Ao sairmos de Lisboa, uma gaivota, ignorando pessoas e carros, atravessou a estrada. Em vez de levantar voo perante a aproximação dos veículos, caminhou vagarosamente até ao passeio, como estamos acostumados a ver fazer as aves que habitam os espaços urbanos. O comportamento parecia revelador de uma domesticação lamentável, como se aquele pássaro tivesse perdido atributos da sua natureza devido à convivência com seres humanos. O circuito de observação de pássaros que José Artur Pinto organiza em colaboração com o Centro de Interpretação Ambiental de Leiria é realizado em contexto urbano, mas este segundo encontro teria lugar em pleno Parque Natural das Serras d’Aire e Candeeiros, onde se realizava um convívio do Núcleo de Espeleologia de Leiria (NEL), do qual faz parte. Irmos de Lisboa para Leiria em busca de pássaros pareceu peculiar da primeira vez e, portanto, a ideia de observar pássaros numa serra foi tida como mais natural, por imaginarmos que haveria a possibilidade de vermos aves em estado mais selvagem.

Descobrimos, no entanto, que a observação de pássaros em serra é mais difícil do que em contexto urbano. As aves da serra, como a petinha-dos-prados (Anthus pratensis), que vem passar o Inverno a Portugal, e com a qual nos cruzámos a certa altura, não estão habituadas à presença humana. Foi apenas no final do passeio, já a descer a serra e à medida que nos aproximávamos de um pequeno aglomerado de casas, que tivemos a oportunidade de ver mais espécies que usufruíam dos pequenos luxos que a civilização lhes proporciona, como o estorninho (Sturnus unicolor), o pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula) e o pardal (Passer domesticus). José Artur explicou que esta última espécie não só está habituada a seres humanos, como depende deles para sobreviver: a sua alimentação baseia-se nos pequenos restos que resultam dos alimentos que produzimos e consumimos. Daí que uma das causas apontadas para o desaparecimento dos pardais das grandes cidades cosmopolitas, como Londres e Berlim, se deva a uma mudança na alimentação das pessoas: os restos do consumo crescente de fast food não são adequados à alimentação destas aves. A domesticação a que nos referimos no início deste texto, com uma nota de lamento, parte então de um pressuposto errado, como acabámos por perceber. É precisamente na interacção com seres humanos que algumas espécies mais proliferam, e se há algo que José Artur visa desmistificar são alguns dos lugares-comuns em que insistimos acerca das relações que mantemos com a natureza.

Na serra, comemorava-se o Dia do NEL. A reunião, que chegou a juntar mais de trinta pessoas que foram aparecendo ao longo da tarde, incluindo praticantes de espeleologia, família, amigos, simpatizantes e representantes da Junta de Freguesia de São Bento e da Câmara Municial de Porto de Mós, era na antiga escola primária de Poço da Chainça, agora chamada Casa Abrigo. Comeu-se javali, que um dos membros do grupo tinha caçado, morcelas de arroz, sonhos de abóbora que alguém tinha trazido ainda mornos. As salas de aula da escola primária foram convertidas em quartos ocupados por beliches; há uma sala grande com lareira, cozinha e casas-de-banho, tudo o que é necessário para, precisamente, dar abrigo aos grupos organizados pelo NEL para subir à serra e praticar escalada, exploração de grutas, ciclismo ou observação de aves. Claro que uma das questões que nos intrigavam era o modo como estas actividades se relacionavam e o que estávamos nós a fazer num convívio de espeleólogos que, enquanto o javali ia assando, preparavam aguardente de figo e de ameixa em alambiques caseiros.

José Artur explicou-nos: todas estas actividades são formas de observar, interpretar e entrar em contacto com o que nos rodeia; observar pássaros é apenas uma delas. O interesse de José Artur por pássaros vem dos tempos da adolescência, quando teve «a sorte de se tornar amigo de pessoas que não gostavam de futebol». Contou-nos que o pai gostava de pássaros e sabia identificá-los. Também caçava, «até ao dia em que caçou um tordo que, numa das patas, trazia uma anilha que o identificava como vindo da Noruega. Quando viu aquilo, disse: “Este pássaro conseguiu vir da Noruega até aqui, para eu o matar?” A partir daí, nunca mais caçou». Apesar do interesse do pai no assunto, José Artur começou sozinho, com um guia de aves comum.

Já como professor de matemática e de ciências do segundo ciclo — profissão que exerce há vinte anos —, José Artur começou a organizar passeios para observar pássaros no perímetro urbano de Leiria. Os seus alunos, que têm entre dez e doze anos, integram um grupo que sai do Colégio de Nossa Senhora de Fátima às sextas-feiras, à hora do almoço, para observar e registar as diferentes espécies com que se cruzam. José Artur diz que esta foi uma maneira de estabelecer uma relação professor-aluno noutros contextos, e uma forma de os pôr em contacto com a natureza: «o contacto com a natureza desperta-os para outras coisas». Como professor, diz que é «complicado passar horas a falar em leões e zebras, que estão longe» e com os quais não é possível ter um contacto imediato: é difícil usar os manuais escolares para explicar que a natureza também está próxima e que não existe apenas noutro continente. Promover estas actividades serve para estimular os alunos para a aprendizagem em sala, interessando-os mais pelas matérias e, simultaneamente, pelo mundo que os rodeia.

Os alunos não esquecem a experiência, e, ao longo dos anos, vão fazendo chegar ao antigo professor fotografias de pássaros, flores ou mesmo fungos que descobrem. Há ainda um carácter inclusivo na actividade, enquanto modo, por exemplo, de ajudar os alunos problemáticos a ganhar concentração. O sistema de educação não parece muito preocupado com as peculiaridades regionais, e este tipo de actividades tem impacto não apenas a nível académico, mas sobretudo social, motivando os alunos para assuntos que tendem a ser arrumados como «política local» — um tema de que, normalmente, os cidadãos se afastam. Contudo, reconhecer que essa política pode ter consequências no meio que nos envolve parece uma boa maneira de transformar as pessoas em cidadãos melhores ou, pelo menos, em cidadãos mais informados e activos. O passeio que demos pela serra com José Artur e Paulo Nuno, também do NEL, pode não ter sido muito frutífero no que ao avistamento de aves diz respeito, mas aprendemos coisas sobre elas, sobre a história da serra e como se vive ali, e esse é o objectivo principal dos passeios que José Artur organiza.

Subimos a serra de carro e o plano era descermos a pé, de regresso à Casa Abrigo (voltaríamos mais tarde para ir buscar o carro). José Artur alertou imediatamente para a dificuldade já referida, a da observação de pássaros em serra, explicando que um dos pontos de interesse seria ver a gralha-de-bico-vermelho (Pyrrhocorax pyrrhocorax), uma espécie conhecida pela sua lealdade ao lugar de nidificação — um bando habita naquela zona e costuma ser fácil observá-las. Esta gralha, que nidifica apenas em rocha, tem o bico curvo para poder levantar as pequenas pedras debaixo das quais busca alimento. Com o crescente abandono dos terrenos, a vegetação cresce e adensa-se, dificultando a alimentação à gralha-de-bico-vermelho. José Artur explica que há uma Associação em Chãos que combate o crescimento da vegetação para que a serra não deixe de ser um dos habitats naturais desta espécie. Neste dia em particular, o bando podia distinguir-se muito ao longe, no lado oposto àquele onde nos encontrávamos.

À falta de pássaros para observar, o passeio levou-nos por uma zona onde se acumulam fósseis em excelente estado de conservação, de estrelas-do-mar a ouriços-do-mar, relembrando que, em tempos, o mar chegara ali. Do local onde estávamos, no cimo da serra, era possível ver vários muros feitos de pedra — «chozos». São as divisões que os proprietários dos terrenos utilizam para demarcar as propriedades, junto às quais crescem, por exemplo, tomilho e alecrim (que José Artur identificou prontamente). A serra, constituída maioritariamente por calcário, tem muito pouca água à superfície, «agindo como esponja»; esta particularidade torna-a propícia à formação de grutas, daí a prática de espeleologia. Mas também dá azo a que locais onde a água se acumule (tanques construídos pelo homem, sobretudo) sejam ideais para a observação de pássaros, por serem pontos onde, nos meses mais quentes, se juntam várias espécies. A chuva recente ainda era visível em várias poças por onde passávamos e a abundância de água dispersava os pássaros.

Enquanto descíamos a serra, José Artur foi identificando espécies vegetais. Apesar de ter identificado o tomilho e o alecrim (que se pode confundir com alfazema) com facilidade, confessa que identificar espécies florais é mais difícil do que identificar pássaros. Na cidade, em Leiria, os passeios acompanham o percurso pedonal ao longo do rio Lis e podem ir até ao castelo, onde nidifica um casal de peneireiros habitualmente fácil de observar. A ideia é garantir alguma fiabilidade ao passeio, visitando sítios onde sabe que algumas aves nidificam e onde estas serão, em princípio, mais fáceis de observar; contudo, e tal como na serra, a ausência de aves não extingue o interesse do passeio.

No dia do passeio na cidade, que já tínhamos feito meses antes, multiplicavam-se eventos e, além do grande número de pessoas, o som techno de um acontecimento desportivo misturava-se com o som da música de uma recriação histórica, criando condições inadequadas para a observação de pássaros. José Artur, reconhecendo a dificuldade, conduziu o grupo que integrávamos até locais onde sabia ser quase certo conseguir observar alguns. Chegados ao castelo, e não havendo mais pássaros para observar, deu a conhecer alguma da flora que cresce dentro das muralhas, oferecendo flores comestíveis de papoila ou mostrando a gilbardeira (Ruscus aculeatus), uma planta em que o caule se assemelha a folhas donde brotam flores. O objectivo do passeio é semelhante à ideia que levou à formação do grupo de observação no Colégio: pôr os intervenientes em contacto directo com coisas que vêem todos os dias mas em que ainda não tenham reparado. 

No início desse passeio em Leiria, José Artur mostrou-nos um juvenil de pega-rabuda (Pica pica), protegido dentro de uma caixa, que lhe tinha sido entregue por alguém que o encontrara caído na rua. O número de telemóvel de José Artur circula pela cidade e muitas aves caídas ou feridas acabam por lhe chegar às mãos para depois serem encaminhadas para centros de recuperação ou simplesmente para serem libertadas em locais onde a espécie habite. Depois de ouvirmos algumas explicações sobre as aves na cidade e aquilo que poderíamos esperar do passeio, começámos por procurar o guarda-rios (Alcedo atthis), um pássaro vistoso para quem não está habituado a observar aves, e que nidifica perto do Museu do Moinho de Papel (mesmo ao lado do Centro Ambiental). Enquanto o procurávamos, sem sucesso, observámos uma trepadeira-comum (Certhia brachydactyla) a subir o tronco de uma árvore — uma característica que a distingue da trepadeira-azul (Sitta europaea), conhecida por se movimentar nos troncos no sentido inverso, de cima para baixo. Entre a identificação de pássaros mais comuns, como o rabirruivo-preto (Phoenicurus ochruros), tivemos a sorte de ver o goraz (Nycticorax nycticorax), que se desconfia ter nidificado na cidade — algum tempo depois do nosso passeio, alguém publicava num grupo de observação de pássaros do Facebook uma fotografia com um juvenil de goraz em Leiria. José Artur, que sabe onde nidificam algumas aves mais difíceis de observar, fala na vontade de contactar o fotógrafo para saber o local exacto onde foi avistado o juvenil de goraz, sublinhando a qualidade e o interesse de alguns grupos de observação de aves a que nos podemos associar no Facebook. Por exemplo, no grupo Aves de Portugal Continental (onde a fotografia do juvenil foi publicada), que conta com mais de vinte e dois mil seguidores, amadores e profissionais da fotografia juntam-se para discutir as observações, tirar dúvidas sobre comportamentos de aves ou simplesmente partilhar imagens; se, por um lado, parece haver um interesse na completude, na listagem do maior número de espécies possível, há, por outro, a mera satisfação de partilhar com outras pessoas que se interessam pelo assunto as pequenas raridades (e não só) com que nos vamos cruzando.

A caminho do castelo, um pombo-torcaz (Columba palumbus) repousava no ramo de uma árvore, mas poucos mais pássaros se cruzaram connosco além dos omnipresentes pombos. No Salão Nobre do castelo de Leiria, das janelas góticas que distinguem a fortificação, ainda se ouvia a cacofonia da cidade, mas não se avistavam os peneireiros. Apesar da sorte em conseguir ver o goraz, José Artur comenta a escassa quantidade de espécies que nos foi dado observar; só ele, dentro do perímetro urbano, conta já com a observação de setenta e cinco espécies diferentes, incluindo a mais memorável: um falcão-peregrino (Falco peregrinus), «certamente de passagem».

A abordagem de José Artur à natureza circundante restaura alguma fé na possibilidade de a convivência entre homem e natureza poder ser melhorada, mesmo quando não é necessariamente perniciosa, como no caso óbvio dos pardais. Durante o passeio pela cidade, quando se falou do desaparecimento dos pardais das grandes metrópoles europeias, comentaram-se as várias hipóteses que se têm avançado para o acontecimento, incluindo a mais popular: a alteração dos hábitos alimentares dos seres humanos. Mas discutiu-se também uma hipótese mais recente, proposta, entre outros, por Michael McCarthy em The Moth Snowstorm: a de que a substituição da gasolina com chumbo por combustíveis mais amigos do ambiente poderá ter produzido um gás que estará a aniquilar os pequenos pássaros. O movimento cego pela protecção pode causar tantos danos quanto a nossa despreocupação; para ambas, a resposta é conhecer mais e melhor, prestar mais atenção. Não foi por isso sem alguma satisfação que, à noite, com as luzes laranja da cidade a reflectirem-se nas águas rasas do rio Lis, conseguimos identificar os contornos de uma garça-real no leito do rio.

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