. Caracóis reconheceu Harris e desceu prontamente os degraus para o cumprimentar. Tinham sido pouco mais do que conhecidos no liceu; hoje, contudo, cumprimentaram-se como amigos de longa data.

— Nunca pensei encontrar-te por aqui, Stone — disse Harris. — Estou terrivelmente contente por te ver outra vez. És extremamente necessário. O Tom Apthorpe, o meu primo, estava a lamentar-se por não haver ninguém para lançar. Vi que a Durham estava a jogar com o professor de matemática na primeira base, e perguntei-lhe se não havia nenhum membro do quadro que pudesse substituir o Willings. O Willings está acabado, como podes ver. O Tom disse que não havia mais ninguém, a não ser — o Harris fez uma pausa e esboçou um sorriso — a não ser o Caracóis. Ele não fazia ideia se sabias jogar ou não. Perguntas subsequentes revelaram o facto extraordinário de que esse tal de «Caracóis» era nada mais nada menos que Newt Stone, o lançador e batedor estrela na nossa velha turma de nove. Disse-lhe para se despachar e trazer-te. Por isso, pelo amor de Deus, Stone, mete-te no monte[7] e elimina[8] esses rapazes de Durham! A pontuação está 8-8, e se metem aquele homem na segunda vão agarrar uma boa vantagem no jogo e no campeonato.

— Receio que não esteja em forma — contrapôs Caracóis. — Há dois anos que não pego numa bola, mas farei o possível. Espero que depois possas vir ao meu quarto para falarmos um pouco, se não tiveres nada melhor para fazer.

Tinha sido pedido desconto de tempo e o Apthorpe, que era simultaneamente o capitão e o receptor,[9] correu até eles.              

— É muito generoso da sua parte, professor Stone — disse, passando a mão pela cara para limpar o suor. — Acho que os rapazes, nós, não temos muito o direito de lhe pedir que nos ajude, mas se o fizer pela Escola, toda a gente ficará extremamente satisfeita.

«Pela Escola!» Caracóis ponderou amargamente no que a Escola fizera por ele para que agora corresse a salvá-la. Mas apenas respondeu de modo sério:

— Farei o possível, Apthorpe.

Livrou-se do casaco e do colete e apertou o cinto. De seguida atravessou o diamante[10] e apanhou uma bola do chão.

Na bancada do terreiro, um rapaz empunhando uma bandeira azul e branca levantou-se num pulo e, por entre uma onda de aplausos da plateia acima de si, pediu «três vivas pelo Carac… pelo professor Stone!» Foi impossível conter as gargalhadas, mas os vivas que se seguiram foram sentidos.

O batedor saiu da sua área[11] e Caracol fez meia-dúzia de lançamentos a Apthorpe para se ambientar. Depois os dois aproximaram-se e combinaram alguns sinais simples, o árbitro gritou «Jogo!» e a partida recomeçou.

Estava-se na primeira parte da sexta entrada; a pontuação era 8-8; havia um homem eliminado, um homem na segunda, e o defesa esquerdo[12] de Durham estava ao taco.

Caracóis observou o campo, dirigiu um relance despreocupado ao homem na segunda, virou-se e lançou uma bola rápida e directa à base de partida. Os jogadores de Durham ansiavam precisamente por esse lançamento, e o batedor bateu uma bola limpa e longa, até ao campo exterior entre a primeira e a segunda.

Quando o novo lançador apanhou a bola outra vez, o homem na segunda tinha alcançado a terceira, e o defesa esquerdo de Durham estava aos saltos na primeira.

O próximo homem a entrar por Durham era o receptor. Caracóis esforçou-se por apagar os dois anos de intervalo e tentou imaginar-se de volta ao liceu, a lançar pelo seu ano na final do campeonato. Mas, oh! O braço parecia madeira e a articulação rangia de cada vez que lançava.

Houve um lançamento descontrolado que não deu em falta por no último segundo Apthorpe ter feito uma magnífica recepção; depois o batedor bateu uma bola alta para o campo interior e foi eliminado.[13]

— Dois fora, rapazes! — gritou o capitão.   

O homem na primeira chegou à segunda ileso, e os treinadores da Durham enrouqueceram de tanta gritaria. Mas não era da natureza de Caracóis deixar-se afectar por tão pouco; além disso, sentia o braço a ficar mais flexível. Comprimiu os lábios e lançou a bola.

— Falta[14]! — gritou o árbitro.

A claque da Willard bradou vivas intensos. Veio uma bola. Depois outra falta. Depois o batedor lançou-se com tudo o que tinha a uma bola lenta, curva — e falhou-a.

— Batedor fora! — anunciou o árbitro.

Os de Willard ergueram-se como se fossem um só corpo e aplaudiram até não poderem mais. Debaixo do toldo, o director e os restantes membros deixaram a dignidade de lado por uns instantes e juntaram os seus berros à aclamação geral. O novo lançador, com os olhos a brilhar, retirou-se para o banco.

À medida que se juntavam a ele, os defesas lançavam-lhe olhares curiosos e de admiração. O Harris encostou-se ao banco e os dois começaram a falar das peripécias passadas dos jogos do liceu. Os rapazes ao lado deles escutavam, o professor de cabelo encaracolado transformando-se diante dos seus olhos num herói desportivo. 

A última da sexta entrada terminou sem que ninguém marcasse. Por mais bonita de ver que tivesse sido, a primeira da sétima não ficaria para a história. Nenhum jogador de Durham conseguira chegar à primeira base. Um… dois… três… foi como foram sendo eliminados.             

O braço do Caracóis trabalhava agora como uma peça de engrenagem muito bem oleada, e as outshoots, incurves e drops[15] que atirava a várias velocidades para as mãos do Apthorpe davam com o inimigo em doido.

A segunda parte não foi muito melhor. É certo que o Apthorpe bateu uma bola alta para lá do alcance do defesa direito de Durham, e conseguiu chegar à primeira base, e o Riding fê-lo avançar com um sacrifício impecável,[16] mas não tinha nenhuma hipótese de marcar.

O melhor batedor de Durham era o Mansfield, o professor, que jogava na primeira base. Não se sabia exactamente quando é que este hábito peculiar de recrutar jogadores de futebol e de basebol dos quadros tinha aparecido em Willard e em Durham; mas era um privilégio de que cada uma usufruía e fazia uso sempre que possível.        

Até este momento, ao longo daquele ano, e talvez pela primeira vez, a equipa da Willard tinha sido exclusivamente composta por alunos. Por outro lado, o Mansfield jogara por Durham durante toda a Primavera, e bem se pode atribuir às suas extraordinárias defesas e batimentos a vitória no segundo de três jogos.

Era um jogador muito experiente; na oitava entrada, quando veio bater, bateu e chegou à terceira base. A pequena facção de durhamistas guinchou de alegria e as bandeiras de vermelho-vivo e branco foram agitadas.

Caracóis enfrentou o batedor seguinte, testou-o com uma «drop», a que ele prontamente se fez e falhou, e de seguida dirigiu a sua atenção ao Mansfield na terceira. Observou-o pelo canto do olho e lançou de novo. O árbitro anunciou outra falta.

Apthorpe devolveu a bola ao lançador. Caracóis deixou-a cair, recuperou-a e lançou-a rapidamente para a terceira base.

Corpos grandes movem-se lentamente. O Mansfield foi apanhado a um metro da base.[17] Retirou-se, humilhado, enquanto a Willard em peso aplaudia em êxtase. Então o batedor foi eliminado numa drop lenta.

O homem da terceira conseguiu um batimento lento e saiu à primeira.

Na segunda metade da entrada, o Caracóis foi o centro das atenções no banco dos jogadores. Pouco a pouco, a timidez dissipou-se e os rapazes começaram a manifestar o seu entusiasmo. Quem lhes dera ter sabido mais cedo, na Primavera, que ele jogava tão bem. Iria fazer parte da equipa no próximo ano, certo?

Caracóis lembrou-se da carta que tinha no bolso e suspirou.

Mais uma vez, Willard não conseguiu pôr um homem a passar pela base de partida, embora a dado momento tenha havido um jogador na terceira. A nona entrada começara com a pontuação ainda nos 8-8. Os espectadores sugeriram dez entradas, recordando disputas intermináveis do passado.

O Caracóis tinha encontrado o seu ritmo, nas palavras de Harris. Tinha a camisola branca suja do pó da batalha; os sapatos cinzentos e coçados; as madeixas encaracoladas ensopadas e coladas à testa; mas os olhos azuis brilhavam, e, enquanto suspendia a bola no ar, balançando-se antes do lançamento, deixara de parecer ridículo.

Harris, observando-o a partir do banco, concedeu-lhe uma admiração sem reservas.

— O bom do velho «Newt» Stone! — murmurou. — No final de contas, são os mais pequenos que têm garra! 

Mas, só por si, a garra não teria bastado para eliminar Durham naquela entrada. Era preciso ciência, e ciência era algo que o Caracóis tinha. Ele não se esquecera daquele velho truque de «apalpar» o batedor. Na verdade, percebeu que não se esquecera de nada. 

Na primeira parte daquela nona entrada, foi de Durham o esforço mais estrénuo da disputa. Poderia ser a última oportunidade de marcar. O primeiro homem foi eliminado de modo tão inglório quanto os que lhe antecederam; mas o segundo batedor, depois de bater inúmeras faltas, bateu um bunt lento e chegou à base.[18]

Com isto, os apoiantes da Durham ganharam alento e os ânimos exaltaram-se outra vez. E então o destino adoçou a boca aos camisolas de vermelho-vivo e branco.

A bola atingiu o cotovelo do homem na terceira, que galopou alegremente até à primeira, enquanto o jogador em frente seguia para a segunda.[19] Mas o Caracóis apanhou o jogador na primeira a dormir a sesta, e o batedor seguinte foi eliminado. Os meias-azuis saíram do campo.

— Stone no taco! — anunciou o anotador.[20] — Brown no deque![21]     

— Um ponto seria o bastante, professor — disse o Apthorpe, em ânsias.

— Um desses home runs[22] à antiga, Newt — disse Harris, a rir.

Caracóis avançou para a base de partida e ficou lá, a balançar o taco até ao ombro, de modo a parecer uma atitude completamente deliberada ao lançador exausto de Durham.

Da bancada vieram vivas encorajadores para o «Professor Stone». Não esboçou qualquer reacção ao primeiro lançamento, que estava fora de alcance. Depois veio uma falta.

Os espectadores agitavam-se nos assentos; o campo estava praticamente imóvel. De repente, taco e bola encontraram-se com um estalido seco, e o Caracóis correu para a primeira.

Tocou a base e acelerou, virou numa curva rápida e partiu para a segunda. O defesa central apanhou a bola e estava prestes a lançá-la.

A janela era curta, mas quando Caracóis se esgatanhou para se levantar depois de ter deslizado, o árbitro baixou a mão. Estava salvo. Da bancada e da linha de base[23] gritaram-se vivas por Willard.

Mas o batedor seguinte foi eliminado de modo miserável. O outro tentou um sacrifício e não só foi eliminado como não conseguiu fazer avançar o homem na base.

Vendo que nenhuma ajuda estava a caminho, Caracóis avançou, disparando que nem uma bala ao sinal do braço do lançador, levantando-se são e salvo por entre uma nuvem de pó na terceira.

O Apthorpe tomou o lugar no taco, exausto mas determinado. Caracóis, na terceira, disparava para a frente e para trás a cada movimento do braço do lançador. Com duas bolas a seu favor, Apthorpe pensou que era agora, e bateu agilmente uma outshoot.

O resultado — bateu em vão — pareceu tê-lo deixado sem alento. Apontou à próxima bola, falhando outra vez.

Mas lá deu com a bola seguinte, dirigindo-a de maneira rápida e certeira para o lançador.

O Caracóis estava a três metros da base quando a bola deu com o taco. Parou, preparado para seguir em frente ou correr para trás, e viu o lançador tentar agarrá-la, deixar cair a bola como se fosse um bocado de carvão quente e baixar-se para apanhá-la.

Então Caracóis juntou o queixo ao peito, accionou os braços como se fossem pistões e as pernas como se fossem eixos de transmissão, e voou ao longo da linha. 

A seu lado corria um treinador a gritar palavras estridentes e inúteis. A toda a sua volta soavam gritos, ordens, súplicas, confusos, sem sentido. A três metros da base de partida lançou-se pelo espaço, com os braços esticados. Tinha pó nos olhos e nas narinas.

Apalpou um canto da base. No mesmo instante, ouviu acima de si o baque da bola na luva do receptor, o silvo do braço a baixar em curva, e…

— Salvo na base! — gritou o árbitro.

Na segunda, o Apthorpe estava sentado em cima do saco, a bater alegremente com os calcanhares no chão. No banco, o anotador desenhava pontos grandes e tremelicados na folha. Reinava a balbúrdia. Os nove da casa haviam ganho o jogo e o campeonato.

O Caracóis levantou-se num pulo, sacudiu as roupas em desalinho e caminhou em direcção aos braços de Harris.       

— O melhor roubo que já fizeste! — exclamou Harris, dando-lhe palmadas nas costas. À medida que se dirigia para o banco, ouviu um rapaz entusiasmado e transpirado a anunciar com orgulho: «É ele que me dá grego!»

Dois minutos depois, as bandeiras vermelho-vivo da Durham partiam, agitando-se destemidamente perante a derrota.

A Willard inteira dançava pelo terreiro, a gritar e a cantar. Tinham em sua posse uma bola imunda e sovada, bola que no dia seguinte teria a inscrição «9 a 8» e estaria orgulhosamente suspensa por trás de uma moldura de vidro na sala dos troféus.

O Caracóis e o Harris sentaram-se ao lado um do outro no quarto do primeiro. Era depois do jantar. Caracóis pegava numa carta selada e endereçada, que virava e revirava hesitantemente.

— Quer dizer que… se estivesses no meu lugar… e dadas as circunstâncias… não… não a entregavas? — perguntou.

— Dá-ma cá, se fazes o favor — disse Harris, determinado.

Rasgou a carta de uma ponta à outra e atirou os pedaços para o caixote do lixo.

— É a única coisa a fazer com isto — disse.

Nos dois anos que se passaram desde esse momento, e em que tem vindo a triunfar como professor, Caracóis dá por si a concordar cada vez mais com Harris. 

[1] «Os nove de» é uma expressão que se refere ao número de jogadores titulares numa equipa de basebol. (N. de T.)

[2] Abreviatura de Artium Magister, ou Master of Arts. (N. de T.)

[3] «Lançador» está por pitcher; sempre que possível, tentou traduzir-se os termos técnicos do basebol para português e acompanhá-los com notas de rodapé que ajudem a perceber a mecânica de um jogo pouco popular em Portugal. (N. de T.)

[4] Traduz-se aqui inning por «entrada»; cada entrada é composta por duas metades, uma primeira em que a equipa da casa defende, e uma segunda parte em que os papéis se invertem (cada parte de uma entrada termina quando três jogadores da equipa que ataca são eliminados). (N. de T.)

[5] «Área» está aqui por box, que por sua vez está por batter’s box, referência a duas zonas delimitadas, uma para destros e outra para canhotos, na qual o batedor tem de se colocar para tentar bater na bola que lhe é arremessada pelo lançador. (N. de T.)

[6] Traduz-se aqui run por «pontos», no sentido em que um jogador completa a corrida pela primeira, segunda e terceira bases, chegando depois à base de partida, o que perfaz um ponto. (N. de T.)

[7] «Monte» está aqui por box, que por sua vez se refere ao pitcher’s mound, a zona delimintada e ligeiramente mais elevada onde o lançador se coloca para arremessar a bola. (N. de T.)

[8] «Elimina» está aqui por strike out, referência à eliminação de um jogador por acumulação de faltas (são necessárias três eliminações para que uma equipa passe da posição de defesa para o ataque).

[9] «Receptor» está aqui por catcher, o jogador da equipa que defende que se posiciona imediatamente atrás do batedor. (N. de T.)

[10] Referência à forma que tem o campo de basebol. (N. de T.)

[11] Neste caso, ao sair da sua área, o batedor faz um gesto de cortesia para que o novo lançador possa arremessar algumas bolas para aquecer o braço antes de se reatar o jogo. (N. de T.)

[12] «Defesa esquerdo» está aqui por left fielder, o jogador que em situação de defesa se coloca na zona de campo exterior ao diamante para tentar apanhar as bolas batidas pela equipa que ataca. (N. de T.)

[13] Neste passo fazem-se referência a algumas expressões típicas do basebol: um wild pitch traduz-se por «lançamento descontrolado»; quando uma bola lançada sai fora de uma área rectangular imaginária onde deve ser batida, o árbitro considera falta e chama «bola»; quando o lançador comete quatro faltas deste tipo, é permitido ao batedor avançar para a primeira base. Aqui, refere-se um movimento de defesa do receptor que, ao deslocar o seu corpo de maneira subtil quando faz o movimento para apanhar a bola, pode induzir o árbitro em erro, fazendo crer que a bola passou pela tal área rectangular imaginária quando de facto isso não aconteceu. Por fim, refere-se uma fly ball, traduzido aqui por «bola alta»; quando a equipa que defende apanha uma bola batida pelo batedor da equipa atacante antes de esta cair no chão, o batedor da equipa atacante é eliminado; ora, bolas altas são, por definição, bolas mais fáceis de apanhar sem cair no chão e quando se usa a expressão pretende-se dizer que o batedor está eliminado. (N. de T.)

[14] «Falta» está aqui por strike, a falta que se refere ao batedor ter tentado bater na bola e não o ter conseguido. Ao fim de três faltas deste tipo, o batedor é eliminado (N. de T.)

[15] Tipos de lançamentos feitos pelo lançador, cada um imprimindo um efeito diferente à bola: no caso específico, estes termos referem-se a variações num lançamento com a bola a curvar (curve ball), cada um referindo-se a tipo específico de curva (curva para fora, para dentro e para baixo, respecitvamente). Os três termos são pouco usados no basebol moderno. (N. de T.)

[16] «Sacrifício» é usado aqui como tradução directa de sacrifice, uma táctica que designa a intenção expressa do batedor em ser eliminado (logo, sacrificar-se) ao bater uma bola alta que lhe custará a eliminação directa, permitindo ao colega que está na primeira base deslocar-se para a segunda base, uma posição muito vantajosa para poder pontuar. (N. de T.)

[17] Enquanto está no monte, a preparar-se para lançar a bola, o lançador pode surpreender qualquer jogador da equipa adversária que se encontre numa base, lançando a bola para o defesa que protege essa bola; os atacantes, normalmente afastados da base para prepararem a corrida para a próxima base, são eliminados se não estiverem em contacto com a pequena almofada branca que marca a base quando a bola alcançar o defesa; neste caso, tentando estar mais próximo da base de partida, Mansfield foi apanhado e, logo, eliminado (alguém numa situação destas é normalmente descrito como tendo sido «apanhado a roubar» — caught stealing). (N. de T.)

[18] O batedor só acumula faltas se a bola estiver em jogo, isto é, se a bola, depois do contacto com o taco, entrar dentro da zona delimitada para a frente da base de partida; se um batedor tocar na bola mas esta passar para trás de si, a falta não é contabilizada para efeitos de eliminação. Este batedor, depois de várias faltas, fez um bunt, nome dado a uma técnica de bater a bola que consiste em simplesmente segurar o taco à sua frente e esperar que a bola lhe bata, o que significa que a bola andará apenas uns metros para dentro da zona de jogo, permitindo ao batedor correr para tentar chegar à primeira base. (N. de T.) 

[19] Quando a bola lançada pelo lançador atinge o corpo do batedor, por descuido ou intencionalmente, o batedor pode avançar imediatamente para a primeira base. (N. de T.)

[20] «Anotador» está aqui por scorer, uma espécie de árbitro que regista todos os acontecimentos de uma partida para que estes sejam posteriormente homologados pela entidade organizadora, normalmente uma Liga. (N. de T.)

[21] «Deque» traduz aqui a expressão inglesa deck, que se refere a uma zona perto da base de partida onde o batedor que está listado para seguir a quem está ao taco aguarda a sua vez. (N. de T.)

[22] A conhecida expressão inglesa home-run refere-se à jogada em que um batedor bateu a bola de tal maneira que esta, entrando no espaço de jogo, acaba por sair da zona delimitada do campo (normalmente para as bancadas); nessa altura, o batedor tem o direito de percorrer todas as bases até alcançar a base de partida, pontuando (todos os jogadores que já estiverem nas bases têm o direito de chegar à base de partida, também eles pontuando). (N. de T.)

[23] As linhas que unem as bases; os bancos das equipas ficam em lados opostos do campo, junto à linha que une a primeira e a segunda base, de um lado, e à que une a terceira com a base de partida, no lado oposto. (N. de T.)

* Notas de tradução de Telmo Rodrigues.

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