Apareceu pela primeira vez numa tarde cerca de uma semana antes do Meeting entre escolas de Outono. O Mosher, o Fosgill, o Allen, o Rominus e mais alguns de nós estávamos ao fundo do campo a lançar o peso. O Fosgill, que era o atleta sem desvantagem daquele ano, acabara de lançar doze metros e o peso fora parar ao caminho de cinzas. Foi então que uma réstia de humanidade apareceu do nada, pegou nos 7 kg de chumbo com muito esforço e cambaleou até ao círculo.

— Olá, miúdo — disse o Fosgill. — Isso não é muito pesado para ti?

— Nah — foi a resposta soberba —, isto n’é nada!

Rimo-nos, e o rapazola sorriu-nos de volta de um modo amistoso que nos conquistou de imediato.

— Como é que te chamas? — perguntou o Ronimus. 

— Patsy.

— Patsy quê?

— Burns.

— Quantos anos tens?

— Onz’.

— És francês, n’és?

— Nah.

— Não? — o Rominus fingiu-se chocado.

— É holandês, não és, Patsy? — disse o Mosher.

— Nah.

— Então és o quê? 

— Um rafeiro — respondeu Patsy a sorrir.

Durante o resto do dia e por muitos dias a seguir, o Patsy honrou-nos com a sua presença. A seguir a cada lançamento lá ia ele sem pressas, levantava a bola de metal do chão com duas mãozinhas muito sujas, acomodava-a bem junto à sua camisolinha muito suja, e esforçadamente lá a trazia de volta. Chegou o final da semana e Patsy era o assistente oficial.

Ele era uma amostra de humanidade, um duende esguio e esfomeado com uma cara sardenta, encarquilhada e pálida, que às vezes aparentava cem anos de idade. Fazia lembrar o focinho de um daqueles macacos anormalmente envelhecidos que se sentam a um canto da jaula, imóveis, oprimidos pelos pecados e pelas dores de centenas de séculos. Contudo, não se pense que Patsy era um pessimista ou um misantropo. Os irlandeses olhos cinzentos de Patsy eram bem capazes de um brilho alegre e na sua estreita boquinha irlandesa desenhava-se com frequência um sorriso aberto. Era como se ele tivesse percebido que a vida não passava de uma farsa sem significado e tivesse no entanto corajosamente decidido fingir que se tratava do contrário, para que nós, tão jovens e inocentes, pudéssemos manter as nossas estimadas ilusões.

Tínhamos o Patsy muito em conta. Fingíamos que ele era muito, muito velho e sofisticado — uma tarefa que não exigia esforço nenhum — e de todas as vezes acatávamos as suas decisões. Apesar disto, o Patsy nunca ficou «fresco». É verdade que rapidamente começou a chamar «Touro» ao Fosgill, mas acho que não o fazia com qualquer falta de respeito; todos chamavam «Touro» àquele homem enorme, e é bem possível que o Patsy pensasse tratar-se de uma deferência. Era atencioso com cada um de nós, mas o seu coração pertencia ao Fosgill. Costumava esperar à porta do edifício dos balneários até sairmos depois de nos vestirmos e caminhar ao lado do Fosgill até chegar ao largo. Aí, Patsy dizia:

— Boa noite, Touro.

E o Fosgill respondia sisudamente:

— Boa noite, Patsy. 

E Patsy desaparecia de vista.

Na noite do Encontro levámo-lo connosco para a pensão; sentou-se ao lado do Fosgill e devorou tudo o que lhe apareceu à frente. Foi nessa noite que passámos a saber a história da vida do Patsy. Ele ia à escola — a maior parte das vezes. Vivia com o Brian. O Brian era o irmão dele, tinha dezoito anos e era um homem do mundo do trabalho: era um dos motoristas do Connors, o camionista. Patsy não tinha a certeza de alguma vez ter tido mãe, mas não tinha dúvida nenhuma acerca do pai. Ainda se lembrava nitidamente da noite em que deitaram a porta abaixo e algemaram o pai depois de ter deitado o tenente ao chão com uma cadeira. O Patsy não sabia ao certo o que é que o pai tinha feito, mas desconfiava que tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento de várias peças de roupa da loja de um alfaiate. Patsy também ia começar a trabalhar assim que o deixassem sair da escola: ia vender jornais. Já várias vezes tentara subtrair-se à aprendizagem, mas de cada uma delas arrastaram-no de volta. Patsy via nisso algo de muito errado.

Quando a neve cobriu o campo, víamos o Patsy só de vez em quando. Na Primavera, pusémos logo mãos ao trabalho. Nesse ano, acreditávamos ter o suficiente para ganhar o Duplo e possibilidade de dar luta no Inter-Escolas. Éramos fortes na velocidade e nas longas distâncias, médios nos saltos e nas barreiras, bastante fracos nos pesos. O Fosgill era o homem do lançamento do peso, mas era só. Em Maio já tínhamos percebido que, se conseguíssemos o primeiro lugar no lançamento do peso, conseguiríamos ganhar por um ponto ou dois. Mas não havia certezas: o nosso adversário era forte em homens para o segundo, o «quase»-segundo, e o terceiro lugar.  

O Patsy apareceu no primeiro dia em que fez calor, mais magro, mais pequeno, mais velho do que nunca. Nesse primeiro dia, o director-adjunto estava a segurar-nos a fita, e ocorreu-lhe ir buscar o peso e atirá-lo de volta. Fê-lo uma única vez. Da vez seguinte, o Patsy estava com uma perna de cada lado daquela massa de 7 kg, a deitar um olhar resoluto ao director-adjunto.

— Sou eu que faç’isto — disse Patsy.

Depois disto fê-lo sem que ninguém contestasse o seu direito a fazê-lo. Quando as portas se fecharam e todos tiveram de mostrar o bilhete para entrar, o Patsy foi recebido sem perguntas. Enquanto todos os outros jovens das redondezas estavam de cara colada às grades de ferro para ver os jogos de basebol, a lealdade de Patsy nunca vacilou. Ele podia ser visto nas imediações do Fosgill, a dirigir àquele herói um olhar de admiração. Foi em Maio, creio, que o Patsy tomou a sua Grande Decisão. Partilhou-a connosco em confidência nas escadas do edifício dos balneários, enquanto esperávamos por um dos do grupo.

— Decidi que não vou trabalhar — disse Patsy.

— Então e o que é que vais fazer? — perguntou o Billy Allen. 

— Vou para a faculdade — respondeu Patsy, sem hesitação. — Vou ser um lançador do peso.

— Fazes bem, miúdo! — disse Billy. — Para que faculdade é que vais?

O Billy piscou-nos o olho e observámos com avidez à medida que o semblante de Patsy adquiria a sua expressão de desprezo altivo.    

— Uh! — disse Patsy. Foi só, mas este monossílabo eloquente votou qualquer faculdade que não a nossa às regiões siberianas.

— Tens de ir à escola muitos anos, Patsy — disse eu —, se queres entrar na faculdade.

— Sim, eu sei. É duro, mas acho que consigo. Foi… foi duro para ti?

Vi-me obrigado a admitir que sim, que tinha sido.

— Tam’ém não és grande lançador de peso — disse Patsy, pensativamente.

O Fosgill tinha feito treze metros e seis naquela tarde e estávamos esperançados e bem-dispostos depois do jantar. Alguém falou no Patsy e o Mosher disse para todos:

— Olhem lá, rapazes: e se fizéssemos com que aquele diabrete fosse mesmo para a faculdade? O que é que acham?

— Estou contigo! — exclamou Fosgill. — O Patsy é um bom miúdo, sim, senhor, e merece melhor do que uma vida de rua. Vamos adoptá-lo.

— Com certeza — disse o Allen. — Mas não teremos mãos a medir. E o que é que acontece quando sairmos nós da faculdade?

— Arranjamos alguém que cuide dele. Falamos com o Brian Irmão sobre isso. Olha lá, Touro, já imaginaste o Patsy a lançar o peso?    

Desatámos a rir, algo que não teríamos feito se o Patsy estivesse presente.

— Bem, acho que ele não fará grande vista no desporto — disse eu —, mas se o conseguirmos manter fora das ruas já estaremos a fazer muito. E eu gosto do Patsy.

Gostávamos todos. E naquela mesma noite, antes de nos levantarmos da mesa já tínhamos tudo planeado. O Patsy ia ter quem olhasse por ele e cuidasse dele. Ia acabar a primária, depois ia para o liceu e depois para Harvard. E haveria fundos onde pudessem ser mais úteis. Sim, senhor, estava tudo arranjado para o Patsy e teríamos seguido o plano à risca não fosse o Patsy ter aparecido e estragado tudo. O que aconteceu foi o seguinte.

Quando se deu o Encontro Duplo, em Junho, estávamos todos em forma. Não víamos como não ficar em primeiro lugar em tudo excepto nos quatrocentos, nas barreiras altas, no lançamento do martelo e no salto em comprimento. E prevíamos segundos e terceiros lugares em número suficiente para fazermos boa figura. Se o Touro Fosgill vencesse o Tanner no peso, estávamos garantidos.

Era assim que tínhamos avaliado a situação, mas claro que as coisas não acontecem como esperamos, muito menos no desporto. Alguns dos primeiros lugares que anunciámos não passaram de miragens, e conseguimos segundos e terceiros lugares inesperados. Mas o resultado final foi mais ou menos aquilo que tínhamos previsto, e perto das cinco da tarde o encontro estava dependente do resultado de uma única modalidade: o lançamento do peso. É certo que ainda estavam com picuinhices em relação ao salto com vara, mas dávamos o primeiro e terceiro lugares como garantidos e por isso não contava.

Por um qualquer milagre, consegui apurar-me com um lançamento de 11,63 m. Éramos quatro nas finais: o Fosgill, o Tanner, o Burt e eu. O Patsy estava lá, claro, a dar o litro que nem um mouro. Mas claro que também conseguíamos perceber que não era de bom grado que ele ia buscar os pesos dos nossos adversários; ainda havia muito de primitivo no Patsy. É seguro dizer que não havia ali ninguém mais interessado do que ele. Acho que nem por um segundo ele duvidou de que o Fosgill ganharia, e imagino que me achasse um descarado por ter almejado chegar à última ronda.

O Fosgill ia na frente com doze cinquenta e um; o Tanner tinha feito 8 cm abaixo disso; eu e o Burt disputávamos o terceiro lugar, a fazer à volta de onze e trinta e sete. Estava a ser renhido, e até os fiscais estavam entusiasmados. Havíamos terminado uma ronda quando se deu o acidente.

O Tanner estava no círculo. O Fosgill estava ao fundo, perto do fim da fita, e o Patsy estava mesmo atrás dele. O Tanner atravessou o círculo aos pulos, pisou a linha — invalidando o lançamento — e atirou o peso em falso. O Fosgill tinha virado a cabeça para falar com o medidor e não viu o perigo. O Tanner deu um grito de aviso, que outros repetiram. Mas Patsy agiu. Como uma catapulta em miniatura, atirou-se a Fosgill e empurrou-o, fazendo-o cambalear pelo terreno. Patsy e o peso caíram ao mesmo tempo.

Foi tudo tremendamente repentino e feio. Quando nos debruçámos sobre o pobre rapaz, estava com uma cor branco-esverdeada, e nunca mais me vou esquecer de como as sardas sobressaíam. O peso tinha-o atingido no peito e os frágeis ossinhos do Patsy não fizeram mais que ceder. Fizemos tudo o que podíamos; pusémo-lo num carro à entrada e enviámo-lo para o hospital. Ainda respirava, mas o médico disse que ele não tinha tido noção de mais nada depois de o peso o atingir — pelo menos até à noite. Estávamos todos terrivelmente perturbados, e o Tanner sentou-se no chão e quase desmaiou. O Fosgill não parava de dizer «Pobre Patsizinho! Pobre miúdo!», a meia voz e a andar às voltas. Queria ir com ele para o hospital, mas dissemos-lhe que não adiantaria de nada, e cada um de nós tinha ainda mais dois lançamentos.  

Passado um bocado, a modos que conseguimos recuperar algum sangue frio e continuámos, mas, valha-me Deus!, nenhum de nós valia um chavo. Fiz dez noventa e sete e onze trinta e um, e isso valeu-me o terceiro lugar. Nem o Fosgill nem o Tanner igualaram as suas primeiras marcas e o primeiro lugar foi para o Touro com os números ridículos de doze cinquenta e quatro. Ganhámos o encontro por quatro pontos e meio. Com isto tudo, já eram quase seis da tarde; o Fosgill, eu e mais outros três enfiámo-nos no carro do Allen e corremos para o hospital.

Tinham acabado de levar o Patsy da mesa de operações para a cama. O médico disse-nos que o exame mostrara não haver nada a fazer: o coração tinha sido atingido e era provável que parasse a qualquer momento. O Fosgill fez o médico prometer que lhe telefonaria se o Patsy desse quaisquer sinais de estar consciente, deixando ordens para se fazer tudo o que fosse possível. O Tanner implorou-nos que o deixássemos tomar conta do miúdo e pagar todas as despesas, mas embora o tenhamos prometido, nem por um momento nos ocorreu cumpri-lo: o Patsy era o nosso miúdo. Regressámos à cantina dos atletas, mas éramos um bando desanimado. Quando estávamos prestes a terminar o jantar, telefonaram do hospital.

Fizemos uma viagem-relâmpago no bólide do Billy e quando entrámos em bicos de pés na unidade de cuidados intensivos a enfermeira sorriu-nos. O Patsy também. Era uma amostra de rapaz com um ar patético, assim ali deitado com a roupa da cama afastada do corpo, mas sorria e mexia um bocadinho a cabeça na almofada. O Fosgill sentou-se à cabeça da cama e inclinou-se, os lábios a tremerem.

— Olá, Touro! — murmurou Patsy.

— Olá, Patsy! — respondeu o Fosgill, tentando sorrir.

— Conseguiste… vencê-lo?

— Sim, Patsy.

— Eu sabia… que ias conseguir. Eu… disse-lhe.

Virou os olhos para mim:

— Ganhaste… ao outro… tipo?

Disse que sim com a cabeça e o Patsy olhou-me com um respeito renovado.

— Ainda bem… para ti — sussurrou.

— Estás… Dói muito, Patsy? — perguntou Fosgill.

— Não muito, não.

— Ainda bem. Estás fora daqui não tarda.   

Patsy sorriu.

— Está calado! — sussurrou. — A mim não… me enganas, Touro. Eu… já fui.

O Fosgill balbuciou qualquer coisa e os olhos de Patsy avivaram-se.

— Touro — sussurrou —, achas que… tive uma mãe… como os outros miúdos?

— Sei que sim, Patsy.

— Ainda bem — suspirou o miúdo, feliz. — Então acho que… talvez… a veja… no lugar… p’ra onde vou.

— Salvaste-me a vida, Patsy — balbuciou Fosgill —, e não há nada que eu possa fazer por ti. Quem me dera… Oh, miúdo, é uma pena! 

— Uh! Eu estou contente… Touro. T’ria feito… qualquer coisa… por ti, Touro. Foste bom… para mim. Os’otros… tam’ém. 

Exausto, fechou os olhos por uns segundos. Depois:

— Achas — perguntou pausadamente — que teria… sido capaz… de aprender… a lançar… o peso, Touro… alguma vez?

— Sim — respondeu Fosgill com firmeza. — Tinhas a constituição de um grande lançador de peso, Patsy. Aposto que estabelecerias o teu próprio recorde!

— Estás… a gozar… comigo, Touro? 

— Não, Patsy. Deixo isso para os outros. Não é assim, rapazes? 

Acenámos energicamente com a cabeça, e Patsy fechou os olhos com um sorriso de contentamento inexprimível na sua carinha. Passado um momento, os olhos pestanejaram e abriram-se de novo.

— De qualquer modo — disse, com voz forte e naquele tom a lembrar o seu velho ar pomposo —, de qualquer modo… acho que ganhei… por Harvard… hoje. Não?

— Ganhaste sim, Patsy — respondeu Fosgill. — É a ti que o devemos, caro rapazinho.

Patsy sorriu. Então:

— Adeus… Touro — disse, muito suavemente, os olhos semicerrados.

Aguardámos em silêncio à medida que os segundos se arrastavam, mas Patsy não voltou a falar.

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